ANTÓNIO JOSÉ DA SILVA
Guerras do Alecrim e da Manjerona

Cena V

(Entram Dom Fuas e Fagundes)

Fagundes: Entre, Senhor Doutor, aqui vem este senhor, que também se entende muito bem.

Dom Fuas: Neste instante chego de fora da terra, quando logo me chamou esta mulher que viesse a ver um enfermo.

Dom Lancerote: Já era escudado; porém, entre e sente-se.

Dona Clóris: Nize, Dom Fuas compete nas finezas com D. Gil.

Dona Nize: Não me pesa.

Dom Fuas: (à parte). Aqueles são D. Gil e Semicúpio; estou ardendo!

Semicúpio: Ah, Senhor, não vês a D. Fuas também como gente?

Dom Gilvaz: Já sei.

Dom Tibúrcio: Ai, minha barriga, que morro! Acuda-me, Senhor Doutor.

Semicúpio: Agora vou a isso: ora, diga-me, que lhe dói?

Dom Tibúrcio: Tenho na barriga umas dores mui finas.

Semicúpio: Logo as engrossaremos; e tem o ventre túmido, inchado, e pululante?

Dom Tibúrcio: Alguma coisa.

Semicúpio: Vossa mercê é casada, ou solteira?

Dom Tibúrcio: Por que, Senhor Doutor?

Semicúpio: Porque os sinais são de prenhe.

Dom Lancerote: Não, senhor, que meu sobrinho é macho.

Semicúpio: Dianteiro, ou traseiro?

Dom Lancerote: Ui, Senhor doutor! Digo, que meu sobrinho é varão.

Semicúpio: De aço ou de ferro?

Dom Lancerote: É homem, não me entende?

Semicúpio: Ora, acabe com isso, eis aqui como por falta de informação morrem os doentes; pois se eu não especulara isso com miudeza, entendendo que era macho, lhe aplicava uns cravos, e se fosse varão, umas limas; e como já sei que é homem, logo veremos o que se lhe há de fazer.

Dom Lancerote: Eis aqui como gosto de ver os Médicos assim especulativos.

Semicúpio: Pois o mais é asneira; diga-me mais, ceou demasiadamente a noite passada?

Dom Tibúrcio: Tanto como a futura; porque desde que me acabaram as chouriças, que trouxe no alforje, me tem meu tio posto a pão e laranja.

Dom Lancerote: Aquilo são delírios, Senhor Doutor.

Semicúpio: Assim deve ser por ainda que não queira, pois conforme ao aforismo:

Cum barriga dolet, caetera membra dolent.

Dom Tibúrcio: Não são delírios, Senhor Doutor, que eu estou em meu juízo perfeito.

Semicúpio: Pior, pois quem dize que tem juízo, não o tem.

Dom Lancerote: Senhor Doutor, o homem está alucinado, depois que um fantasma, que saiu de uma caixa, o desancou; e sobre isso a grande pena que tem tomado de umas moças, que aqui introduziu em casa, enganando-as, de cuja insolência se me veio aqui a mãe queixar, que era mulher de bem, ao que parecia.

Semicúpio: Ela é muito criada de vossa mercê.

Dom Tibúrcio: Deixemos isso; o caso é que a minha barriga não está boa.

Semicúpio: Cale-se, que ainda há de ter uma boa barrigada; deite a língua fora.

Dom Tibúrcio: Ei-la aqui.

Semicúpio: Deite mais, mais.

Dom Tibúrcio: Não há mais.

Semicúpio: Essa bastará; é forte linguado! Tem mui boa ponta de língua! Vejam, vossas mercês, Senhores Doutores.

Dom Gilvaz: A língua é de prata.

Dom Fuas: Úmida está bastantemente.

Semicúpio: Venha o pulso: está intermitente, lânguido, e convulsivo; ó menina, tomou as águas?

Sevadilha: Ainda não veio o aguadeiro.

Semicúpio: Pergunto se o doente fez a mija?

Dom Tibúrcio: Nesta casa não há urinol.

Semicúpio: Pois tome-as ainda que seja numa frigideira em todo o casa, guia per orinis optime cognoscitur morbus.

Dom Lancerote: Ah, senhores, grande Médico!

Dona Nize: E D. Fuas como está melancólico! (Para Dona Clóris).

Dona Clóris: Estará cuidando na receita.

Semicúpio: Ora, senhores, capitulemos a queixa. Este fidalgo(se é que o é, que isto não pertence à Medicina) teve uma colórica procedida de paixões internas; porque o espírito agitado da representação fantasmal e da investida feminil, retraindo-se o sangue aos vasos linfáticos, deixando exauridas as matrizes sanguinárias, fez uma revolução no intestino reto; e como a matéria crassa e viscosa que havia nutrir o suco pancreático, pela sua turgência se achasse destituída do vigor, por falta do apetite famélico, degenerou em líquidos: estes, pela sua virtude acre e mordaz, vilicando e pungindo as túnicas e membranas do ventrículo, exaltaram-se os sais fixos e voláteis por virtude do acido alcalino, de sorte que fez com que o senhor andasse com as calças na mão toda esta noite: in calsis andatur, qui ventre evacuar, disse Galeno.

