Às seis horas da manhã do dia seguinte, 22 de março, começaram os preparativos de viagem. No zênite brilhava o Cruzeiro do Sul, a estrela polar das regiões antárticas. O termômetro indicava doze graus abaixo de zero, e quando o vento aumentava, produzia um ardor muito intenso na pele. Uma vez cheios os depósitos de água, o submarino imergiu lentamente, parando a uma profundidade de mil pés. Seguiu diretamente na direção norte, com uma velocidade de quinze milhas por hora. Ao anoitecer, flutuava sob uma imensa camada de gelo.
A janela do salão tinha sido fechada por precaução, porque o casco do Nautilus podia se chocar com algum bloco de gelo submerso. Em vista disso, passei o dia pondo a limpo minhas anotações. As recordações do pólo absorvia totalmente meus pensamentos. Durante a noite todas essas lembranças, cada uma delas, não deram um instante de sossego à minha mente.
Às três horas da madrugada, fui acordado por um forte choque. Levantei-me do leito e fiquei escutando em meio à escuridão. De repente, senti-me impelido até o meio do camarote. Era quase certo que o Nautilus havia adernado depois da colisão.
Apoiando-me nas paredes, arrastei-me pelos corredores até o salão, que possuía iluminação no teto. No interior ouvi ruídos de passos e vozes indistintas; porém, nào vi o capitão nemo. Ao sair do salão, entraram Ned Land e Conselho, que vinham saber o que sucedia.
- E o que aconteceu? - indaguei logo.
- É o que eu vinha justamente perguntar-lhe -, respondeu Conselho.
- Não é preciso esquentar muito a cabeça para ficar sabendo! - exclamou o canadense. - O Nautilus encalhou, e a julgar pela sua inclinação, não considero que será fácil sair daqui.
- Mas será que voltaremos à superfície? - perguntei.
- Não sabemos, senhor - respondeu Conselho.
- É fácil saber - retorqui.
Consultei o manômetro, ficando surpreso ao ver que marcava a profundidade de trezentos e sessenta metros.
- Mas o que significa isso? - indaguei.
- É preciso perguntar ao capitão - disse Conselho.
- Mas quem pode encontrá-lo? - replicou Ned Land.
- Sigam-me - disse aos meus companheiros.
E saímos daquele local. Na biblioteca não havia ninguém. Pensei que o capitão Nemo estivesse na cabina do timoneiro. O melhor a fazer era aguardá-lo. Resolvemos fazer isso, voltando os três ao salão.
Passados vinte minutos, durante os quais tratamos de captar os menores ruídos produzidos a bordo, adentrou o capitão Nemo. Olhou silenciosamente a bússula e o manômetro e colocou depois o dedo indicador em um ponto do planisfério, na parte que representava os mares austrais.
Não quis interrompê-lo. Apenas quando se dirigiu a mim, depois de alguns instantes, perguntei-lhe:
- Algum incidente, capitão?
- Não, senhor - respondeu ele. - Desta vez foi um acidente.
- Grave?
- Talvez.
- Há perigo iminente?
- Não.
- O Nautilus está encalhado?
- Sim.
- E a que se deve o acidente?
- A um capricho da natureza, e não à falta de perícia de meus tripulantes. Não foi cometida nenhuma falha nas manobras, porém não se pôde evitar os efeitos do equilíbrio. É preciso se opor às leis humanas, porém não se pode resistir às leis naturais.
- Mas o senhor não pode descobrir qual foi a causa do encalhe?
- Um enorme bloco de gelo, uma montanha inteira que tombou dentro d'água. Quando os icebergs estão minados em sua base pelo contato com a água mais quente ou por repetidos choques, o seu centro de gravidade se eleva. Então, perdem a estabilidade e dão um giro completo. Foi isso que aconteceu agora. Uma dessas massas de gelo, ao inverter a sua posição, chocou-se com o Nautilus que flutuava tranquilamente entre as águas, e deslizou para baixo de seu casco, e, levantando-o com um impulso irresistivel, levou-o a camadas menos densas, onde se encontra encalhado.
- Mas não é possivel tornar mais leve o Nautilus, esvaziando seus depósitos, a fim de que restabeleça o equilíbrio?
