JOSÉ AUGUSTO MOURÃO

A máscara dos objectos
convocação para a leitura (3)


 
A semiótica dos objectos

Deixemos de lado o ponto de vista sócio-antropológico sobre os objectos, tal como é definido por Wendy Leeds Hurwitz (1). O campo dos objectos é um campo de fronteira para a semiótica. Este limite encontramo-lo na oposição entre os “objectos do dizer” e os “objectos do fazer”, entre as palavras e as coisas . O funcionamento semiótico dos objectos não se confunde nem com a utilização, nem com o uso: é uma determinada maneira que tem o sistema cognitivo de tratar do objecto: fornece informações que produzem efeitos contextuais (2). Como se sabe, Agostinho define o signo como algo que, além da impressão que produz nos sentidos, traz em consequência qualquer outra coisa ao pensamento. A coisa é o que nunca foi usado como signo de outra coisa. A coisa é mediada pelo signo. A coisa e o signo estão, portanto, ligadas pelo processo de semiose. Na teoria de Peirce é o Objecto que determina o Signo que, por sua vez determina o Interpretante. Na frase “O sal é salgado”, um dos objectos do sintagma é “salgado”. Se pretende significar a sensação de salgado que tem ao provar o sal, então “salgado” é entendido como um Objecto imediato. No entanto se pretendemos significar o processo químico pelo qual o sal é salgado, então “salgado” é entendido como um Objecto dinâmico. O Objecto imediato é o Objecto enquanto conhecido no signo – depende da forma como é representado pelo Signo, ou seja, é aquilo que se supõe que determinado objecto é. Objecto dinâmico é o Objecto como é – como real, que não depende de nenhum aspecto em particular, ou seja, é uma representação real do objecto.

Deixemos de lado as definições mais tradicionais do signo e passemos à semiótica que, na esteira de A. J. Greimas, é hoje praticada por vários semioticistas de renome. As palavras servem para “dizer”, os objectos servem para “fazer” ou “fazer-fazer”. A semiótica não é apenas uma ciência da ontologia mas da axiologia, e isto a partir do momento em que “o homem concebe o mundo e o organiza humanizando-o” (Greimas, 1970, 31) através de sistemas de significantes. Se a semiótica é uma teoria da significação, ela pode considerar os textos e os objectos como suportes do sentido. A existência semiótica assenta fundamentalmente na relação estrutural dos signos investidos no objecto, valores assim produzidos, reconhecidos, trocados através dele, sem se confundir com a problemática do sujeito e do objecto (3). Comecemos, pois, pelo estatuto do objecto semiótico, começando pela enunciação. Não podemos, falando de objectos, ignorar que existe entre o enunciador e o objecto produzido uma relação de orientação, uma relação tensiva, que vai, de forma geral, do sujeito que enuncia ao enunciado produzido. Também se pode imaginar uma relação que vai do objecto ao enunciatário. É o caso do “objecto” estético: aquilo a que chamamos sujeito estético estaria neste caso em posição de objecto e, inversamente, o dito objecto teria a função de sujeito ao exercer uma influência patémica sobre o seu admirador. Já sabíamos que o observador é parte integrante da observação, não sendo dissociável do observado. J. Fontanille capta hoje, melhor do que ninguém, o que está em jogo na semiótica dos objectos. Escreve ele: “É claro que a semiótica dos objectos não subordina a intencionalidade à comunicação: os objectos significam mesmo quando ignoramos em que perspectiva, por quem e para quem foram concebidos, enquanto, por vezes apenas resultam de processos naturais. Também a enunciação e os actos que actualizam a significação não assentam neste caso na estrutura clássica “destinador/mensagem/destinatário”, mas na estrutura recentemente encontrada “Sujeito/interface do sujeito/Objecto/interface mundo/Mundo” (4). É impossível, portanto, dissociar o sujeito da enunciação e o objecto, dada a tensão modal que os liga. “Cair em êxtase” (diante de qualquer coisa) leva-nos a pensar que há uma quase sobreposição do sujeito e do objecto da enunciação. Isto significa, entre outras coisas, que não há, antes do gesto da enunciação, qualquer significação determinada. Pense-se nos “lexemas”, essas entradas do dicionário, simples virtualizações de sentido que só se actualizam no momento da sua enunciação concreta pelo enunciador, num contexto concreto.

