.......I-HE, I-HE, I-HE
Baralhamenta é o termo que define estas contingências no calão militar. Os militares, os terroristas, os agentes duplos, usam essa estratégia para confundirem o inimigo. Há baralhamenta na inconstância de notas biobibliográficas, sobretudo sendo o próprio a dizer em que várias datas nasceu e a aumentar as dimensões do currículo com artigos imaginários, caso de Seoane (38), que já conhecemos na versão Leia o Commercio do Porto. Ou quando o heróico naturalista descortina, do Pico de Santa Isabel, além da garrafa com a mensagem do antecessor, embrulhada numa tela vermelha, o navio inglês fundeado na Carbonera, Bahia de. Agora em Fernando Pó. Na Menorca não existe nenhuma Isla Carbonera, Mellado & Salvador (2) têm razão - fica na Maiorca, onde não procuraram as lagartixas carbonerae. É isto o discurso mutante, de que a escrita híbrida é só um aspecto. Fernando Pó, como Cabo Verde, S. Tomé, tantas outras ilhas, foi um laboratório, de um lado; de outro, local de escravatura e deportação de presos políticos. As operações que ali se levaram a cabo, são os próprios agentes a porem-nas sob o signo do duplo e da Carbonária. As experiências que ali se levaram a cabo, são os próprios biólogos a comunicar que se traduzem em criação de seres intermédios, invertidos, ou cujos caracteres são inconstantes. Os agentes secretos e os cientistas são duas personae da mesma pessoa, que pode ainda acumular com a missão de sacerdote, governador ou, como o escritor Boyd Alexander, tenente da Rifle Brigade. O efeito deste discurso que não fixa todas as informações é o de recriação contínua. Desencadeia-se um processo que reproduz uma imagem em cópias com certos caracteres sempre diversos. Como as múltiplas reproduções da Gioconda, agora com barba, depois de bigode, ali com óculos escuros, depois a fumar charuto. Às vezes uma Gioconda está na Abissínia e outra em Fernando Pó, mas sabe-se que intergradam. Os zoólogos dão-lhes umas vezes o nome de raças, outras o de híbridos, mais recentemente o de superespécies. África está cheia de Giocondas em que só um carácter se mantém imutável - o sorriso enigmático. Manipulando com sabedoria os ovos, é possível obter monstros duplos, aves que do lado esquerdo são fêmeas, machos do lado direito ou vice-versa, hermafroditas, criaturas com duas cabeças, osgas sem polegar, lagartixas sem dedos, etc.. Basta extrair o ovário de uma galinha para ela se tornar galo; castrando um macho de ave, as penas deixam de ter cores metalizadas. Sem estas experiências, a medicina não teria chegado a muitas conquistas benéficas para a humanidade. Os produtos das experiências não foram utilizados só para fins científicos. Quem ignora a origem dos exemplares inéditos classifica-os como espécie nova - e depois destrói tudo. Quem sabe qual a origem dos exemplares também os classifica como espécie nova. Mas avisa. Boyd Alexander (37), por exemplo. A escrita híbrida nem é necessária para ele, que a usa bastante, mas diz também em cristalino inglês que corrige a classificação desta e daquela espécie por este motivo: Since I gave P. camerunensis specific rank, further material has come to hand and I find that the characters of the supposed new species are not constant. Boyd Alexander descreveu 35 novas espécies de ave, 34 delas endémicas (algumas permanecem válidas e com terra típica em Bakoki/Bakaki, carretera de Banterbari), numa ilha que dista 30 quilómetros dos Camarões, cuja fauna de raiz é comum ao continente, poucos anos depois de Bocage ter publicado um catálogo ornitológico, graças às colheitas de Francisco Newton. Reesetán Cakley não enviou a Bocage um único exemplar que este pudesse descrever como espécie nova. Assim sendo, e Oakley Aguiar Nevvton não o enganou com exemplares de Java/S. Tomé, Bocage deixou até explícito que as aves de Fernando Pó eram todas continentais - e eram. Oito anos depois, Boyd Alexander dá à luz 34 espécies novas, exclusivas de Fernando Pó, na maior parte obtidas em Bakaki, qualquer coisa como Banterbari ou tiradas do Bahú. Um prodígio assim só se concebe no País das Maravilhas - Pinóquio está com nariz de quilómetro, a gritar aos quatro ventos: É verdade que minto. Ora em situação normal a mentira esconde-se, não se exibe como tal na passerelle. Se usamos deliberadamente nariz de Pinóquio, então a mentira deixa de ser mentira, é a verdade - as novas espécies são cobaias, animais saídos de um laboratório, e na maior parte ilusórias. Algumas conseguiram fixar os caracteres, mas esses caracteres foram seleccionados pelo homem. Este mundo é real e verdadeiro como um romance, real e