JOSÉ AUGUSTO MOURÃO

 

O quinto evangelho
a palavra que falta

 

O Anticristo

O poder de atracção do cristianismo está nos seus começos. Não há biografia possível de Jesus. Os Evangelhos são testemunhos da fé dos discípulos, convencidos de que após a sua crucifixão ele vive, e relêem a sua existência a esta luz. Com divergências importantes. Não podemos, obviamente, pôr de lado o Jesus histórico – como tendeu a fazê-lo a exegese crítica da primeira metade do século XX – a favor apenas do Cristo confessado pelos cristãos. Peter Sloterdijk fala de comunidades incubadoras, multiculturais (13). Daí brotam os mosteiros, as heresias, os desvios de leitura, os evangelismos selvagens.

A ideia de um 5º Evangelho remonta, fiando-nos em P. Stoterdijk, ao projecto de re-composição do Novo Testamento em linguagem popular. De Otfried von Weissenburg, o padre-poeta da Renânia francófona, autor do Liber evangeliorum, uma epopeia evangeliária em cinco livros (14). “Estes cinco (livros) de que acabo de falar, se assim os reparti, mesmo se há apenas quatro livros nos Evangelhos, é porque a santa rectidão do seu número quatro santifica a irrectidão dos nosso cinco sentidos”. Avançando no tempo, deparamo-nos com tarefa semelhante na América dos Estados Unidos onde Thomas Jefferson se achou no dever de redigir uma nova versão dos Evangelhos, eliminando no antigo evangelho o que nele se tornou incompatível ao seu espírito de humanista e cidadão. “Com uma ingenuidade enérgica, o redactor das Luzes separa as palavras inaceitáveis de Jesus daquilo que Jesus teria forçosamente dito” O resultado é um caderno in octavo de 64 páginas, com doutrinas puras e depuradas de artifícios. Leão Tolstoi escreverá também o seu 5º evangelho: o caminho russo para a consciência do evangelismo e das Luzes (15). A 13 de Fevereiro de 1883, F. Nietzsche, com 38 anos, redige uma carta destinada ao seu editor nestes termos: “Tenho hoje uma boa notícia a anunciar-vos: dei um passo decisivo. Trata-se de uma obrazinha cujo título é Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Trata-se de uma ‘poesia', ou dum quinto Evangelho' ou de algo para que não existe ainda nome: de longe a mais séria, mas também a mais alegre das minhas produções e acessível a todos. Creio que produzirá um ‘efeito imediato'”. Zaratustra é o antigo profeta persa, mais conhecido por Zoroastro, cuja escolha Nietzsche justifica em Ecce Homo – Porque Sou Um Destino , 3). É Zaratustra, mestre do eterno retorno, como lhe lembram a águia e a serpente, quem ensina o sobre-humano, isto é, o tipo do homem excelente, aquele que representa a ultrapassagem da moral, a partir da veracidade, entendido como superação do homem do rebanho e do ressentimento. Este era um livro de edificação, o “verdadeiro livro do ar dos cimos”, um testamento. O imoralismo de Nietzsche consistirá uma estratégia antiniilista que reintroduz no corpo social a hierarquia, o espaço como dinamismo conflitual e a desconfiança relativamente à uniformidade formal a que os indivíduos se submetem (16). A antiga tetralogia dos Evangelhos não passaria de um manual de calúnia do mundo ao serviço dos vingadores e dos indolentes, regida e interpretada pela casta ávida de poder por excelência na era da metafísica, a dos padres-teólogos, os advogados do nada e os seus sucessores modernos, os jornalistas e filósofos idealistas. O evangelismo de Nietzsche aparece em oposição às forças de desnaturação que reinou durante milénios, em oposição a tudo o que então trazia o nome de Evangelho. Era a ruptura com a velha tradição europeia do Evangelho. O ponto de partida é o mesmo de Jefferson: o inaceitável de determinadas afirmações. Quem poderia, em sociedade, referir-se a uma autoridade como o Jesus de Marcos 9,42? Com a tesoura na mão, nada escapa a Nietzsche que não é apenas um parodista do Evangelho.

