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O campo dos objectos |
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“Les objets, ces mystérieuses armures sous lesquelles nous attend, nocturne et dénudé, le désir, ces pièges de velours, de bronze, de fils d'araignée que nous jetons à chaque pas» (1). Os objectos nunca são apenas objectos, são objectos-valor, objectos de desejo. Não obedecem apenas ao princípio da “luz comum” ou da sua dimensão factitiva. Se comunicam, manipulam, vampirizam. Passiva ou invisivelmente. O livro, por exemplo, é invisível. Pertence ao género dos semióforos - objectos que não têm utilidade, que representam o invisível, dotados de um significado que não exposto ao olhar, objectos não marcados pela usura. Há objectos puramente celebrativos, por exemplo, o Só e Maravilha de um beijo dado mais tarde. "Um semióforo acede à plenitude do seu ser semióforo quando se torna uma peça de celebração" (2). Outro aspecto a não negligenciar: a dimensão intersubjetiva criada pelos objectos é evidente não apenas no caso dos espaços mobilados ou dos supermercados. Neste caso, em particular, a dimensão, o volume e as formas dos móveis determinam a configuração do espaço de interacção. Llansol fala de “objectos-pessoas”: “Estava aterrorizada pela consciência fulminante de que existem objectos-pessoas, tal como pessoas que deixam que possuir o dominar trace o seu destino” (...) “o louceiro tem uma voz aguda e uma tal existência, ou presença, que envolve todos os objectos que, à noite, coloquei nas prateleiras” (BDT, 32). Os objectos aproximam-se de nós, sendo ao mesmo tempo palavras, gestos, movimentos, sistemas de luz, imagens, conversam entre si e amiúde falam de nós. O objecto a que Ghérasim Luca chama “La lettre L” é “indiferente e mudo enquanto pede para ser encontrado; uma vez encontrado para ser oferecido, começa a murmurar entre mim e Breton uma língua mágica e negra, tão perto do sonho e de uma língua fundamental” (3). Como reconhecer a presença dessa comunidade inanimada? Através da representação e da intensificação. O primeiro efeito da representação consiste em presentificar o ausente, como se aquilo que regressa fosse o mesmo e por vezes melhor, mais intenso do que se fosse o mesmo. Assim a fotografia do desaparecido na mesa da sala. A força admodum divina da pintura reside no facto de a imagem mostrar os mortos aos vivos. A força da imagem é tanto, nos seus efeitos, força de presentificação do ausente (a pintura torna os ausentes presentes como o faz a amizade) como energia de auto-apresentação (L. Marin). Em lugar de algo que está algures presente, eis presente um dado, eis aqui uma imagem. Os objectos representam, no sentido em que manifestam uma presença, em que dão a ver uma imagem. Têm a sua história transformacional e interactiva. Se podemos falar de “interobjectividade”, de “próteses recíprocas” entre objectos e sujeitos (Fabbri) é que os objectos transportam consigo a memória das casas, dos rostos e dos nomes e nos afectam. Há objectos que (nos) falam da inenarrável beleza de viver e contemplar. Que se levantam do chão da realidade quotidiana onde a transcendência encarnou e que anaforizam formas de vida, algumas já perdidas, outras em trânsito, defectivas e frágeis. Os objectos não são sempre neutros e indiferentes. A boneca de Luca indispõe-no: “Je dépose l'objet dans une cachette, car son aspect me cause un dégoût qui accroît mon irritation” (4). Os objectos que viajam com a narradora de Um beijo dado mais tarde, desde o jarro de faiança verde à tesoura para cortar os pavios das velas , à noite de Natal e ao tronco de leitura têm sobre ela um poder de irradiação, de vibração, são objectos de amor ou de repulsa. A porta de um beijo dado mais tarde é uma porta apaixonada: “é a paixão que a porta sente por nós que nos integra” (5). |
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Notas | |
(1)Ghérasim Luca, op. cit. , p. 41. (2) K. Pomian, "Histoire culturelle, histoire des sémiophores", in J. P. Rioux/J. F. Sirinelli, Pour une histoire culturelle, Seuil, 1997, p. 72. (3) Ghérasim Luca, op.cit. , p. 21. (4) Ghérasim Luca, op. cit. , p. 41 (5) Maria Gabriela Llansol, um beijo dado mais tarde , rolim, 1991, p. 64. |
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