(CUMPRIDA ENFIM A PARTE SEXUAL DA MINHA OBRA)

Dizer que determinado artista é louco não afecta de modo nenhum a qualidade da obra, pois ela tanto pode ser genial por causa disso como vice-versa. Uma coisa é o louco e outra a loucura. Um indivíduo lúcido pode criar obras loucas, quer no bom quer no mau sentido. Um louco, igualmente. Para o crítico, a loucura funciona como princípio e não como ponto final de uma investigação.

Ora até que ponto um rapaz de vinte e cinco anos tem suficiente maturidade para que nos seus livros se detectem sinais susceptíveis de levar a crítica a negar que exista neles pornografia? Pressupõe-se que tal matéria existe num autor que sabe o que está a dizer. Um garoto inexperiente mas ávido de experiências, cuja avidez transporta aos confins da fantasia erótica, não escreve pornografias. Perturba é muito mais do que todos os Sades e Batailles juntos. Porque não há pormenores concretos, não há descrições objectivas de situações possíveis, a atenção do autor não se fixa em relatos, a intriga dilui-se, a ficção entra no domínio autobiográfico e vice-versa, as próprias personagens perdem realidade corporal, esfumam-se, transmutam-se, carecem de identidade permanente. A única consistência para tais situações vem de um iniludível desejo sexual, que se sente, é violento, mas não acha configuração em actos nem personagens materiais. Um deslizamento destes lança o leitor num terreno de areias movediças, perturba realmente a consciência. Mas esse fenómeno, que das novelas vai passar depois para a poesia, onde os referentes reais ainda menos visíveis se mostram, representa um dos aspectos mais sedutores de Mário de Sá-Carneiro.

A sexualidade desempenha função capital na sua obra. Não como prática realizada, mas como combustível emocional desencadeador da criação e alvo inacessível. Inacessível na realidade da sua vida solitária. Energia criadora e sexualidade de facto fisiológica confundem-se no entanto de tal maneira no seu próprio espírito, que escreve a Pessoa, numa das últimas cartas, referindo-se à aventura com Helena: Cumprida enfim a parte sexual da minha obra (...). Cumprida, enfim, como se de missão se tratasse; a parte sexual da minha obra, como se a experiência real fosse um episódio de ficção. Esta frase revela quão delirantes são as cenas eróticas da sua literatura, por muito que convidem o leitor a uma interpretação biográfica. A imaginação de Sá-Carneiro não tem limites, mas justamente o excesso é a melhor prova da sua total inexperiência. Por baixo da fantasia novelesca e da doutrinação sem preconceitos existe uma grande ingenuidade. E uma fome avassaladora. João Pinto de Figueiredo considera que uma das razões que mantiveram o poeta vivo até ao dia 26 de Abril de 1916 foi o desejo de não morrer sem ter tido uma experiência amorosa. Cumprida enfim a parte sexual da sua obra na relação com Helena, nada mais o tentava, mais nada o retinha preso. Parece pouco. Para um indivíduo que levanta suspeitas de pornografia por um lado, e que manifesta tanta curiosidade por outro, parece contentar-se com uma experiência que em certos homens nem deixaria marcas. A menos que o que a mim parece pouco fosse para ele a desmesura, excesso superior à sua capacidade de resistência. Compreender-se-ia, então, o mistério e o horror da Helena, só mistério e horror do seu próprio ponto de vista. Vou admitir que para ele a relação tenha sido excessiva. E vou mesmo supor que, ao contrário do que deixa entender, Mário, um rapaz inexperiente, desastrado e tímido, ansioso por se afirmar, não cumpriu totalmente a missão sexual da sua obra. Esse facto seria, entre os problemas com a madrasta e financeiros, razão bastante poderosa para o suicidio. Se a experiéncia tivesse sido feliz, ele ter-se-ia mantido vivo.

