..........DO ULTIMATO À REPÚBLICA Como foi possível criar-se tal situação, só se entende se invocarmos a política internacional - partilha de África, questão do mapa cor-de-rosa, Ultimato, tratados com a Inglaterra. Bocage, como deputado (em 1879), conselheiro, par do Reino (1881-1907), ministro da Marinha e Ultramar (1883), ministro dos Negócios Estrangeiros (1883-1886; 1890-1891, desta vez para entregar o hinterland aos ingleses), Presidente da Sociedade de Geografia e co-fundador da Comissão de Cartografia, era uma figura-chave. Os casos políticos mais importantes em que teve acção directa foram o tratado com a Inglaterra acerca do nosso domínio no Zaire; recusa de reconhecimento do Estado Livre do Congo, aquando da Conferência de Berlim; concepção do mapa cor-de-rosa, o que implicava delimitação de fronteiras em zonas cobiçadas por outras nações (Cecil Rhodes pretendia ligar o Cairo ao Cabo, o desejo portugês de se alargar de costa a costa, unindo Angola a Moçambique, barrava-lhe o caminho); e o que veio na sequência do mapa: travessias de África, em especial a de Serpa Pinto, detonador do Ultimato; modus vivendi negociado por Bocage com Lord Salisbury, preparação do Tratado de Agosto de 1890 (já não foi assinado por ele, porque entretanto o ministério caiu), renúncia às pretensões sobre o hinterland. Entretanto, o país revoltava-se contra os ingleses e seus simpatizantes, a começar pelo Rei, ferozmente atacado - numa revista dos universitários (Coimbra - só depois da República haverá Universidade de Lisboa) chamaram-lhe animal e burro com todas as letras. A seguir, inevitáveis como um tornado, chegaram a lei das rolhas, a vitória dos republicanos em Lisboa nas eleições, o propósito de eliminar João Franco (em vez dele morreu o Rei), e logo depois a República. A pressão exercida sobre Bocage verifica-se na sua qualidade de cientista, quando os colegas de um lado atacam as colecções zoológicas e o seu trabalho sistemático e zoogeográfico, e de outro atacam a geografia (cartografia, toponímia) - há mapas fantasiados, como alguns de S. Tomé. Num deles, a linha do Equador passa entre essa ilha e o ilhéu das Rolas, quando realmente atravessa o ilhéu. Vimos outro, muito infantil, digamos que deitado - Rolas a oeste de S. Tomé, quando fica a sul. Apesar de uma das incumbências de Adolfo Frederico Moller, da Universidade de Coimbra, ser a de corrigir a carta (9), quando em 1885 fez a exploração botânica da ilha, ela só viria a ser corrigida já depois de implantada a República, por Gago Coutinho. A geografia tem conhecimento de anomalias na sua área e sabe que não se devem a erro humano nem a deficiência dos instrumentos, inserem-se num contexto político e social. A ciência não é neutra, mau seria até que os cientistas não usassem as suas armas na conquista de boas causas. Não é possível negociar assuntos de direito internacional e de propriedade de territórios ultramarinos com base em mapas ficcionados. A partir da Conferência de Berlim, a ocupação de facto substitui o direito histórico à posse das colónias, e essa ocupação exprime-se fortemente pela científica. Catálogos com distribuição imaginária das espécies também não se podem apresentar à mesa de negociações europeias, como prova de que o território ultramarino estava controlado pelo conhecimento científico. Se o Museu da Escola Politécnica de Lisboa não conhecia a fauna da própria metrópole, então o descrédito é incomensurável. Não imaginemos porém que a sabotagem veio só do exterior. Os adversários de Lisboa eram sobretudo os universitários, que aliás nunca aceitaram bem a criação da Escola Politécnica. E no Porto havia muitas famílias inglesas. Do ponto de vista da situação interna, expliquemos o que se passou invocando as lutas entre monárquicos e republicanos, através da acção subversiva dos carbonários. Bocage morre três anos antes da implantação da República. A história da salamandra, ao contrário das de outras espécies, mais cosmopolitas, parece uma confrontação entre Porto, Coimbra e Lisboa, incrustada num contexto ibérico. É provável que os zoólogos espanhóis envolvidos na operação Chioglossa fizessem parte de uma organização supra-nacional republicana, conectada com os portugueses. Nesta época, falar de organizações supra-nacionais significa falar da maçonaria; é já bem conhecido que a implantação da República Portuguesa se deve à Carbonária. No período que nos ocupa, a Espanha conhece duas efémeras repúblicas. Por várias vezes, durante ele, as perseguições obrigaram a maçonaria espanhola a passar à clandestinidade. Nessas alturas, ficava sob a obediência do Grande Oriente Lusitano. O intercâmbio entre naturalistas não é apenas científico, unia-os uma causa humanitária comum. Estrangeiros, como Böttger, lançam achas à fogueira, mas na essência a guerra da Chioglossa trava-se entre nós e nuestros hermanos, aliás com eles. As equipas são desiguais, Coimbra tem do seu lado toda a gente a jogar contra Lisboa.
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