Aos olhos de Nietzsche, Jesus é a excepção que confirma a regra segundo a qual a religião é a obra do ressentimento. Ele é o anti-tipo absoluto do padre ascético. Jesus é assim colocado nos antípodas da tradição cristã que se reclama dele. As leituras de Renan e de Tolstoi influenciaram-no, sem dúvida. Jesus é uma espécie de Buda judeu, um santo anarquista (6, 198; VIII, 186) que se opõe radicalmente aos sacerdotes e a tudo o que eles representam. É o “tipo Jesus” que ele procura por trás dos Evangelhos que em parte falsificaram a sua “Boa Nova” original. O nó original desta “Boa Nova” é a da “verdadeira vida, a vida eterna”: “vida no amor, sem excepção e sem exclusivo, sem nenhum sentimento de separação” (6, 200; VIII, 188). Jesus foi um mestre de vida e assim morreu: “não para resgatar os homens, mas para mostrar como se deve viver. No fundo, “O Evangelho” morreu na cruz” (6, 212, VIII, 198). Como explicar o nascimento do cristianismo? A invenção do cristianismo é invenção de Paulo. Em Aurora já aparece a figura de Paulo como”o primeiro cristão”, o “Pascal judeu”. A partir de Paulo acaba a “Boa Nova”, e o que vem são os “Disvangelhos”. Nietzsche opõe no Anti-Cristo Epicuro a Paulo como a vida à morte. Paulo “compreendeu que tinha necessidade da crença na imortalidade para desvalorizar o mundo, que a ideia de inferno iria dominar Roma – que com o ‘além' se mata a vida...Niilista e discípulo do Cristo” (1971:123). Nietzsche faz uma descoberta fundamental nos primeiros anos da década de 80: a “afecção primordial” de todo o ser humano, e da vida em geral, que é a vontade de poder. Leia-se o primeiro livro de Assim falou Zaratustra: “Uma tábua de valores está suspensa por cima de cada povo. Vede! É a tábua das suas vitórias sobre si próprio, é a voz da sua vontade de poder”. O que repugna a Nietzsche é esse lado recalcado que estaria na base do moralismo. Ora, a moral que ele preconiza funda-se numa noção de vida como vontade de poder. Porque chama Nietzsche O Anticristo a sua proclamação de guerra ao cristianismo e a Paulo? Na tradição cristã, o anticristo é a figura que marca o fim dos tempos e o triunfo do Cristo sobre todos os poderes – inclusive sobre aquilo que Nietzsche considerava a grande obra de arte de grande estilo que era para ele o império romano. O Anticristo, escreve Agamben, é uma paródia messiânica em que Nietzsche desempenha um cenário escrito por Paulo. A Badiou assinala, a justo título, que a rivalidade de Nietzsche contra Paulo é notória. Nietzsche engana-se redondamente quando considera Paulo o padre tipo, a potência ordenada ao ódio da vida. Reportemo-nos a O Anticristo , 58. nada neste texto está no seu lugar, se seguimos Badiou no comentário deste passo. Antes de mais porque a “fé na imortalidade” não é a preocupação de Paulo, que quer antes o triunfo da afirmação sobre a negação, da vida sobre a morte, do homem novo sobre o homem velho. O ódio contra Roma é uma invenção de Nietzsche. O “mundo” que Paulo diz estar crucificado com Jesus é o cosmos grego, a boa totalidade que distribui lugares. Não há na pregação de Paulo qualquer menção ao inferno nem instigação ao medo. “Matar a vida” não é decerto o que quer aquele que pergunta: “Onde está, ó morte, a tua vitória”?

G. Colli diz que a melhor maneira de ler Nietzsche é aprender a encaixar os golpes com que ele nos ataca, mas também aprender a defendermo-nos dele (3, 656). A melhor atitude crítica a seu respeito é de levar a sério a sua própria máxima: “Tu és sempre um outro” (3, 544; V, 209). E, afinal, a sua própria ideia do eterno retorno, sem nada de místico ou de salvífico, acaba por remeter para o trágico como luta dos contrários. No capítulo da terceira parte do Zaratustra , “o Convalescente”, o eterno retorno é a causa do seu declínio. Nietzsche descobriu a vocação vitimista do cristianismo no plano antropológico. Ele foi o primeiro a entender que a violência colectiva dos mitos e dos ritos (“Dionísio) é do mesmo tipo que a violência da Paixão. Só a interpretação é diferente. Dionísio contra o “crucificado”: aqui está a oposição. Não é uma diferença quanto ao martírio – mas este tem um sentido diferente. A própria vida, a sua fecundidade eterna, o seu eterno retorno, determina o tormento, a destruição, a vontade de aniquilar. No outro caso, o sofrimento, o “crucificado” enquanto “inocente” serve de argumento contra esta vida, de fórmula da sua condenação (17). Enquanto Dionísio aprova e organiza a linchagem da vítima única, Jesus e os Evangelhos desaprovam-no. R. Girard, que mais do que ninguém estudou esta relação perturbada, conclui que “Como Nietzsche é cego aqui ao mimetismo e aos seus contágios, não vê que, longe de derivar dum preconceito em favor dos fracos contra os fortes, a tomada de posição evangélica é a resistência heróica duma pequena minoria que ousa opor-se ao gregarismo monstruoso da linchagem dionisíaca (18). Mas o evangelismo de Nietzsche não transformou o mundo. Outros “Evangelhos” se lhe seguiram, catastróficos, afinal. Hoje reina o Evangelho dos neo-conservadores, que traz as marcas do neo-colonialismo, da guerra, da xenofobia, da manipulação maciça, do abandono dos pobres a si próprios, à rua, à vida nua.

