Tudo aquilo sucedera tão depressa quem nem percebemos o aspecto estranho de nossos raptores.
Uma vez fechada a escotilha, ficamos mergulhados em trevas. Notei que meus pés descalços pisavam os degraus de uma escada de ferro. Ned Land e Conselho, tolhidos como eu, seguiam-me. Depois de descermos a escada, abriu-se uma porta, que se fechou após a atravessarmos.
Agora estamos sós. Porém, onde? Era impossível descobrir, pois a escuridão era total.
Ned Land estava furioso e demonstrava a sua indignação.
- Isto é o cúmulo da desfaçatez. Essa gente é pior do que selvagens! - exclamava.
- Tenha calma, amigo Ned - respondeu Conselho tranqüilamente. - Não se amofine antes do tempo, pois não sabemos o que irão fazer conosco.
- Não creio que irão nos abrigar - respondeu o canadense. - Aqui está tudo escuro. Por sorte, tenho minha faca e não preciso de luz para usa-lá contra quem quer que seja. O primeiro que entrar...
- Não deve irritar-se - aconselhei ao arpoador. - E não nos comprometa com suas ameaças verbais. Podem estar escutando nossa conversa. Procuremos descobrir antes, onde estamos...
Avancei às apalpadelas. A cinco passos, encontrei um tabique de ferro com chapas encaixadas e rebitadas. Depois tropecei em uma mesa de madeira, junto a qual havia vários tamboretes. O piso do calabouço estava escondido sob uma espessa camada de fórmica, que amortecia o ruído dos passos. As paredes não apresentavam nenhum vestígio de porta ou de janela. Aquela escada devia ter pelo menos vinte pés de comprimento por dez de largura. Quanto à sua altura, Ned Land não a pôde medir, apesar de sua estatura elevada.
Depois de meia hora, o recinto foi iluminado subitamente. Reconheci aquela luz; era a mesma que nós havíamos visto a bordo da fragata.
- Finalmente, consigo enxergar bem! - exclamou Ned Land.
- Sim, porém nossa situação continua sem se esclarecer - observei, com certa ironia.
- O senhor deve ter paciência - respondeu o impassível Conselho.
A repentina iluminação da cabine permitiu-me que a examinasse minuciosamente. Possuía apenas uma mesa e cinco tamboretes. Tudo parecia inanimado. Não se via o menor movimento nem se ouvia rumor algum. Entretanto, a luz tinha sido acesa por algum motivo. Portanto, esperava que logo aparecesse alguém da tripulação.
Não me enganei em relação às minhas suposições. Ao fim de alguns instantes, ouviu-se o ruído de fechos, abriu-se uma porta e surgiram dois homens cobertos com gorros de pele de lontra marinha e usando botas de pele de foca. Vestiam roupas de um tecido especial, que não aderiam ao corpo e proporcionavam perfeita liberdade de movimentos.
Um deles, sem pronunciar nenhuma palavra, examinou-me com atenção. A seguir, falou com seu colega, sem que eu pudesse entende-lo. Tentei me expressar em francês, porém constatei que nenhum deles prestava a menor atenção. A situação tornou-se muito tensa.
- O senhor deveria contar-lhe o que nos sucedeu - sugeriu Conselho. - Talvez eles compreendem algumas palavras isoladas.
Relatei-lhes as nossas aventuras, articulando sílaba por sílaba, sem omitir nenhum detalhe. Disse nossos nomes, profissões e outros detalhes pessoais.
Aqueles dois homens me escutavam tranqüilamente com cortesia e bastante atenção. Porém, estou certo de que não compreenderam nada do que lhes falei. Quando terminei, não proferiram palavra alguma.
Entretanto, restava-me o recurso de falar em inglês. Sabia expressar-me nesse idioma, bem como em alemão, embora não com perfeição. Então, pensei que Land poderia auxiliar-me.
- Você talvez, amigo Land - disse ao arpoador - pudesse falar melhor do que eu em inglês e ser compreendido por esses homens.
Ned acatou o meu pedido e iniciou a sua narração, que eu entendia perfeitamente. Repetiu quase a mesma história que eu havia relatado, embora empregasse outras palavras. O canadense deixou-se levar por seu temperamento e queixou-se de ter se tornado prisioneiro; perguntou em virtude de que lei nos retinham encarcerados e ameaçou perseguir os seqüestradores. Por último, indicou com um gesto, que estávamos morrendo de fome.
