TEATRO

 
GIL VICENTE
Auto da Barca do Inferno
 
 
Vem o Fidalgo e, chegando ao batel infernal, diz:

FIDALGO

Esta barca onde vai ora, que assi está apercebida?

DIABO

Vai pera a ilha perdida, e há-de partir logo ess'ora.

FIDALGO

Pera lá vai a senhora?

DIABO

Senhor, a vosso serviço.

FIDALGO

Parece-me isso cortiço...

DIABO

Porque a vedes lá de fora.

FIDALGO

Porém, a que terra passais?

DIABO

Pera o inferno, senhor.

FIDALGO

Terra é bem sem-sabor.

DIABO

Quê?... E também cá zombais?

FIDALGO

E passageiros achais pera tal habitação?

DIABO

Vejo-vos eu em feição pera ir ao nosso cais...

FIDALGO

Parece-te a ti assi!...

DIABO

Em que esperas ter guarida?

FIDALGO

Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi.

DIABO

Quem reze sempre por ti?!.. Hi, hi, hi, hi, hi, hi, hi!... E tu viveste a teu prazer, cuidando cá guarecer por que rezam lá por ti?!...

Embarca - ou embarcai... que haveis de ir à derradeira! Mandai meter a cadeira, que assi passou vosso pai.

FIDALGO

Quê? Quê? Quê? Assi lhe vai?!

DIABO

Vai ou vem! Embarcai prestes! Segundo lá escolhestes, assi cá vos contentai.

Pois que já a morte passastes, haveis de passar o rio.

FIDALGO

Não há aqui outro navio?

DIABO

Não, senhor, que este fretastes, e primeiro que expirastes me destes logo sinal.

FIDALGO

Que sinal foi esse tal?

DIABO

Do que vós vos contentastes.

FIDALGO

A estoutra barca me vou. Hou da barca! Para onde is? Ah, barqueiros! Não me ouvis? Respondei-me! Houlá! Hou!... (Pardeus, aviado estou! Cant'a isto é já pior...) Oue jericocins, salvanor! Cuidam cá que são eu grou?

ANJO

Que quereis?

FIDALGO

Que me digais, pois parti tão sem aviso, se a barca do Paraíso é esta em que navegais.

ANJO

Esta é; que demandais?

FIDALGO

Que me leixeis embarcar. Sou fidalgo de solar, é bem que me recolhais.

ANJO

Não se embarca tirania neste batel divinal.

FIDALGO

Não sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria...

ANJO

Pera vossa fantesia mui estreita é esta barca.

FIDALGO

Pera senhor de tal marca nom há aqui mais cortesia?

Venha a prancha e atavio! Levai-me desta ribeira!

ANJO

Não vindes vós de maneira pera entrar neste navio. Essoutro vai mais vazio: a cadeira entrará e o rabo caberá e todo vosso senhorio.

Ireis lá mais espaçoso, vós e vossa senhoria, cuidando na tirania do pobre povo queixoso. E porque, de generoso, desprezastes os pequenos, achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso.

DIABO

À barca, à barca, senhores! Oh! que maré tão de prata! Um ventozinho que mata e valentes remadores!

Diz, cantando:

Vós me veniredes a la mano, a la mano me veniredes.

FIDALGO

Ao Inferno, todavia! Inferno há i pera mi? Oh triste! Enquanto vivi não cuidei que o i havia: Tive que era fantesia! Folgava ser adorado, confiei em meu estado e não vi que me perdia.

Venha essa prancha! Veremos esta barca de tristura.

DIABO

Embarque vossa doçura, que cá nos entenderemos... Tomarês um par de remos, veremos como remais, e, chegando ao nosso cais, todos bem vos serviremos.

FIDALGO

Esperar-me-ês vós aqui, tornarei à outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi. Dia, Que se quer matar por ti?!...

FIDALGO

Isto bem certo o sei eu.

DIABO

Ó namorado sandeu, o maior que nunca vi!...

FIDALGO

Como pod'rá isso ser, que m'escrevia mil dias?

DIABO

Quantas mentiras que lias, e tu... morto de prazer!...

FIDALGO

Pera que é escarnecer, quem nom havia mais no bem?

DIABO

Assi vivas tu, amém, como te tinha querer!

FIDALGO

Isto quanto ao que eu conheço...

DIABO

Pois estando tu expirando, se estava ela requebrando com outro de menos preço.

FIDALGO

Dá-me licença, te peço, que vá ver minha mulher.

DIABO

E ela, por não te ver, despenhar-se-á dum cabeço!

Quanto ela hoje rezou, antre seus gritos e gritas, foi dar graças infinitas a quem a desassombrou.

FIDALGO

Cant'a ela, bem chorou!

DIABO

Nom há i choro de alegria?..

FIDALGO

E as lástimas que dezia?

DIABO

Sua mãe lhas ensinou...

Entrai, meu senhor, entrai: Ei la prancha! Ponde o pé...

FIDALGO

Entremos, pois que assi é.

DIABO

Ora, senhor, descansai, passeai e suspirai. Em tanto virá mais gente.

FIDALGO

Ó barca, como és ardente! Maldito quem em ti vai!

Diz o Diabo ao Moço da cadeira:

DIABO

Nom entras cá! Vai-te d'i! A cadeira é cá sobeja; cousa que esteve na igreja nom se há-de embarcar aqui. Cá lha darão de marfi, marchetada de dolores, com tais modos de lavores, que estará fora de si...

À barca, à barca, boa gente, que queremos dar à vela! Chegar ela! Chegar ela! Muitos e de boamente! Oh! que barca tão valente!

>>>>>>Vem um Onzeneiro, e pergunta ao Arrais do Inferno...
 
 
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