..........VARIEDADE OU SUBESPÉCIE?

E não saberemos, até alguém no-lo explicar, como se distingue a variedade da subespécie. Até alguém no-lo dizer, também não saberemos se as mais de cinquenta formas de lagartixa vulgar existem nas Baleares desde há milhões de anos, ou se só começaram a diferenciar-se a partir do momento em que certo naturalista - Eduardo Boscá - andou em estudo pelas ilhas. Se vivem ali há milhões de anos, são subespécies; se só apareceram ali desde que o Eduardo inseminou artificialmente alguns exemplares indígenas com esperma de lagartos estrangeiros - das Filipinas, imaginemos - então o que está nas Baleares são raças de animais domésticos, híbridos artificiais, e neste caso não podem ser objecto de estudo segundo sistemas de conhecimento próprios de certas disciplinas da História Natural.

Problemas que já vinham a ser discutidos desde Lineu e surgem mais marcadamente na Origem das Espécies (1858), de Darwin, parecem motivo de discórdia, mas não por causa da teoria de que as espécies se transformam umas nas outras, sim por causa da origem. Qualquer pessoa que tenha lido o Génesis ficou a saber que Deus criou o mundo, as plantas, os animais e o homem, por esta ordem, mas que o Génesis tem uma recapitulação e várias fases. Antes do Dilúvio, Deus ensinou a Noé como salvar as espécies da extinção através da selecção artificial - embarcando toda a sua casa e só ela, daí resultando o povo eleito; seleccionando sete casais de cada uma das espécies puras e um casal de cada uma das impuras. Supondo que tenha seleccionado catorze pardais adultos dos maiores que viu e com umas penas anómalas, por serem próprias só dos juvenis, então Noé criou uma novíssima espécie. Talvez o Pardal grande, de que Newton enviou a Bocage três exemplares por volta de 1888, e que só voltou a ser coligida em 1990, a enigmática e raríssima Neospiza concolor de S. Tomé. Até 1990, só se conhecia no mundo um exemplar, dos três apanhados por Newton, cuidadosamente conservado nas colecções do British Museum. Os outros dois, não temos agora de memória se os vitimou a revolução de 1910, se a de 1926, ou se foram abatidos na Guerra do Golfo. Lembramo-nos no entanto de que a estes fenómenos genéticos se dá o nome de pedomorfoses ou neotenias - espécies que se caracterizam por apresentarem a forma juvenil de outras. 

Ora, a ortodoxia católica entende que só Deus é criador. Quem ousa imitar Deus é o Demónio. Isto, na nossa perspectiva, contraria frontalmente a Palavra do Senhor a Noé, consignada no Livro do Génesis, que entendemos como ensinamento sublime: o Homem, feito à imagem e semelhança de Deus, também é criador. Este problema de ser a Criação obra exclusiva de Deus tem consequências, no meio das quais o darwinismo é só incidente menor a meio de um percurso que teve de atravessar as perseguições do Santo Ofício. E daí, muito provavelmente, a tradição do código secreto para falar de experiências sujeitas ao labéu de heresia, podendo por conseguinte levar à fogueira quem as praticava. No séc. XVIII, quando proliferavam as experiências de inseminação artificial (já conhecidas pelo menos dos árabes, no séc. XIII, que a usavam para seleccionar raças de cavalos), não se distinguia o monstro do hermafrodita, o defeito físico do híbrido: tudo isto era moralmente entendido como punição de Deus. 

Se a ciência provocava deliberadamente o aparecimento daquilo que se reputava de castigo divino sem ter tido intervenção humana, é óbvio que com maior razão ainda o criador de monstros ficava em risco de ser queimado vivo. 

Entende-se que mesmo hoje um dos debates em torno da ciência incida na questão: devem as descobertas científicas ser divulgadas a todos, ou é preferível que permaneçam secretas até os cientistas decidirem que já podem falar?

No caso vertente, temos em cena experiências secretas reveladas através de um discurso sibilino, isto é, os cientistas comunicaram o que andavam a fazer, mas não em linguagem acessível a todos. Para entender o que eles estão a dizer, a nós foi preciso em primeiro lugar saltar uma barreira muito perturbadora: a de acreditar que eles cometem erros.

