Foto: Jorge Nogueira
MARIA JOÃO SEIXAS..
LUZ DESARMADA, de José Augusto Mourão
– Fátima, 24 de Agosto, 2006

Agradeço o acolhimento desta Casa Dominicana, que aceitou ser a breve morada de alguém que, amiga e admiradora do autor de LUZ DESARMADA, correspondeu, com a maior perplexidade, ao convite que este lhe dirigiu, porventura em hora de generosa e fraterna distracção, para fazer a apresentação do seu livro.

Se há receitas canónicas para se apresentar um livro, não as conheço. Se a obra for de ficção, conta-se o enredo, revelam-se as personagens? Nunca achei acertado esse procedimento, porque retira ao futuro leitor a curiosidade e a aventura da sua própria descoberta. Faz-se uma abordagem de literatura comparada? Parece-me árido, mas ainda assim talvez de alguma utilidade, se para tanto assistir ao apresentador o saber específico, o que me falha a mim. Em todos os géneros, adianto, para os que me ouvem não subirem a fasquia dessa expectativa. Se for poesia? Arrisca-se a exegese dos poemas? Soa-me a frio e, mesmo, a profanador. Isto porque os poetas, no meu entender, são os que estão, juntamente com os músicos, mais próximos dos deuses. Imagino-os em comunicação directa com a voz de Deus, do Criador. Só essa “linha”, directa e de eleição, pode explicar o acerto com que chegam, em poucas ou muitas palavras, ao núcleo dos seres, das ideias, das coisas. O que mais me agrada na apresentação de um livro de poesia é ouvir os poemas, por quem lhes souber captar o tom certo, musical, inscrito nas palavras do poeta. Mas então, e a descoberta do leitor, não fica também ela amputada? Com a poesia, não, porque o poema é sempre feito diferente por quem o lê. É da natureza misteriosíssima da sua essência, renascer sempre a cada escuta, a cada leitura. O poema é seminal, reproduz-se, recria-se, reacende a luz do seu ser. Ser a ser. Podia ir por aqui fora, mas quero aproximar-me de LUZ DESARMADA, o livro que aqui me trouxe, este imenso desafio que o José Augusto me lançou para o colo e a que, sem competência para o embalar como merece, me dispus a tomar nos braços e a querer muito que os vossos o recebam de mim.

Pode-se embalar um livro como se embala um recém-nascido? A pergunta vai ficar no ar desta sala. Em suspensão.

Estando eu muito ligada ao cinema, arte e linguagem que me seduziu há muitos, muitos anos, durante umas férias de infância dourada na Ilha de Moçambique, lembrei-me, ao ler e reler e voltar a ler LUZ DESARMADA (são homilías eu sei, mas, para mim, que viajo pouco e desatentamente pelos textos sagrados, soaram-me a um versejar em prosa, a versos que, no conjunto que é este livro, ganham a tonalidade de uma partitura singular, daquelas que nos convocam para uma escuta, também ela singular, nova), lembrei-me, dizia eu, de um cineasta alemão e do modo como apresentou o seu filme no Festival de Cinema de Cannes. Tratava-se de um homem já maduro, com uma eloquência agreste e um modo pouco dado a mesuras, conhecido pelo critério rigoroso de distribuidor e exibidor de filmes de arte e ensaio, mas sem obra realizada; aquele era o seu primeiro e, até hoje, único filme. Subiu ao palco, trémulo, visivelmente nervoso e disse, como se quisesse praguejar e lhe faltassem as forças: “Falar-vos de “MELANCHOLIA”, do meu filme? Não, nada vos direi. Um filme é sempre, e antes do mais, um grito que o realizador dá, na esperança que haja alguém do outro lado do écran que o consiga ouvir e o misture com a sua própria voz. Não há história de filme algum que conte outra coisa que não seja o grito que o seu autor guardava no peito até conseguir trazê-lo para fora de si. Escutai-o pois, escutai o meu grito, se vos fôr possível e eu tiver conseguido torná-lo perceptível, com as imagens e os sons que, em movimento, fazem este filme. Se isso acontecer, ficareis a saber mais de mim. Do que do filme, que, lembro-vos, sou eu a gritar para e por vós”.

