ANTÓNIO JOSÉ DA SILVA |
SEGUNDA PARTE |
Cena VI |
(Entram Dom Lancerote com uma luz na mão, e Semicúpio vestido de Ministro com vara na mão) |
Semicúpio: Não se assustem, minhas senhoras, que isto não é mais que uma diligência. Dom Lancerote: Vossa mercê poupou-me o trabalho de o ir procurar de manhã para lhe entregar um ladrão que tenho preso naquela capoeira. Semicúpio: A isso mesmo venho, que já tive quem disso me avisasse. Dona Nize: (à parte). Que será isto? Dona Clóris: (à parte). São infortúnios meus. Fagundes: (à parte). Demos com o pé na peia. Sevadilha: (à parte). Folgo por amor de Dom Tibúrcio. Semicúpio: Hoje todos hão de mamar o chasco, que a ninguém me hei de dar a conhecer. Ora, meu senhor, como foi este caso? Dom Lancerote: Suponha vossa mercê que acabada uma junta de Médicos, que vieram assistir a meu sobrinho, sendo já quase noite, estando eu assentado junto daquela Manjerona, que não me deixará mentir, veios descendo um homem por uma corda, e cuidando que eu era poial, me pôs o pé no cachaço. Semicúpio: Isso foi o mesmo que pôr-lhe o pé no pescoço: não há maior desaforo. Dom Lancerote: Assustei-me, não há dúvida, quando me vi daquela sorte oprimido; mas, tornando a mim, fui sobre ele e conhecendo que era ladrão, o prendi nessa capoeira donde a perspicaz diligência de vossa mercê saberá melhor obrar do que eu falar. Semicúpio: E como conheceu vossa mercê que era ladrão? Dom Lancerote: Pela cara, que era a mais horrenda que meus olhos viram. Semicúpio: (à parte). Estou já desenganado que sou feio. Dom Lancerote: Ande vossa mercê e verá. Semicúpio: Ah, sô ladrão, saia cá para fora. Dom Fuas: Vossa mercê vem enganado, porque eu (Entra) há maior desgraça! Sou um homem bem nascido. Semicúpio: (à parte). É Dom Fuas, quem me dera ver a D.Gil, que é o que cá me traz. Dom Lancerote: Senhor, este não é o ladrão que eu encerrei. Semicúpio: (à parte). Já que vê este não é tão feio como vossa mercê diz; vejamos se está lá mais algum? Oh, cá está mais outro; venite ad cam para foram. Ai, que é D. Gil! Já estou descansado. Dom Lancerote: Também não é este o ladrão, que eu aqui encerei. Dom Gilvaz: Claro está que não sou eu, pois eu graças a Deus não necessito de furtar. Dom Lancerote: E que faziam vossas mercês aqui, se não eram ladrões? Semicúpio: Essa inquirição me pertence a mim que sou juiz privativo desta causa; e vossa mercê, meu amo, não se costume a mentir aos Ministros de vara grossa, dizendo-me que o ladrão era feio e horrendo, quando vemos que estes senhores são mui bem estreados. Dom Lancerote: Senhor Juiz, por vida minha, que era o mais feio homem que vi em meus dias. Semicúpio: Cale-se, não minta, que o hei de mandar carregar de ferros. Dom Lancerote: Ora, senhor, torne vossa mercê a ver a capoeira, que assim como achou dois, que eu não meti, talvez que ache o que eu encerrei. Semicúpio: Já não tenho mais que buscar. Dom Lancerote: Faça-me esse gosto que pode lá estar ainda mais algum. Sevadilha: Isso que se perde? Veja, Senhor Doutor. Semicúpio: Bem sei que vou debalde, mas eu vou: mas, não, entre vossa mercê, que me não quero encher de piolhos; ande, que lhe dou patente de quadrilheiro. Dom Lancerote: Eu vou, que quero agora apurar este enigma. Ai, que ele aqui está! Não o disse eu? Semicúpio: Traga-o cá para fora. Dom Lancerote: Ei-lo aqui. Mas, que vejo! Não sois vos, meu Sobrinho. Dom Tibúrcio: Eu sou, por meus pecados. Dom Lancerote: Eu estou besta em besta. Semicúpio: Este sim, que é o ladrão, que tem horrendíssima cara; todos três venham comigo. Dona Nize: (à parte). Ai, Dom Fuas, que estou sem alma! Dona Clóris: (à parte). Ai, Dom Gil, que estou sem vida! Dom Lancerote: Senhor, advirto que este é meu sobrinho. Semicúpio: Por ser seu sobrinho, não pode ser ladrão? Dom Lancerote: Senhor, ele mal podia descer pela corda, pois estava doente de cama. Semicúpio: Pois acaso ele dorme na capoeira? Dom Lancerote: Não senhor. Semicúpio: Se não dorme, que fazia nela feito socius criminis destes dois machacazes? Dom Lancerote: Sobrinho, a que vieste à capoeira? Dom Tibúrcio: Eu, senhor, estando... Semicúpio: Chitom, não me usurpe a jurisdição; já disse que estas averiguações só a mim me pertencem: vamos andando ad cagarronem. Dom Lancerote: Não importa: ide, sobrinho, que Deus é grande. Dom Tibúrcio: A minha inocência me livrará. Dom Lancerote: Como é a sua graça, meu senhor? Semicúpio: O Bacharel Petrus in cunctis, Juiz de fora daqui com alçada na vara até o ar. Dom Lancerote: Pois, Senhor Bacharel Petrus in cunctis, saiba vossa mercê de caminho, que também me furtaram um capote de Saragoça em muito bom uso. Semicúpio: Capote de Saragoça é caso de devassa: notificados vossas mercês todos para que em amanhecendo venham jurar à minha cada sobre este furto. ] Dom Lancerote: E aonde mora vossa mercê? Semicúpio: Junto a um Dom Gilvaz, que mora... Dom Lancerote: Já sei, eu perguntarei. Semicúpio: Pois lá estará quem lhe responda. Dom Gilvaz: (à parte). Ai, que é Semicúpio! Agora repar, já estou sem susto. Semicúpio: Vamos: amanhã todos à minha casa, sob pena de prisão. Dom Fuas: Ai, Nize, que as tuas falsidades me puseram neste estado! Dom Tibúrcio: Tio, trate logo de soltar-me. (Vai-se). Dom Gilvaz: Quem não deve, não teme. (Vai-se). Dom Lancerote: Que mal sossegarei esta noite, indo preso meu sobrinho, e não aparecer o ladrão que eu prendi! Não há homem mais desgraçado! (Vai-se). Dona Nize: Tal estou de sentimento que até me faltam as lágrimas para o alívio. (Vai-se). Fagundes: Eis aqui os Alecrins de Manjeronas: coisas de ervas é pra bestas. (Vai-se). Sevadilha: E de que escapou Semicúpio! Também alguma boa alma rezou por ele. (Vai-se). Dona Clóris: Ai, D. Gil, que a tua desgraça será a causa de minha morte! (Vai-se). |