1. Sabe-se que “O poema é uma abstracção, uma escrita que espera, uma lei que só numa boca humana vive” (Valéry). Também se sabe que “A poesia não se impõe, expõe-se”, dizia Paul Celan. Mas não é falar, expor-se? E mais ainda: não é pregar, escrever, expor-se, falando das últimas coisas, radicais?
2. O que não vejo de mim mesmo expõe-se ao outro. Aquilo que não vejo de mim mesmo expõe-se a priori ao outro. Se há algo que não somos é folhas ou ecrãs. “Ècran” designa na língua francesa, no século XIII, um pano que servia para proteger do calor do fogo. No século XIX designa uma tela branca onde se projecta a imagem dum objecto. Hoje, a nossa pele é um ecrã que regula a realidade que somos e aquela que a tecnologia sugere.
3. Sabemos que a vida é aquilo que nenhum dizer, nenhuma imaginação pode verdadeiramente tocar-compreender-intuitivamente. Se a vida é vontade de vida, deficiência e dor, a vocação do humano é carregar todo o peso da dor e retirar deste peso a alegria e a vida. Os pessimistas perfeitos são aqueles que já ultrapassaram o signo: nem pedem à vida para ultrapassar a dor nem se lamentam disso (nem acusam nem choram) mas permanecem nela. Nem a retórica do sofrimento, nem a retórica da luz anulam a dor. É a retórica que engana, que ilude. A vida persuadida concentra-se no fogo do instante, na voz nua e desarmada.
4. Nascemos tatuados. A lei é esta: “Onde estava a tatuagem, agora deve advir a arte”. Ou: “Onde estava a marca de fogo há-de nascer a linguagem”. A pregação fala das marcas deixadas a fogo na alma, dos caracteres gravados debaixo da pele. Assim o profeta e o místico que coincidem com a palavra de que não dispõem. Porque um Outro fala neles e os impele a falar, a sair à luz. Desarmados. “É violento o nomos que obriga à linguagem e ao tempo comuns….Violenta a natureza mais íntima do Cogito, como co(agitar) das palavras e dos termos para reduzir a vida a eles”, para a subssumir neles. A persuasão, pelo contrário, está em paz, en-arghia – é a energia actual que desenraíza a violência, enquanto aqui-agora-inteira que nada espera, nada pretende” (Cacciari 1992: 85).
5. Saímos à luz com as feridas que o tempo imprimiu em nós. “Non pas nus, mais dévêtus”, dizia M. de Certeau. Até o Deus bíblico se expôs ao risco da visibilidade, encarnou: Verbum caro factum est. Um Deus exclusivamente transcendente, para alem de não ser acreditável, torna-se supérfluo para o homem, do mesmo modo que um Deus exclusivamente imanente torna-se supérfluo, e mais ainda, perverso, na medida em que absolutizaria o mal que há em nós (Panikkar, 2006: 114).
6. Expor-se à luz pública é mais do que um acto de comunicação entre um emissor e um receptor. “Não te fixes em mim e eu tão pouco me fixarei em ti” – é este o sentido do a priori da comunidade de comunicação. Expor-se é testemunhar do Sopro. “Pode dizer-se que existem os livros impressos preto sobre branco porque existem indivíduos que dirigem a sua condição existencial de livro neurológico para fora; são como folhas escritas que um belo dia se passam a si mesmas e se tornam escreventes” (Sloterdijk).
7. Em Sócrates o espírito torna-se luz eterna, luz que como um olho de cristal panóptico fixa o seu olhar nos restos da vida anímica interior, razão que não pode tocar nada sem o destruir – é essa a dialéctica da razão armada. Não se peleja a soco, com lanças e flechas. A verdadeira arma do homem é a palavra. A ágora e não a arena. Pugio fidei, pugna verborum, justas oratórias, controvérsias. Ou reagimos furiosamente contra o que parece ser o curso fatal das coisas ou olhamos tranquilamente para as coisas como elas são, sendo.
8. Só na noite se avança, como sabe o místico: “à luz divina chama a alma noite escura”. Há um verdadeiro drama em cena: o drama da palavra contra o silêncio ou a luz excessiva. O que é a luz absoluta com que se vêem as coisas pela primeira vez? Questão de decência: não querer ver tudo nu, não procurar compreender tudo e tudo “saber”. O que não se pode ver ou olhar deve ser adivinhado, dizia Vico.
9. Não sou um campeão da fé, não sou profeta nem místico. O meu ponto de partida para falar de Deus não é o de Vico: “The language of the gods is only a language spoken by gods to the extent that the fathers of the nations and the poets of the origin considered themselves gods and allowed them selves to be worshiped as such” (Vico, The New Science, 1948, 449). Não é o homem teórico que fala nestes textos. O Sopro está entre nós, mas não é obra nossa. Não perdi o sentimento trágico da vida em favor da piedade teórica e do moralismo. Avanço sem máscaras para responder à enunciação primeira de onde falo. Convosco.
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