CAPÍTULO III REBIS, PATHOS, HYBRIS I am unable to find any constant characters to separate E. minor from the present species. Boyd Alexander
A Rebis, discurso mutante, cintila com maior intensidade em situação intertextual, quando o texto apresenta vários sujeitos, sobreposição de códigos e por consequência várias direcções de sentido - porque se cita, dialoga, porque ao código normal (a língua) se conferiu significação só conhecida de grupo restrito de utentes, porque em associação com esse se usa segundo código - de algarismos ou outros sinais. Revela o mundo como se fosse um geode, que nas múltiplas facetas multiplica as imagens do real. O resultado da interpenetração integra a figura da ironia: nesta, o sentido de uma proposição não resulta do significado das palavras empregues, sim do das antónimas - interditas. No discurso da hybris as duas linhas de sentido coexistem, não se trata só de ironia, mas também. O cómico irrompe como um rictus dos seus próprios antípodas, excretado pelo desespero - pode ser a diarrea de sangue que Newton sobrepõe como transparência a uma conversa acerca de cagádos (tartarugas), pode ser chaga ainda mais funda. Francisco Xavier OKelly de Aguilar Azeredo Newton, por exemplo. Tenha ou não partido com dezasseis anos para África, o pai, Isaac, ofereceu o único filho varão em sacrifício, e o menino saberá que Deus não lhe vai poupar a vida. Morreu com quarenta e cinco anos. O riso é secreção da tragédia. O discurso científico, habituámo-nos a esperar que fosse uniformizado, apático, impessoal - um sudário, símbolo do domínio da ciência sobre as leis da natureza. Do signo, esperamos um significado e não dois ou três. De uma proposição, esperamos que seja falsa ou verdadeira, que funcione em uma de só duas ordens de instância: erro ou acerto. O erro é admissível, sabemos lidar com ele - rasurando-o, fazendo de conta que não existe, desautorizando quem o comete antes de nos interrogarmos se é erro. Também o podemos corrigir, mas não foi essa a situação que enfrentámos. Face à crise, o que enfrentámos foi o silêncio. Como se os pontos cardeais nunca tivessem invertido as posições, como se fosse normal o sujeito do discurso científico apresentar-se como Pinóquio. Tripla heresia, porque do discurso (todo ele, incluída a poesia, a ficção) queremos expulsar o sujeito, do autor aspiramos a que se retire para campa ainda mais inerme que a do L., Bon., Cuv., Imper., Hall. e Aldr.. Como se a espécie não fosse um conceito, não fizesse parte da cultura, como se fosse objecto criado pela natura e não uma subjectiva obra criada pelo homem. Erebus - é de nós mesmos que sentimos medo, é em nós que não depositamos confiança. Eu sou, riem eles, os sujeitos, sentados na grade da própria campa. E muito pior ainda: Eu sou aquele - e recusam-se a ser remetidos para o grau zero do sentido. Eu sou aquele que, reivindicam eles, conjugando na primeira pessoa o Verbo Ser, e muito pior ainda. Não se retiram do Promptuario de Genetica APplicada, depois de o haverem escripto. Connosco falarão de dentro dele pelo futuro fora. Até entendermos que combatem os que recusam ao Homem o direito à Criação. Não podemos lidar com estes textos de maneira a seleccionar acertos por exclusão dos erros. Porque este discurso não é apático, profano nem impessoal, a questão não é de erros e acertos, sim de pathos. Ele não é só científico, é mais do que isso. Adopta técnicas literárias mas não é só literatura, continua a ser discurso científico. Não é ficção científica, não é ciência ficcionada, é um discurso que emite radiação em todas as direcções e em certos momentos confina com algo de mais radicalmente diverso ainda - o que é natural quando são sacerdotes os autores, mas nem sempre. Este discurso é o da Tradição. Tradição é Aventura, ensinava o vanguardista Ernesto de Sousa. Este discurso é muito mais moderno que o da nossa modernidade. Em Fernando Pó faziam-se experiências cujo resultado se exprime na informação de que aves imaturas se estavam a reproduzir, o que subentende formas artificiais para acelerar o crescimento - é o que se faz nos aviários. As hormonas não nasceram ontem, a sua história oficial começa em 1775. Dizem-nos que juvenis machos mutavam a plumagem para a das fêmeas. Na história da Chioglossa isso não se declara com frontalidade, mas na inconstância do lusitanica/lusitanicum, do a/o Chioglossa, insinua-se que está em causa a intersexualidade provocada, donde a expectativa sobre o modo de reprodução. Também J. Maria Rosa de Carvalho o sugeriu, ao falar da cabra hermafrodita e ao dar de si um retrato homossexual. Tradição não significa antigo, significa passagem de testemunho. Estas experiências vêm pelo menos do século XVIII. Ou de mais longe ainda, com o ovo e a Rebis (res+bis, coisa dupla, hermafrodita) dos alquimistas. A escrita híbrida é uma técnica literária que tem a mais clássica expressão na poesia macarrónica, de uso satírico nas universidades, nos tempos em que os estudantes falavam latim. Em Coimbra é exemplo disso O Palito Métrico, poema inspirado na praxe que obrigava os caloiros a medirem a ponte com um palito. Também aqui há uma tradição. As palavras são vida, ligam-se umas às outras como os órgãos de um animal. É o corpo que as emite, que se prolonga nelas como a língua materna nasce no seio da mãe. Vibram de afectos, transmitem conhecimento, instauram um círculo amoroso, religioso e cultural. Quem usa os mesmos signos comunga o mesmo pão, esteja ele consignado nos Livros, nos dicionários ou na tradição oral. O Verbo é anterior à Criação, foi com as letras hebraicas que Deus criou o mundo, as plantas, os animais e o Homem, segundo os cabalistas. Cada carácter é um ente, grafar Ghioglossa em vez de Chioglossa equivale a selar a palavra com uma oração que identifica o sujeito que a enunciou como Homo religiosus. Os signos querem sempre dizer, e em geral não só querem como dizem, mesmo quando não passam de um hi-hee. Porque é um sujeito que os enuncia, um autor que os escreve ou uma pessoa que os pronuncia. Um ser que estabelece relações íntimas com outro ser. Segundo Boyd Alexander (37), aquele signo é a fala de uma ave, Criniger tricolor, e tem 3 cores a ave, como os ovos da Chioglossa também estão sob o signo do 3: The note is hi-hee, deliberately repeated several times. Nós não temos a chave deste código, sabemos apenas que existe a língua das aves, tal como existem os códigos militares, elaborados com signos luminosos ou de bandeiras. Se Alexander diz que a ave repete a nota por seu livre arbítrio é porque é ele a ave falante. Foi ele quem por seu livre arbítrio escreveu hi-hee. Deliberadamente outros escreveram Nevvton e Reesetan para identificarem Francisco Newton. Há uma semelhança entre hi-hee, Nevvton e Reesetan: os caracteres que se desdobram, os cromossomas que se duplicam. Rees, como em Res (bis). Duplos, eles têm dupla identidade, duplo ser e dupla missão. Muito mais subversivo que dizer Eu sou é dizer Eu somos.
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