JOSÉ AUGUSTO MOURÃO

 

O quinto evangelho
a palavra que falta

 

O evangelho

A formação das tradições evangélicas é considerada em geral à luz e na continuidade da haggada e da liturgia judaicas intertestamentárias. A celebração judeo-cristã da Páscoa cristaliza a formação da tradição evangélica, enquanto a saída do Egipto é actualizada na anamnese da saída do Servidor e do Cordeiro. Isto é particularmente visível em Marcos 8-16 bem como em todo o evangelho de João. Mais profundamente do que o cerigma, a catequese, a missão, a celebração da Páscoa estruturou o conjunto da anamnese da obra de Cristo. Admite-se hoje a teoria da colecção dos logia foi formada em Antioquia por volta dos anos 40, utilizada por Mateus e Lucas. O Evangelho de Marcos teria sido terminado em Roma no quadro da missão aos pagãos e sob a ameaça da perseguição nos anos 60. Os discursos de revelação de Jesus no 4º evangelho podem ser compreendidos como anamneses pascais, eucarísticas e baptismais, uma tradição que se confirma ainda no século II na Asia menor, onde Melitão de Sardes compunha por volta de 170 uma “homilia sobre a Páscoa” de tipo hagádico. Mateus é datado após a morte de Pedro, entre 65 e 70. Lucas e Actos é datado depois da saída de Paulo da cadeia e antes da perseguição de Nero, seja entre 62 e 64.

“Evangelho” traduz-se por boa nova, feliz mensagem anunciada pelo euanggelos, o mensageiro da alegria, diz a Setenta. Rm 2, 16; 16, 25. Orígenes (III): “nos textos de Paulo, escreve, não encontramos livro que se chame euaggelion , mas tudo o que ele disse e proclamou era euaggelion, anúncio” (1993, 73). O anúncio não se refere a um acontecimento futuro, mas a um facto presente. “ Euaggelion, escreve Orígenes, é um discurso ( logos) que contém para aquele que acredita a presença ( parousia ) dum bem, ou um discurso que anuncia que um bem esperado está presente” ( ibid ., 75). Não podemos separar o sentido do termo euaggelion do termo pistis e da parusia. Anúncio, fé, presença são termos que simultaneamente se conjugam. A carta aos Romanos é uma paráfrase do termo euaggelion (10). “O anúncio é poder ( dunamis ) de salvação para todos aqueles que acreditam” (Rm 1, 16). A fé é o ser em acto, a energeia do anúncio. Na realidade, euaggelion não é apenas um discurso, um logos que diz algo de algo, independentemente do lugar da sua enunciação e do sujeito que o escuta. Paulo diz: “o nosso anúncio não se produziu apenas num discurso, mas igalmente em potência e com muita plerophoria (1 Tes 1,5). Plerophoria não significa apenas “convicção”, mas levar à plenitude.

Se o Evangelho não é apenas uma narrativa, então o que é? Em muita teoria cultural há tendência para colocar a narrativa como a estrutura fundante de tudo, a base sobre a qual ordenamos as nossas vidas e acções. Mas a história de um acontecimento não é necessariamente o mesmo que o próprio acontecimento, e podem contar-se histórias acerca de outras coisas que não histórias, felizmente. Além disso, não há motivo para que os elementos básicos da narrativa não possam ser utilizados para outras finalidades. Por exemplo, tanto as histórias como os jogos de futebol consistem numa sucessão de acontecimentos. Mas um desafio de futebol não é em si próprio uma história, mesmo que sobre ele se possam contar histórias. As acções dentro do jogo não são acções narrativas. O que são então? O adjectivo que Aarseth propõe (1995) para esta função é ergódico , que implica uma situação em que se produziu uma cadeia de acontecimentos (um percurso, uma sequência de acções, etc.) pelas diligências não triviais de um ou mais indivíduos ou mecanismos.

Como se sabe, a teoria dos sistemas abertos conhecidas em biologia em lógica (von Foerster, Atlan, etc.) postulam em vez de considerar uma perturbação como um ruído prejudicial para a transmissão duma mensagem (como o faz a teoria da informação), podemos encarar que uma perturbação se integra na estrutura que se lhe adapta renovando-se ou que lhe sucumbe repetindo-se. Deixa então de se falar de perturbação ou de ruído para se falar de acontecimento. O acontecimento é o testemunho da auto-organização dos sistemas abertos que são os organismos vivos e a fortiori o ser humano. Não há acontecimento senão num sistema aberto a um outro e como tal sujeito a modificação. Tudo o resto é “estrutura” ou “ruído”. Na biologia considera-se que esta capacidade de renovação da estrutura a partir do acontecimento passa por uma mudança de alfabeto: por um aumento do número de “letras” nas moléculas, por uma complexificação das operações entre si, em que o “organismo para o acontecimento” se apropria de determinados elementos do código pertencente aos outros sistemas com os quais está em interacção. No ser falante, este salto, o ruído, tornado acontecimento, supõe uma complexificação do aparelho psíquico que se apropria das capacidades de um outro. Este salto é a revelação , sempre suportada por uma palavra (ou imagem, gesto, voz – manifestações transverbais) . Para que o acontecimento seja uma revelação e não um dano destruidor, é preciso que o sujeito deixe de repetir e que se alargue ao máximo as suas capacidades simbólicas e imaginárias. Essa palavra incita o sujeito a apropriar-se do acontecimento, a adaptar-se-lhe e a renovar-se. Kristeva chama-lhe “o estado amoroso” (11). Mas há um segundo discurso que a associação “acontecimento-revelação” evoca e que é o discurso da religião sobre o estado limite da subjetividade. Deleuze alertava para não confundir o acontecimento com a sua natureza linguageira. A fronteira não passa entre a linguagem e o acontecimento de um lado, o mundo e os seus estados de coisas do outro, mas entre duas interpretações da relação da linguagem e do mundo. O acontecimento está dos dois lados simultaneamente, como aquilo que na linguagem se distingue da proposição e aquilo que no mundo se distingue dos estados de coisas. Donde a aplicação do par virtual-actual ao conceito de acontecimento. O acontecimento é inseparavelmente o sentido das frases e o devir do mundo (12).