Entretanto, o arpoador não foi compreendido. Nossos raptores não demonstraram sinal algum de entendimento. Era evidente que não falavam nem inglês nem francês.
Já não sabia mais o que fazer, quando Conselho me disse:
- Se o senhor me permite, explicarei o que aconteceu, em alemão.
- De acordo! Mãos à obra, rapaz!
Conselho, com ar tranqüilo, contou pela terceira vez as várias peripécias sucedidas. Porém, apesar de tudo, não teve o menor êxito. Então, narrei nossas aventuras em latim, de modo imperfeito, embora com o mesmo resultado negativo. Os dois desconhecidos trocaram algumas palavras em sua língua desconhecida e se retiraram sem ao menos fazer-nos um gesto. A porta tornou a fechar-se.
- Não é justo! - berrou Land. - Isso é insuportável. Falamos com eles em francês, inglês, alemão e latim, e não fizeram sequer um gesto de cortesia...
- Acalme-se meu amigo! - disse ao arpoador. - A cólera não nos concederá a liberdade.
- Porém, você não percebe que vamos morrer de fome? - retrucou o arpoador.
- Não seja tão pessimista - respondeu Conselho com circunspeção. - Ainda podemos resistir algum tempo antes de morrer de inanição.
- Meus amigos - declarei - não desesperemos. Escapamos com vida...esperemos, pois, antes de fazer um juízo definitivo sobre o capitão e os tripulantes desse navio.
- Não preciso esperar para formar minha opinião - respondeu Land. - São uns patifes!
- De acordo, porém, de que país?
- Pois seja de que país for. Não tenho o menor interesse em saber.
- Amigo Ned, é muito importante saber a que país pertencem. O que podemos afirmar é que não são franceses, nem ingleses ou alemães. Parecem mais ser do sul.
- Aí está o inconveniente de não se falar todos os idiomas - disse Conselho. - Se falássemos todos um só idioma...
- Também de nada adiantaria - objetou Ned Land. - Não percebem que esta gente utilizam uma linguagem própria, inventada por eles para desesperar os cidadãos pacíficos? Será que eles não entenderam o que significa o gesto de abrir a boca, engolir e mastigar que fiz antes? Em qualquer lugar do mundo isso quer dizer : "Tenho fome".
Quando Ned Land pronunciou estas palavras, a porta se abriu e entrou um criado. Trazia-nos roupas, jaquetas e calças impermeáveis, confeccionadas com um tecido desconhecido. Vestimos depressa as roupas. Enquanto isso, o criado, mudo ou talvez surdo, pôs a mesa com três talheres.
- Parece que a situação está melhorando - disse Conselho.
- Não acredito - respondeu o irascível arpoador. - Que comida querem vocês que esses homens nos dêem? Fígado de tartaruga, filé de tubarão e costeletas de foca?
- Vamos esperar! - sugeriu o impassível Conselho.
Sentamos à mesa. As travessas cobertas foram alinhadas sobre a toalha. Tudo estava certo, e se não houvesse luz, teria acreditado estarmos no restaurante do melhor hotel de Londres. Todavia devo dizer que na ceia faltavam totalmente o pão e o vinho. A água era pura e cristalina, porém não agradou a Ned Land. Entre as iguarias que nos serviram figuravam diversos tipos de peixe, muito bem preparados; com relação aos outros pratos, não pude identifica-los; não era capaz de dizer a que reino - vegetal ou animal - pertenciam.
Quanto à baixela, pode-se dizer que era elegante e refinada. Em cada prato, xícara ou garfo constava uma letra, circunscrita por um lema, cujas palavras eram as seguintes : "Mobilis in mobili". A letra era um N.
A frase significava "movei no elemento movente". Era, sem dúvida, o lema do submarino, e o N devia ser a inicial do nome do enigmático personagem que comandava o navio.
Ned e Conselho não pensavam em tais assuntos : devoravam o alimento, e não demorei a seguir o exemplo deles.
Uma vez saciada a fome, sentimos a necessidade imperiosa de dormir.
- Agora sei que vou descansar como um bem aventurado - disse Conselho, num bocejo interminável.
- Pois eu já estou dormindo... - respondeu Ned Land.
Os dois, sem dizer mais nada, estenderam-se sobre a esteira da cabina e depois de alguns estantes estavam mergulhados em sono profundo. Quanto a mim, não consegui descansar de imediato. Após haver acalmado meus pensamentos, comecei a sentir uma vaga sonolência e, finalmente, cai num pesado torpor.
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