A lógica das suposições não satisfaz completamente O suicídio causa-nos sempre ansiedade. Perguntamos porquê, quando afinal muitos suicidas morrem sem querer. E então as razões formulam-se perto do acto, desta maneira: matou-se porque excedeu a dose, morreu porque a tomou fora do momento próprio, porque a pessoa que esperava não veio ou chegou demasiado tarde. De certo modo, uma realidade tão dificil de assimilar como esta corresponde ao quadro da morte de Sá-Cameiro: Almada Negreiros afirma algures que ele se arrependeu do que fez. Deve tratar-se igualmente de uma suposição, pois não vejo como pôde Almada saber tal coisa. Também é certo que as referências ao suicídio o acompanham sempre, e que antes dele fez outras tentativas, dando conhecimento aos amigos da sua intenção com a devida antecedência. E ainda é verdade que marcou encontro com José Araújo às oito da noite, oito em ponto. Acabava de tomar o arseniato de estricnina. Mas a dose excede os limites do simulacro. Uma pessoa que a toma no momento próprio também conhece a proporção devida. Portanto eu admito que Mário foi um verdadeiro suicida, ele queria mesmo morrer. A insatisfação vem-me dos porquês, quando uma proposição final talvez tranquilize mais do que as causais: suicidou-se para morrer, para resolver os problemas, para cortar radicalmente com uma situação insustentável. A relação com a Helena implicava a confrontação directa com uma realidade dificil de aguentar. Porque é que o poeta a acusa de ser um mistério, impossivel, um horror? E a que barbaridades se refere José Araújo? Maria Aliete Galhoz, bondosa e sensível, limita-se a comentar que esta rapariga foi a primeira a dar-Ihe a ternura de que se sentia carente. Um rapaz que aos vinte e cinco anos tem a primeira ligação, naturalmente fala dela aos amigos. Exagerando um pouco, para se dar ares. E iludindo os factos. Sá-Cameiro era poseur, com hábitos teatrais no sentido próprio e figurado. Vida e obra são em grande parte resultado de uma encenação.

De uma falta aos dois anos de idade passou-se por tanta coisa que pode dar a ideia de que hipervalorizo a morte da mãe. Se nem todos os órfãos se tornam Mários de Sá-Cameiro, nem todos os infelizes são órfãos. Uma só circunstância, por muito grave que seja, não determina o curso da vida. Pode inclinar, como os astros. Há um património genético herdado, um património cultural adquirido, variantes individuais, adaptação, acredito que exista vocação bem como inúmeros fenómenos próprios e estranhos que confluem para o estabelecimento de uma identidade, sempre ímpar. Aos dois anos de idade, Mário ficou sem mãe. Quem sabe se qualquer outro facto ocorrido na mesma altura não terá tido consequências mais graves? Pois bem. Há um pormenor biográfico referido por Maria Aliete Galhoz, que já causou estranheza, por se ignorar a proveniência da informação. Aos dois anos, Sá-Carneiro terá tido uma febre tifóide. Trata-se de uma passagem de «Ressurreição»:

Em pequenos, adoecemos gravemente duma enfermidade dolorosa que nos leva às portas da morte -fora até o caso do romancista, aos dois anos, com uma febre tifóide. Essa enfermidade existiu para os outros, que presenciaram as nossas dores, que nos viram sofrer, gritar, febricitar. Porém a realidade é que, embora os nossos gritos, não existiram para nós -porquanto os anos passaram, e nem a mínima reminiscência nos ficou dessas dores, porventura cruciantes.