Errar é humano, a ciência não está isenta deles. Mas o caminho do erro é falso de duas maneiras: porque, a existir, não nos competiria a nós denunciá-lo; porque, a rotularmos de erros o que se vai ler, no fim teríamos a situação absurda de uma ciência que não merece tal nome, por não acertar uma única vez. Então a estratégia foi a de aceitar os “erros” como a outra face do espelho e tentar entender o que andou Alice a fazer por detrás dele. Afinal, foi no speculum com que os magos da Antiguidade estudavam as estrelas que nasceu a especulação, enquanto mais elevada operação intelectual. O Espelho da Verdade sempre revelou que a Branca é de Neve. Não há engano, sim mão estendida a guiar-nos os passos para o País das Maravilhas. As Ilhas Encantadas, também conhecidas por Atlântida e Macarronésia. Estes homens andaram a pregar partidas uns aos outros, mas a nós só nos têm ensinado.

No século XIX, os naturalistas perfilham duas teorias da origem - ou são criacionistas ou transformistas. Quando se diz que os criacionistas acreditam que a origem das espécies está em Deus, é preciso contar com o facto de que o Povo do Livro (judeus, cristãos e muçulmanos) sabe que a origem das espécies só foi divina na primeira parte da Criação, depois passou a depender da acção humana.

Com Darwin mantém-se a origem humana e torna-se mais nítida outra. Ao observar o que se passava com a criação de novas raças mediante a selecção artificial, ocorreu-lhe a ideia da selecção natural, que pressupõe diversa origem, nem divina nem humana, sim talvez casual.

Nos textos que nos ocupam, raro se fala de Darwin; os autores, quando se definem teoricamente, o que também é raro, é como adeptos da transformação, o que não revela muito. Em vez de criacionismo eles falam de fixismo - segundo os fixistas, as espécies são imutáveis, não se transformam. Ao definirem-se como transformistas, isso não obriga a considerá-los evolucionistas darwinistas. Podem ser alquimistas. Ou geneticistas. A alquimia sempre lidou com a transmutação. Boscá dedica um trabalho ao seu mestre Cisternas, adepto da ciencia una. Ciência una é a que se vincula à religião, na tradição alquimista.

Gira uma polémica surda à volta destas questões, mas o problema não incide na origem das espécies, sim nas origens das populações que se identificam pelo trinómio. O que na realidade parece de somenos importância, porque o eixo da querela no trinómio é a raça, também chamada variedade e mulato, o que tanto apela para a questão judaica (Inquisição) como para a da escravatura (colonialismo). E esta, sim, tem alcance que ultrapassa de longe a zoologia, ao instituir-se como chaga viva da Humanidade.

Também está em causa a distinção entre duas categorias de cientistas - os criadores e os outros, os que inventariam e estudam o existente. Os naturalistas que vamos conhecer são em geral avessos à teoria, privilegiam o conhecimento prático. Têm grande experiência de transporte de espécies e aclimatação, resultado da necessidade de se povoarem colónias e proceder à selecção de espécies úteis. As espécies exploradas comercialmente - plantas e animais - são quase todas híbridas.

Então há os criadores que sabem, pois eles mesmos as criaram, quais as populações que sofreram intervenção humana, e os que não sabem. Vir a saber que dada população foi introduzida, depois de se terem publicado trabalhos a considerá-la autóctone, é dramático, esses trabalhos não têm valor científico.

Não conseguimos admitir que as introduções se gerem todas no desejo de enganar. Se a ciência normal pretende descrever o natural por exclusão do artificial, sem na raiz distinguir um do outro, partindo apenas do princípio de que tudo o que está na natureza é natural, então a ciência engana-se a si mesma.

Descobrimos a existência destes problemas por acidente, compulsando a bibliografia zoológica para outros fins. Depois, confrontando textos de vários autores sobre a mesma espécie, verificámos que havia contradições, ironias, declarações não científicas, tudo isto tornando claro que a população tratada se transmutava de década para década ou de autor para autor - o que é incompatível com a teoria da evolução por selecção natural, em que se requerem milhões de anos para o surgimento de nova espécie.

Os autores prestam informações que pressupõem que os animais mutam, e de forma inverosímil - nas dimensões (quase sempre maiores que menores, há nítida predilecção pelos gigantes), cores e outros caracteres orgânicos. Há também muita alusão a anomalias, típicas das experiências de hibridação - albinismo, melanismo, dedos a mais ou a menos, falta de membros ou membros a mais, manchas na pele, nanismo e gigantismo.