A afirmação nietzscheana que "Deus morreu", considerada como um dado da secularidade tornou-se num obstáculo epistemológico que impede o pensamento de qualquer dimensão religiosa e o projecto de recuperar os valores cristãos numa espiritualidade laica. O sentido fulcral da afirmação de Nietzsche: “Deus morreu”, diz Heidegger, é a negação da existência e da eficácia de um reino de valores supersensuais (1977, 61). A depreciação do tempo, o apocaliptismo, é um outro traço de que se acusa a figura de Cristo: “Quem leia os Evangelhos pensa, ainda que contra si, que este homem estava bem apressado para subir aos céus. O nosso calendário é o traço formal deste evangelho da impaciência com o mundo. Por sua culpa, temos todos pré-disposições apocalípticas.” (19). A "redução" da moral aos imperativos arrasta logicamente a separação entre a moral e as questões fundamentais do sentido da vida, da felicidade, da finalidade última. Para Aristóteles e os filósofos da Antiguidade não havia distinção entre moral e ética porque a sua moral se construía sobre as virtudes, como procura da excelência, e não sobre os imperativos. A relação com Deus está condicionada por aquilo a que E. Borne chama o lugar comum do ateísmo contemporâneo que procura na negação de Deus a afirmação total do homem segundo a alternativa: ou Deus ou o homem, que vai de par com a oposição kantiana: ou a heteronomia, a regulação do exterior, ou a autonomia, a regulação pela razão humana, pelo sujeito (20). Qualquer forma de dogmatismo é redutora. As leis da física, da química e da biologia jamais pretenderam ser as leis da Vida fenomenógica absoluta. Escreve M. Henry: "Nunca a matéria não fenomenológica da vida se apresentou como a matéria fenomenológica da vida, como a sua auto-revelação porque não o é. A ciência jamais praticou qualquer redução que não fosse puramente metodológica"(21). No seu diálogo crítico com as teorias da evolução, o teólogo está confrontado com aquilo que Francis Kaplan chama o paradoxo da vida (22). Quer dizer, mesmo se o seu funcionamento releva do a priori, a filosofia deve admitir que a vida continua a ser, pelo menos momentaneamente difícil de conceber. Mas a biologia, que se situa no plano do a posteriori entende as coisas de uma outra maneira: pode-se pôr em questão a existência do vivente? "É por isso que o vivente parece dever ser caracterizado por uma incompreensível compreensibilidade e uma evidente inividência" (23). Como pretender que um conhecimento sem religião é forçosamente mais operatório? A redução galileana é insuficiente para explicar porque é que, paradoxalmente, a vida se ausenta do campo da biologia assim como de qualquer campo de investigação científica em geral (24). O ponto de vista holístico era representado, até ao momento da institucionalização do conhecimento científico nas sociedades europeias, pelas concepções do mundo e pelos sistemas filosóficos. O racionalismo eufórico dos séculos XVII e XVIII vêm explicitar as velhas concepções do mundo vinculadas às grandes religiões. Mas os sistemas filosóficos entraram em crise com o fortalecimento da ciência como explicação última. Em vez de acusar a religião de "reaccionárias" no plano cultural, ou de violência, porque não lhe reconhecer uma função fundadora de paz? A afirmação da "vontade" e da "vida" contra o espírito reducionista da ciência não indica apenas uma reacção anticientífica e irracionalista. A objecção goethiana contra a perda das harmonias do sentimento não é apenas uma reacção esotérica. A fé religiosa não é o pólo oposto do saber científico. É outro saber. Em vez de um formalismo desincarnado comandado por uma ideia de progresso moral, porque não reconhecer à religião o projecto de salvar o fundo de bondade do homem? Em vez de um universalismo puramente abstracto, laico e geral, porque não reconhecer a singularidade histórica e cultural das linguagens e das religiões? Afinal as nossas crenças não são as livres opções de um puro espírito racional mas funcionam como disposições, adquiridas pela força do hábito e que nos inclinam tanto a agir como a pensar.

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