O José Augusto que não me leve a mal esta associação, mas  acho que ouvi o seu grito em LUZ DESARMADA. Através das reflexões amorosamente tecidas em torno dos textos bíblicos, por eles e com eles, escolhidos e sequenciados com o rigor de quem tem dedicado a sua vida, também a académica, a perscrutar o sentido da palavra de muitas palavras, construídas ou a construir, o irmão dominicano faz-nos ouvir o som dos passos que dá na sua incessante busca. O irmão dominicano guia-nos, parágrafo a parágrafo, página a página, quantas vezes tremulamente, pelas veredas da sua fé, tão robusta quanto delicada e intranquila, até nos fazer ter sede da água que teima em refrescar-lhe o espírito e o corpo. Ambos, o seu espírito e o seu corpo, inseridos e reconhecidos, sem subterfúgios, no real do mundo que o autor habita, a nosso lado.

O livro arranca com EM RESPOSTA AO SOPRO. Bela entrada esta sua, em que assumida e explicitamente se revela na intenção de forjar “por palavras” o desejo de não trair a “Palavra”, nem dela se distrair. Porque o José Augusto sabe, de um saber “claramente sabido”, que Ela é o caminho da salvação. Começa assim:

“1 – O sopro vem de Deus. O primeiro movimento. O sopro, como a Palavra, é nómada. O destino do homem é renascer do sopro.”
Para quem, como eu, a palavra é o mais fértil dos territórios  da contínua demanda do homem pelo sentido da sua existência na terra, com fronteiras que vão do aqui e agora, ao ali, acolá e ao ontem e amanhã, ler (e ouvir) “O sopro vem de Deus” pareceu-me demasiado forte, impositivo, a afastar, quase, a possibilidade de reconhecimento do caminho das minhas dúvidas.  Talvez por as minhas dúvidas, companheiras do meu caminhar, estarem demasiado ancoradas na imanência. Talvez. Prossegui na leitura:

“2 – O drama da palavra é dolorosamente encenado por Beckett, em termos do imperativo do dizer e da impossibilidade do silêncio. Nós somos obrigados a falar, mas de que fala a palavra?”
Comecei a sentir-me mais aconchegada pelo texto, a achar que ele, afinal, falava não só para mim, como até, de mim. Chegada aos números 3 e 4, ouvi, “claramente ouvido”, o grito, comovi-me e embarquei, sem guardas, na viagem que LUZ DESARMADA me propunha. As velas da minha barca começaram a ser sopradas pelas palavras do José Augusto, palavras que não só moviam a barca como, visivelmente, a iluminavam. E logo ali julguei perceber a, também ela, luminosa escolha do título que dera ao seu livro. É um título desenfeitado, de uma beleza crua, mas a revelar sinais de uma força que, sem armas de agressão, deseja o combate da paz,  o que pugna por uma possível redenção.  É um título que guia a barca. Onde muitos, muitos mais devem desejar entrar. Ouçamo-lo ainda:

“ 3 – Eu respondo a um sopro. Obedeço a uma atracção, acrescentando ao infindável da Palavra umas palavras mais… Nunca abandonei a minha opção por um imanentismo aberto, textualista e dialógico. Sempre privilegiei os textos que figuram a estética da existência e a escrita de si como exposição, deposição.”

“ 4 – Não somos nómadas isolados… “Não há terra da promissão fora do corpo da palavra”, escreve Eugénio de Andrade. Se não há um TU não há um EU. A palavra há-de circular, há-de partilhar-se como um eco que responde a outro eco…”.

Já no fim deste belíssimo texto, porta de entrada do livro,
encontrei aquela que me parece ser a chave resumida da intenção do grito do autor, tal como o ouvi:

“8 – A fonte de onde brotam as relações verdadeiramente humanas contém em si três veios: a palavra verdadeira, a escuta verdadeira e a verdade que suscita uma e outra. A verdade que procuramos é o real, não o ser, o acto puro. É essa procura que faz de nós seres em relação com o real, à procura do seu conhecimento e da sua fruição. Feridos, mas abençoados.”

“Feridos, mas abençoados.” Esta curta frase é um curto verso, inspirado e abençoado pelo sopro da melhor poesia, não duvido. Escutou-a com atenção o frade professor e poeta, para que,  agora, os que o lerem façam dele o eco desejado. Cumprindo a partilha que a Palavra pede. Renovando-A, para que como deseja, renasça para outras escutas.

Mais à frente, em A PALAVRA DA CRUZ, lemos:

“1 – Só a escuta da Palavra nos pode libertar do mal, mas o mal tornou impossível a escuta da Palavra. A Escritura cumpre-se se há um ouvido que a escuta e um coração que a acolhe. Mas nós voltamos as costas a quem nos fala do alto dos Céus.”

