JOSÉ AUGUSTO MOURÃO

 

O quinto evangelho
a palavra que falta

 

Arriscar

Arriscar é o que recomenda Fr. Agustín Salucio (1523) que escreve, no seu Avisos para los predicadores del Santo Evangelio , “bien que mirados los evangelios del año, de santos y de tiempo, se haga como un quinto Evangelio , de todos cuatro tomado, sin que le falte cosa notable de todos ellos y sin repetir notablemente lo ya dicho, son es cuando la misma lección se refiere en diversos días por alguna justa causa” (25). Aquilo a que se chama a “cultura cristã” e que subentende a presença de um certo número de conhecimentos, referências, valores de origem cristã, está em vias de extinção nas novas gerações. Estão a perder-se as últimas passerelles para uma comunicação da fé; perda da possibilidade de fazer compreender a estas novas gerações uma boa parte da nossa arte, da nossa literatura e de muitas práticas e representações sociais. Existe um hiato evidente entre a sub-cultura católica (defensiva, infecunda) e a cultura pluralista actual. J.-P. Jossua di-lo, de experiência: “Se escutarmos verdadeiramente esses interlocutores (literatura e arte), se os aceitamos na sua diferença, com maior ou menor compreensão e respeito possíveis, sem os julgar à luz dos nossos princípios nem tentar sínteses englobantes – o ‘religioso', o ‘sagrado', o ‘humanismo', etc – que não respeitam a especificidade de nenhuma das partes, este diálogo representará um dos momentos, um dos testes essenciais a mudança de atitude dos cristãos ao sair da difícil liquidação da cristandade” (26).

A propósito da filosofia italiana dos anos sessenta, Bodei escreve que em Itália a paixão pela história e a fé no valor salvador da política se converteram em desencantamento e em flirt com o niilismo (1999: 241). Os escritores dantes tidos por “reaccionários ou irracionalistas (Nietzsche, Wittgenstein, Schmitt, Heidegger) foram desde logo reabilitados. Cacciari avança com a ideia de krisis , de emergência permanente, que não garante a salvação mas que abre novas possibilidades intelectuais e designa estilos de conduta exemplares a descobrir nesse “homens póstumos” e nos mestres da decadência vienense. Calvino tinha nascido e vivido no interior de uma retórica post-hegeliana ou post-marxista, cuja argumentação é que existe uma tese positiva e uma antítese negativa que produzem uma síntese dialéctica. A via negativa serve-lhe para destacar o final da dialéctica. A proposta de Calvino era esta: “Dêmos espaço à antítese”. E nesse sentido que declarou: “A via negativa é uma das dimensões fundamentais do pensamento”. A sua “leveza” não em que ver com o “pensamento débil” porque não é uma “leveza” do pensamento, mas que tem que ver com o corpo. Temos uma ideia de Calvino totalmente conceptual e todavia, se lemos os seus relatos, descobrimos que a personagem reflectem mas que as consequências desta reflexão são somáticas: a “náusea” e a “vertigem”. A “náusea” produz-se quando o mundo se adensa, resiste, bloqueia e se concretiza demasiado. Em suma, pesa. Pode dizer-se que a ligeireza é necessária, mesmo se é preciso estar atentos porque sabemos bem que pode levar a pura vertigem conceptual. Que é a ligeireza? É manter o justo equilíbrio entre o excesso e o defeito. Nem demasiado ligeiro que leve à vertigem, nem demasiado pesado que resulte em denso, nauseante. Há uma escolha ligada à somatização e à modalização, ie, às paixões. Ora, nada disto tem a ver com Vattimo, que está ligado a uma estética dos pequenos prazeres, do final das grandes emoções e da fragmentação. Calvino não pensava nos fragmentos mas na pluralidade. Toma como ponto de partida a teoria da informação. O mundo está em entropia constante, ou seja, o mundo não caminha para um destino humano de progresso, não existe progresso feliz, e os homens, as culturas e a sociedade morrem constantemente. O que podemos fazer é criar zonas de paraíso, aqui e ali, que não são fragmentos. O fragmento é nostálgico de uma antiga unidade, porque de contrário não se teria fragmentado e os fragmentos extraídos de antigas unidades tendem a unir-se. Calvino não pensa assim: vivemos numa situação de entropia generalizada e podemos introduzir nesta entropia princípios de ordem e de felicidade que são imediatamente apanhados pelo sistema de entropia e contra esta construímos novas ordens. É uma perspectiva que encerra uma dimensão utópica, não de “macroutopia”, mas de utopia pulverizada que cria zonas de ordem. Não existe um princípio primigénio de que subsistam traços em forma de fragmentos e que devamos recompor colocando uns junto de outros, como postula o pós-modernismo. Existem contudo uma entropia geral do mundo e o problema é como pode um sujeito colocar-se diante da história e criar zonas de ordem. Contra o carácter nostálgico das teorias dos fragmentos, o intento é criar pequenas zonas frágeis que se desfarão e que voltarão a ser. A literatura cria pequenas zonas de ordem que serão destruídas com o propósito de lutar contra a entropia geral do mundo. Recolhe os fragmentos do mundo para construir uma ordem relativa e não duradoira.

Nietzsche inaugura uma nova era do discurso: “toda a nossa filosofia é uma correcção do uso da língua”. A linguagem pela metafísica gravita em torno de um nó misológico. O Evangelho é o triunfo da misologia. Os quatro evangelhos são furto da propaganda. Nietzsche apresenta-se a si próprio como aquele que anuncia a Boa Nova: “Eu sou aquele que anuncia a boa nova da cultura” (27). O evangelismo de Nietzsche, escreve P. Sloterdijk, tem esta significação: saber-se em oposição com as forças de desnaturação que agiram durante milénios, em oposição com tudo aquilo que, até então, levava o nome de Evangelho”(28). A oposição nietzscheana de Dionísio e do Crucificado continua em E. Bloch, com outras figuras (gnósticas). Bloch reclama-se do “Evangelho do Espírito” de Marcião, que proclama um “Deus estranho a qualquer demiurgia” (AC, 196). A Internet, em termos teológicos, reflecte o espírito de Deus: “A pesquisa no ciberespaço é uma busca de Deus...e lida com a ideia de Deus que vê e escuta tudo” (Virilio: 346). A tecnognose, podemos dizer, o regime que acopla hoje a tecnologia e as ciências do espírito, tem também uma forma de evangelismo a propor. Veja-se o caso estranho de Philip K. Dick que afrontou o anjo da informação e acordou cheio de nódoas negras perguntando-se se tudo não teria passado de um sonho. Ou de um truque qualquer. Paulo escreve na carta aos Efésios: “Na sua pessoa ele matou o ódio” ((2, 16). Não é o Messias aquele que vem pôr cobro ao ódio, libertando-o de si mesmo (29)?