verdadeiro como a dor e a alegria, mas não é natural no sentido clássico dos evolucionistas. É um mundo cultural, quarto ou quinto já, na escala popperiana. De tal maneira o viraram de pernas para o ar que as ilhas saltaram para o hemisfério sul. Mas esse é afinal o significado da palavra hybris - inversão, desmesura, pathos, carnaval. O texto mais sobrecarregado de caracteres inconstantes que até hoje encontrámos está assinado por Carlos França (33) e incide no trabalho de Bocage. É um elogio fúnebre, datado de 1908, dois anos antes da República. Em situação ritual, a sociedade exige o simulacro da vida exemplar. Em situação subversiva, a revolução exige discurso auto-censurado. Em situação de experiências sigilosas, a ciência exige código secreto. O discurso foi invertido pela ironia, o autor chega ao extremo de atribuir a Bocage a autoria da espécie Capra lusitanica, que virá a ser dele, Carlos França. Carlos França foi naturalista no Museu Bocage, não só conhecia o director, como José Augusto de Sousa, o ornitólogo que foi à Quinta do Alfeite apanhar umas aves inéditas que ainda não voltaram a ser vistas em Portugal, Certhilauda duponti var. lusitanica. França também atribui a Bocage uma espécie de Sousa. O artigo de Carlos França visava dar a lista dos trabalhos de Bocage, a dos taxa descritos (faltam vários) e qual o seu estatuto de validade. O nosso objectivo é outro: queremos assentar de uma vez em que a escrita híbrida é consciente, presta informações científicas. As teses da ignorância e da gralha tipográfica são obstáculos epistemológicos, só servem para irritar e fazer perder tempo, além de que defendê-las implica desautorizar as fontes. Carlos França controla o que escreve, mas sobra um espinho incómodo, relacionado com o facto de que nem sempre quem assina um texto é o seu único autor. Bocage é um enigma. Não sabemos quem lhe revia as provas, não sabemos se ele relia o que saía publicado com o seu nome, no Jornal da Academia Real das Ciências de Lisboa. Sabemos é que Carlos França omite o Real. Não é no artigo de Carlos França que encontramos os casos mais delirantes de escrita híbrida, nele só encontramos grande número de palavras mutadas. As maiores patologias figuram nos textos de Bocage, em que aparecem exemplares de Cochin (Índia) em vez de Cacheu (Guiné-Bissau). É na polémica sobre a cobra verde de S. Tomé, na qual Bocage pergunta porque é que Bedriaga escreve Philothamnus de várias maneiras, é no texto em que a perplexidade o move à inquirição, que surge o Stérnothaérus Bérbianus (Sternotherus Derbianus). Mas aqui, os cágados, por muito Kagados que estejam, continuam a ser tartarugas. Quando lemos Tarantola em vez de Tarentola, já a mutação ultrapassou as raias do compreensível - Tarantula são aranhas, Tarentola é um género de osgas. Na descrição de uma nova espécie de serpente, vindo o nome dela em título, lê-se Leptopelis, género de rãs. No corpo de texto, vem escrito Leptophis, que de facto é nome de cobra. Em baixo, França escreve jeûne (jejum) em vez de jeune (juvenil), ao copiar um título de Bocage sobre suposta nova espécie de pelicano. Pelecanus Sharpei é o cosmopolita e bem conhecido Pelecanus onocrotalus Linnaeus, 1758. Não deviam ser normais os exemplares sobre que Bocage assentou a descrição. Também não parece natural o indivíduo de Dendraspis neglectus Bocage, que o próprio autor considera uma entre outras anomalias neste género de serpentes: Un individu du Gabon de notre collection, provenant du voyage dAubry-Lecomte, appartient par son côté droit à cette variété (D. Welwitschii Günther) et par son côté gauche à la variété précédente (D. fasciolatus Fischer)( J. Sc. Mathem., Phys. Nat., 1888, p. 141). Os erros não são de ortografia, entram no terreno da História, da Geografia, da nomenclatura científica. E esta entra no da sistemática, e a sistemática não pode enganar o público com aberrações, espécies imaginárias, ou dar como fruto de selecção natural o que é fruto de selecção humana. É muito simples para a ciência provar que os erros são erros, basta apresentar as erratas. Há paródias que vêm já do século XVIII e a ciência ainda não esclareceu o assunto, ainda não se pronunciou com uma vírgula. Entretanto, quem lê textos de História Natural vai enfiando barretaça atrás de barretaça. Nós, que apenas pretendíamos fazer História e Filosofia das Ciências, não só já enfiámos centenas, como a cada passo ficamos em risco de enfiar mais outra. O que Carlos França ortografa é por vezes transcrição literal da nomenclatura inscrita nos textos de Bocage.
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