- É isso que estamos fazendo agora. Pode-se ouvir daqui o funcionamento das bombas. Olhe: a agulha do manômetro indica que estamos subindo; porém, o bloco de gelo sobe simultaneamente com o submarino, e enquanto um obstáculo não detiver o seu movimento ascendente, a nossa situação permanecerá inalterada.
Enquanto meditava sobre todas as contingências de nossa situação, o capitão não tirava os olhos do manômetro. Desde a queda do iceberg, o Nautilus havia subido cerca de cento e cinquenta pés; porém, continuava formando o mesmo ângulo com a perpendicular.
De repente, o casco fez um pequeno movimento. Era evidente que o submarino ia recuperando lentamente sua posição anterior. As suas paredes estavam quase em posição vertical. Dominados pela ansiedade, entreolhávamos-nos sentindo as oscilações do navio. Assim, transcorreram dez minutos.
- Recobramos a posição horizontal! - exclamei.
- Realmente - concordou o capitão, caminhando em direção à porta.
- Mas será que flutuaremos?
- Ainda duvida? - retorquiu ele. - Assim que estiverem vazios os depósitos, o Nautilus subirá à superfície do mar.
O capitãi saiu e, logo depois, obedecendo às suas ordens, ficava interrompida a subida do Nautilus. Se isso não fôsse feito, ele se chocaria logo com a parte inferior do banco de gelo, sendo preferível mantê-lo entre duas águas.
Pouco depois nos encontrávamos em água livre; porém, a dez metros de distância de cada costado do navio, elevava-se uma deslumbrante muralha de gelo. Por cima e por baixo, havia outras barreiras semelhantes; por cima, porque a parte inferior do banco se estendia como um imenso teto; por baixo, porque a montanha caída, deslizando aos poucos, havia encontrado dois pontos de apoio nas muralhas laterais, que a mantinham presa a um verdadeiro túnel de gelo.
Apesar de a luz do teto ter se apagado, o salão parecia iluminado. Isso era ocasionado pela poderosa reverberação das paredes de gelo que refletiam as luzes do refletor. Não é possível descrever o efeito dos raios luminosos naquelas enormes massas de contornos caprichosos, em que cada ângulo, cada aresta e cada faceta irradiava um fulgor diferente, segundo a natureza dos veios que atravessavam o gelo.
Às cinco horas da manhã a proa do submarino chocou-se. Era evidente que o esporão do navio havia batido em um bloco de gelo, em virtude, talvez, de um erro de manobra, porque o túnel submarino, fechado pelos blocos, não era fácil de ser navegado. Pensei que o Nautilus evitaria aqueles obstáculos ou seguiria as sinuosidades do túnel; isto é, de qualquer maneira, a sua marcha não seria interrompida. Mas não foi isso que ocorreu, pois o Nautilus começou a retroceder.
- Estamos voltando? - perguntou Conselho.
- Sim - respondi. - Parece que o túnel está fechado neste local.
- E então?
- É uma questão de simples mudança na manobra - retorqui. - Voltaremos pelo trajeto feito e sairemos pelo lado sul. Tudo se resume a isso.
Falando assim, eu aparentava estar mais tranquilo do que realmente estava. Entretanto, o movimento retrógrado do Nautilus aumentava, o qual, navegando a contramarcha, nos arrastava com intensa velocidade.
- Isso significará um novo atraso - resmungou Ned.
Passaram-se várias horas, durante as quais observei amiúde os instrumentos existentes na perede do salão; o manômetro, que indicava que o Nautilus se mantinha a uma profundidade constante de trezentos metros; a bússila, que continuava derivando para o sul; o velocímetro que indicava uma velocidade de vinte milhas por hora, excessiva para um espaço tão reduzido. Porém, o capitão Nemo sabia que toda pressa era pouca e que, naquelas circunstâncias, cada minuto equivalia a um século.
Às oito horas e vinte e cinco minutos da manhã, houve um novo choque, desta vez na popa. Apertei com força a mão de Conselho e o nosso olhar procurava compreender o que sucedera.
Naquele momento, o capitão Nemo entrou no salão. Fui ao seu encontro.
- Está bloqueado também o caminho pelo sul? - perguntei.
- Sim - respondeu ele - O iceberg, ao cair, obstruiu todas as saídas.
- Então estamos bloqueados?
- Sim.
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