Verdade ou ficção? Nada de mais natural do que tratar-se de uma informação biográfica. Pelo menos é mais plausível do que os delírios eróticos. De qualquer forma, o pormenor só me interessa por nada impedir que ele tenha tido consequências importantes ao longo da vida de Mário. Sabe-se que ele foi superprotegido na infância, ao abrigo de todos os dissabores, incómodos, esforços físicos, doenças. Era uma flor de estufa, filho único, a tal ponto apaparicado que, já adolescente, confessa ter dificuldade em calçar-se ou vestir-se sozinho. E desastrado, naturalmente porque nunca precisou de se desembaraçar pelos seus próprios meios, rodeado pela diligência de ama e criados. Nos poemas surgem revelações deste tipo: precisava pelo menos de hora e meia para se arranjar, antes de sair de casa. Em suma, Sá-Carneiro manifesta a mais completa inadaptação à realidade. Desde as insignificâncias até aos acontecimentos graves, perturba verificar a que ponto um homem de vinte e tal anos pode revelar tão grande incapacidade de sobrevivência. Ora é de aceitar que na sequência de uma febre tifóide o pai tenha dado ordens à criadagem para o filho ser severamente vigiado. Já em Paris, ainda o menino preocupa o pai: oxalá não se esqueça da camisola, cuidado, não se constipe! E é assim que nos poemas o leitor depara com estes pavores de constipações e similares, hoje e se calhar na altura vulgarmente designados por mariquices. Mas não é nada disso. O excesso de protecção inibe o indivíduo, fá-lo dependente, inapto para tomar decisões e sobreviver sozinho. A educação que recebeu roubou-lhe aquela agressividade que torna um ser humano apto para enfrentar a realidade. O dinheiro pode até certo ponto proteger um indivíduo que não sabe fazer nada - excepto belíssimos poemas. Quando falta, surge a impotência. Não nasce, surge. Aparece na sua trágica evidência. Porque ela já vem de trás, progressivamente acumulada por falta de afecto e excesso de protecção utilitária.

Na infância, poucos amigos deve ter tido, isolado na Quinta da Vitória, em Camarate, ou proibido de sair à rua por razões de condição social e perigo de constipações. No liceu, conheceu alguns, em particular aquele que no «Orpheu» e depois toma o nome de Luís de Montalvor, e Tomás Cabreira Júnior. A grande paixão de Mário nesta altura, últimos anos de liceu, era o teatro. Já se sabe que não perdia uma peça e que esse era o centro de interesse nas suas viagens a Paris. Mas o amor pelo teatro manifestou-se de outras maneiras. É François Castex quem, a partir da apresentação e estudo da peça «Amizade», escrita por Mário de colaboração com Tomás Cabreira, nos põe ao corrente desta inclinação. Mário escreveu pequenas peças: «Irmãos», antes de «Amizade»; representou alguns papéis em récitas escolares; traduziu peças espanholas e «Os Fósseis» de François CureI. Ainda em regime de co-autoria, mas agora com António Cardoso Ponce de Leão, redige «Alma», peça inédita. Só «Amizade» vai à cena e é publicada. Mas esta glória dos palcos -em 1912 - vem acompanhada pela tragédia real. Em 1911, diante de uma plateia estarrecida de estudantes, Tomás Cabreira suicida-se no liceu, disparando na boca um tiro de pistola. Mais tarde Mário recorda o amigo, dedicando-lhe o poema recolhido por François Castex, e que eu incluí na terceira parte desta antologia. «A um suicida», o suicídio não era um facto estranho na vida de Mário. Nervoso e hipersensível, sujeito a explosões emocionais, é natural que o horror de uma tal cena tenha alguma parte na posterior tendência do poeta para incluir na obra repetidas referências ao suicídio. Se a experiência lhe falta noutros domínios, dir-se-ia que a morte é companhia constante. E mesmo depois, mortes mais ou menos aparatosas rematarão a vida de alguns dos contemporâneos ou fundadores do «Orpheu», caso de Luís de Montalvor, estranhamente vítima, com a família, de um acidente de automóvel que o atirou para as águas do Tejo. Geração toda ela marcada por tragédias, incompreensões, anormalidades. No meio delas, Almada Negreiros surge a meus olhos como o mais sólido, o mais saudável do grupo.