Se a enunciação é sempre única, o objecto nunca é captável como tal uma vez por todas: há uma ligação indissociável entre o objecto “narrado” e “a maneira de narrar o narrado”, como diria G. Genette. Poder-se-ia dizer que aquilo a que se chama geralmente o “objecto” em semiótica é sempre de ordem fugitiva, havendo apenas “objectos” que são sempre diferentes, relativamente às mudanças de pontos de vista enunciativos. À opinião de Bronner: “The object derives power from its fixity” (Bronner, 1986, p. 2) prefiro a opinião de quem tem trabalhado a socio-semiótica com grande alcance: E. Landowski. Este autor introduziu o tema da interobjectividade , constitutiva das relações inter-objectais . Este neologismo tem dois sentidos: por um lado o da existência de princípios que regulam as relações entre os objectos; por outro lado, o da regulamentação imposta pela organização dos objectos aos actores sociais (5). Em qualquer processo de significação, a ligação entre as partes dum objecto pode ser constringente, imposta por recção (se gravata então camisa) ou de relacionamento livre, dado por simples combinação (camisa e calças). No primeiro caso, a ligação interobjectiva é muito forte. No segundo caso, esta ligação enfraquece-se, tornando-se uma ligação de gosto, conforme casa ou não com as cores, os estilos. Alexandro Zinna fala ainda de uma terceira relação, a que chama aleatória, mais visível no mundo natural. Na perspectiva de Landowsk, a relação dos objectos entre si, ou como mediadores entre sujeitos, assenta no postulado mais geral da composição dos objectos como mise en procès . Os móveis duma sala, o uso dos objectos mundializados, as relações que o tempo produz entre os objectos e a patine, assim como os robôs informáticos que interagem entre si são os aspectos que regulam a relação dos objectos entre si. Mas a compra de bens num supermercado, a tipologia dos espaços de interacção criados pelo arranjo dos interiores dos comboios, o uso do telemóvel nas trocas comunicativas são diferentes formas de mediação que regulam a interacção entre os sujeitos sociais (6).

Michela Deni é um nome de referência quando se trata de semiótica dos objectos. A ela se deve o aprofundamento da questão da factitividade e o questionamento do conceito de affordance , entendido como “convite ao emprego”, repensado em termos de enunciação. Afinal, as affordances são apenas marcas e dispositivos enunciativos que emergem, enquanto aspectos da componente configuracional do objecto, no interior da interacção entre utilizador e objectos usuais (7). Antes, porém, estão as contribuições de Jean-Marie Floch, as primeiras reflexões semióticas de Roland Barthes e de Umberto Eco, mas também Bruno Latour e Donald Norman. Na sua conferência sobre a semântica do objecto (Barthes 1964b), Roland Barthes esboçava um estudo da dimensão semiótica dos objectos da vida quotidiana distinguindo valor transitivo (o seu valor de uso) e valor significante. Compramos coisas não só pelo que podem elas fazer, mas também pelo que elas significam. A aparição das “marcas” e da publicidade vão obrigar a distinguir entre valores transitivos e valores significantes. Reconhecia-se já uma clara dimensão factitiva dos objectos, isto é a capacidade potencial dos objectos para comunicar eficazmente as modalidades de uso que actualizam sequências de acção efectivas. Mas a noção de transitividade era insuficiente para explicar, por exemplo, as obras de arte.

 
Notas

(1) Wendy Leeds-Hurwitz, Objects as Sign and Code , L. Erbaum, 1993.

(2) Alain Benoits, «Le fonctionnement sémiotique des objets », in Semiotica 123- ¾, 1999, p. 107.

(3) Jean-Jacques Boutaud, Sémiotique et communication. Du signe au sens , Paris, L'Harmattan, 1998, p. 94.

(4) Jacques Fontanille, in Versus, 91/92 – janvier-août, 2002, citado por Alvise Mattozi, «Compte Rendu, in NAS, 89, 90, 91, 2003, p. 132.

(5) Eric Landowski w Gianfranco Marrone, (eds., “La société des objets”, Protée , vol. 29, nº 1, printemps 2001, Chicoutimi ; La società degli oggetti : problemi di interoggettività , Roma, Meltemi, 2002.

(6) Alexandro Zinna, in NAS, 84,85, 2002, p. 71.

(7) Michela Deni, Oggetti in azione. Semiotica degli oggeti dalla teoria all'analisi , Angeli, Milano, 2002 (dir.) Michela Deni, La semiotica degli oggetti , Versus, 91/92- janvier-août, 2002. V

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