TEATRO

 
GIL VICENTE
Auto da Barca do Inferno
 
 
 
Vêm Quatro Cavaleiros cantando, os quais trazem cada um a Cruz de Cristo, pelo qual Senhor e acrecentamento de Sua santa fé católica morreram em poder dos mouros. Absoltos a culpa e pena per privilégio que os que assi morrem têm dos mistérios da Paixão d'Aquele por Quem padecem, outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontífices da Madre Santa Igreja. E a cantiga que assi cantavam, quanto a palavra dela, é a seguinte:

CAVALEIROS

À barca, à barca segura, barca bem guarnecida, à barca, à barca da vida!

Senhores que trabalhais pola vida transitória, memória , por Deus, memória deste temeroso cais! À barca, à barca, mortais, Barca bem guarnecida, à barca, à barca da vida!

Vigiai-vos, pecadores, que, depois da sepultura, neste rio está a ventura de prazeres ou dolores! À barca, à barca, senhores, barca mui nobrecida, à barca, à barca da vida!

E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando, com suas espadas e escudos, disse o Arrais da perdição desta maneira:

DIABO

Cavaleiros, vós passais e nom perguntais onde is?

1º CAVALEIRO

Vós, Satanás, presumis?

Atentai com quem falais!

2º CAVALEIRO

Vós que nos demandais? Siquer conhecê-nos bem: morremos nas Partes d'Além, e não queirais saber mais.

DIABO

Entrai cá! Que cousa é essa? Eu nom posso entender isto!

CAVALEIROS

Quem morre por Jesu Cristo não vai em tal barca como essa!

Tornaram a prosseguir, cantando, seu caminho direito à barca da Glória, e, tanto que chegam, diz o Anjo:

ANJO

Ó cavaleiros de Deus, a vós estou esperando, que morrestes pelejando por Cristo, Senhor dos Céus! Sois livres de todo mal, mártires da Santa Igreja, que quem morre em tal peleja merece paz eternal.

E assi embarcam.

 
 
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