Dom Lancerote: Eu não lhe entendi palavra.

Dom Tibúrcio: Eu morro, sem saber de que.

Semicúpio: Conhecida a queixa, votem o remédio, que eu, como mais antigo, votarei em último lugar.

Dom Gilvaz: Eu sou de parecer que o sangrem.

Dom Fuas: Eu, que o purguem.

Semicúpio: Senhores meus, a grande queixa, grande remédio; o mais eficaz é que tome umas bichas nas meninas dos olhos, para que o humor faça retrocesso debaixo para cima.

Dom Tibúrcio: Como é isso, de bichas nas meninas dos olhos?

Semicúpio: É um remédio tópico, não se assuste que não é nada.

Dom Tibúrcio: Vossa mercê me quer cegar?

Semicúpio: Cale-se aí; quantas meninas tomam bichas, e mais não cegam.

Dom Lancerote: Calai-vos, sobrinho, que ele Médico é, e bem o entende.

Dom Tibúrcio: Por vida de Dom Tibúrcio, que primeiro há de levar o diabo ao Médico, e à receita, que em tal consinta. (Ergue-se).

Semicúpio: Deite-se, deite-se; o homem está maníaco, e furioso.

Dom Lancerote: Aquietai-vos, sois alguma criança?

Dona Nize: Ora Senhores Doutores, já que vossas mercês aqui se acham, bem é que os informemos, eu e minha irmã, de várias queixas que padecemos.

Semicúpio: Inda mais essa? Ora digam.

Dona Clóris: Senhor, o nosso achaque é tão semelhante que com uma só receita se podem curar ambos os males.

Dona Nize: Não há dúvida que o meu achaque é o mesmo em carne que o de minha irmã.

Semicúpio: Achaque em carne pertence à Cirurgia.

Dona Clóris: Que como dormimos ambas, se nos comunicou o mesmo achaque; e assim, senhor, padecemos umas ânsias no coração, umas melancolias n'alma, uma inquietação nos sentidos, uma travessura nas potencias; e finalmente, Senhor Doutor, é tal este mal, que se sente sem se sentir; que dói sem doer; que abrasa sem queimar; que alegra entristecentos, e entristece alegrando.

Semicúpio: Basta, já sei, isso é mal Cupidista.

Dom Lancerote: O que pe mal Cupidista, que nunca tal ouvi?

Semicúpio: É um mal da moda.

Dona Nize: Que remédio nos dão vossas mercês?

Dom Fuas: Eu dissera que o óleo da Manjerona era excelente remédio.

Dom Gilvaz: O verdadeiro para essa queixa são as fumaças do Alecrim.

Dom Fuas: Ui, Senhor Doutor, a Manjerona é um excelente remédio.

Dom Gilvaz: Nada chega ao alecrim, cujas excelentes virtudes são tantas, que para numera-las não acha número o algarismo: e não faltou quem discretamente lhe chamasse planta bendita.

Dom Fuas: Se entramos a especular virtudes, as da Manjerona são mais que as da erva santa.

Semicúpio: Daqui a pô-la bi altar não vai nada.

Dom Fuas: A Manjerona é planta de Vênus, de cujos ramos se coroa Cupido, e para o mal Cupidista não pode haver melhor remédio, que uma planta de Vênus, pois se notarmos a perfeição com que a natureza a revestiu daquelas mimosas folhinhas, para que todo o ano sejam jeroglífico da imortalidade; aquele suavíssimo aroma, de cuja fragrância, é hidrópico o olfato, ela é a delicia da Flora, o mimo de Abril, e a esmeralda no anel da primavera.

Semicúpio: É verdade; não há dúvida.

Dona Nize: (à parte). Estou tão contente!

Dom Gilvaz: O Alecrim, senhor, pela sua excelência é titular na republica das plantas, cujas flores, depois de serem bela imitação dos cerúleos globos, são a doçura do mundo nos melífluos ósculos das abelhas.

Semicúpio: Todavia a matéria é de apicibus.

Dom Gilvaz: Ele é a coroa dos jardins; o lenço vegetável das lagrimas da Aurora; mas chamas é Fênix; nas águas Rainha; e finalmente é o antídoto universal de todos os males, e a mais segura tabua da vida, quando no mar das queixas sopram os ventos inficionados; e para prova deste sistema repetirei traduzido em Português um Epigrama do Proto-Médico Avicena, Poeta Arábico.

>>>Soneto

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