O José Augusto vai questionando, ao longo do livro, questionando sempre e, ao fazê-lo, não só expõe a sua inabalável fé no Deus que lhe concedeu a graça de o habitar, como também, olhando o mundo, não se exime à denúncia dos entorses que o “mal” vai derramando sobre a distracção dos homens. O José Augusto acredita, “claramente acreditado” – regresso sempre à formulação camoniana – que não podemos desistir de deitar mão ao mundo, lançando-lhe a nossa voz portadora de palavras, em alguns palavras, ecos da Palavra.

Por vezes, surgem-nos passagens mais atormentadas, a sublinhar o desconforto, a revolta do autor pela surdez dos homens. Por vezes, mas logo a inabalável certeza da força redentora da Palavra lhe sopra o ânimo ajustado que o faz procurar a voz do canto, a música consoladora, a que mais aglutina os outros, os que a quiserem e souberem escutar. Estes, os seus leitores e ouvintes, sentir-se-ão mais revigorados para a reproduzirem, nos seus termos e tonalidade próprios, para que, naquela “hora muito rara” que Rilke nos legou, o vizinho do lado a possa também escutar, incorporando-a para que outro, e outro ainda se lhe juntem...

Não está só o José Augusto, neste seu labor. Muitas rimas, vindas de muitos tempos e lugares, escritas e ditas, sussurradas ou gritadas por muitas mulheres e homens,  voltejam em torno da procura da mesma Luz, do mesmo culto da Palavra. Mesmo sem a nomeação de Deus, muitos reconhecem a inscrição redentora no interior da concha da Palavra. E juram-lhe fidelidade, como uma questão de vida ou de morte. Roland Barthes, por exemplo, confessava que não podia deixar de escrever, por um dever interior de “subtracção” ao seu cansaço sobre o que lia e ouvia. Ele também conhecia o poder da Palavra. E queria saber merecê-la, estar à sua altura, dar dela testemunho, contrariando os que dela se serviam sem sentido. Sem devoção.

Lendo Simone Weil, na sua ESPERA DE DEUS, escolhi uma das mais belas rimas, como oferenda a este livro e ao José Augusto:

“Deus criou por amor, para o amor. Deus não criou mais do que o próprio amor e os meios do amor. Ele criou todas as formas do amor. Ele criou seres capazes de amor a todas as distâncias possíveis. Ele mesmo foi, porque ninguém mais o poderia fazer, à distância máxima, a distância infinita. Esta distância infinita entre Deus e Deus, dilaceração suprema, dor de que nenhuma outra se aproxima, maravilha do amor, é a crucifixão. Nada pode estar mais longe de Deus do que aquele que foi feito maldição.
Esta dilaceração, por cima da qual o amor supremo estende o vínculo da própria união, ressoa perpetuamente através do universo, no fundo do silêncio, como duas notas separadas e fundidas, como uma harmonia pura e lancinante. É essa a palavra de Deus. A criação inteira mais não é do que a sua vibração.”

Termino. Este é um livro para passar de mão em mão. Fá-lo-ei com júbilo. Porque, com júbilo, me pus a embalar o recém-nascido que me foi posto no colo. Tê-lo-ei feito com a doçura e a plenitude que o corpo do livro merecia? Cabe-vos a vós essa avaliação.

 Iluminada por esta LUZ DESARMADA, sentindo-me menos “ferida” e mais “abençoada”, cuidarei da palavra com redobrada atenção, pelo livro e com ele. Ansiando pelo encontro com a Palavra. Mil cuidados serão os meus, agora reforçados pelo livro do José Augusto, para que a minha escuta seja mais vigilante, mais atenta, mais feliz. Prova de amor, como prova de amor é LUZ DESARMADA.

É ao José Augusto que devo agradecer o sopro, desassombrado, desta partilha. Comovidamente. 

                                                                      Maria João Seixas










JOSÉ AUGUSTO MOURÃO
Luz Desarmada
Prefácio, Lisboa, 2006
editora.prefacio@mail.telepac.pt

 

Maria João Seixas nasceu em Moçambique em 1945; licenciou-se em Filosofia, pela Faculdade de Letras de Lisboa; colabora com programas culturais no serviço público de televisão; na imprensa escrita com artigos e entrevistas; na rádio com crónicas e em debates sobre a actualidade política e cultural; foi assessora para a cultura do governo socialista presidido pelo Eng. António Guterres.

mjseixas@oninet.pt