(PALHAÇOS) Mário escreve versos pelo menos desde 1903, com 13 anos de idade. É um rapazinho precoce nos interesses intelectuais. No teatro fascina-o sobretudo o aparato externo, cenários fabulosos, luzes e simulacro de riqueza, numa simpatia que se traduz nos versos pelo deslumbramento que despertam requinte e exotismo. Nas novelas é sempre um cenário teatral que se desenha, ainda que imaterial. Tal como o discurso narrativo se empola de frases preciosas, gestos dramáticos, repetições, como quem ganha a convicção do que afirma à força de decorar um papel. Ou como quem tenta desesperadamente decorar um papel para deixar de ser quem é, numa perda de identidade e conquista de outra, a da personagem em representação. No plano lírico, o esforço para se livrar de si mesmo, e adquirir nova identidade, também se manifesta. A cisão entre Eu e o Outro é uma dominante, problemática da identidade, comum de resto à geração do «Orpheu», mas que em Sá-Cameiro ultrapassa o domínio da filosofia para se tornar um drama pessoal, experimentado na vivência quotidiana. Condição afinal do inapto, inadaptado à realidade do corpo. Incapaz de se fixar sequer à sua natureza corporal, a poesia de Sá-Cameiro como que flutua e escapa à materialidade das coisas, apesar de em grande medida se fundar num vocabulário referente a objectos concretos. Mas tudo se projecta num outro espaço, irreal, de «Além», «Astral», «Asa» ou «Quimera». O poeta pode não ter a consciência exacta da sua flutuação libidinal. Tem porém a consciência de a linguagem lírica o levar à organização de poemas sem suporte, agidos pelo ar e nele suspensos. Desligados da realidade concreta, quase simulam projecções ectoplásmicas. É ele que escreve, em «Asas»:
Explicação do que Mário entendia pelo interseccionismo, um dos vários -ismos que acompanharam o «Orpheu», mas também autocrítica. Se bem que tais comentários se insiram no plano ficcional, a pretexto de conversas com Zagoriansky, um poeta russo, cujos poemas o narrador traduz. Essas «traduções» achei por bem incluí-las na terceira parte da antologia, os «Poemas sem Suporte», justamente. Trata-se de «Além» e «Bailado». Arte e vida nem sempre constituem uma Só entidade. Mas no caso de Sá-Cameiro diria que a vocação teatral o impele a viver artisticamente e que até da morte faz um espectáculo. Não é ideia nova, limito-me a seguir as pisadas dos que me precederam. Se o suicídio foi real, e eu acredito que sim, embora, para ser franca, a minha convicção assente num único facto: ele conhecia perfeitamente os efeitos do arseniato de estricnina, uma vez que o tomava nas doses prescritas pela medicina, a fim de conseguir os resultados pretendidos. A dose que tomou excede fatalmente os limites do remédio. Portanto, se o suicídio foi real, tenho de concordar com os autores que o consideram um gesto espectacular. Uma encenação dramática, a que só faltou plateia. Ele só não deve ter contado com o pavor da reacção orgânica, de outro modo, para garantir que o corpo não se tornava disforme, decerto havia de preferir uma anestesia geral e letal, que o éter certamente causaria. Estas considerações são cruéis, mas a crueldade do encenador, autor e actor da cena de suicídio, excede a minha. Tal como o amigo Tomás Cabreira, também Sá-Carneiro quis um público a assistir ao remate da obra, naquele seu desejo de esplendor e «Apoteose». Adiada a decisão de se atirar para debaixo do metropolitano, a estricnina vem a seguir. Pessoa está ao corrente de tudo, Mário vai-o informando com bastante antecedência. Nada o desculpa, a não ser talvez o desejo atroz de se sentir amado. Mas vejamos o relato dos acontecimentos feito pelo seu próprio punho, em carta de 4 de Abril de 1916, dirigida a Fernando Pessoa. Vinte e dois dias antes do suicídio de facto:
O seu único interesse era a zoina, acreditava - ou fingia acreditar. Nada então de mais natural num garoto que se deslumbra com a sua maturidade, do que enaltecê-la - à zoina. Para ser cada vez mais interessante. Nestes momentos os extremos tocam-se para quem está de fora: o ridículo é tão grande que se torna trágico; a tragédia desce dos altos coturnos para dançar descalça uma dança burlesca. Há algo de que Sá-Carneiro se apercebe, por isso implora a Pessoa que tenha pena dele. Muita pena. O auge da zoina não o atingiu ainda, no entanto. Vai esperar por ele vinte e dois dias. Note-se, de passagem, que o papel atribuído a Helena contraria de todo a imagem da mulher que maltrata o amante, segundo a versão de José Araújo. Ou segundo a interpretação literal que José Araújo faz das palavras ouvidas a Mário de Sá-Carneiro. A vida só a concebe o poeta num remate glorioso, como forma dramática de ultrapassar um «quase» próprio de zonas intermédias, entrando no mundo dos deuses. Mediania dominada pelo tédio, onde a vontade estiola. A esse remate não é estranha a morte, porta além da qual a beleza se ergue das ruínas e a infinda paz se identifica com um pântano. O suicídio representa a transgressão, modo radical de rejeitar, de cortar todos os fios - mesmo os de ouro - que o ligam à realidade humana. Neste sentido, trata-se de um manifesto anti-social, em que o individualismo atinge o auge. Em «Apoteose», termo divinizador caro ao poeta, o cenário de objectos-sentimentos e de conceitos-matéria espelham o desejo de íntima dissolução, onde a realidade psíquica já se confunde com elementos de uma paisagem também ela contaminada pela morte:
Esta aspiração a um triunfo de actor que no palco se embebeda com os olhares de admiração, e na cabeça sente ressoarem os aplausos do público, surge disseminada na obra em evocações clownescas, aliás tão do agrado da arte nos princípios do século. De Picasso a Almada Negreiros generaliza-se o fascínio por personagens de circo ou de teatro popular, numa recuperação de aspectos ligados à expressão acrobática. Valorização do corpo, ele mesmo obra de arte, que ainda hoje faz parte intrínseca de intervenções estéticas no âmbito das artes visuais, e não só do teatro ou do cinema. Se por um lado, pelo menos em Sá-Carneiro, há um decadentismo de componentes mórbidos, revelação doentia de comportamentos e estados de alma (a Alma desenraiza-se do corpo para se projectar num Além como figura autónoma), por outro ele é contrabalançado com essa alegria talvez fictícia do clown, da personagem do menino no baloiço, em suma, da ingenuidade. Ingenuidade que Almada assume como prática voluntária, numa obra que tira daí um dos seus maiores encantos. Consciência, entre os artistas, de uma infelicidade mascarada a lantejoulas, de um apolinismo físico que oculta a degeneração interior, ou de uma ingenuidade real, impotente sob a pressão de uma História que passo a passo virá a ser marcada por tanta atrocidade. Mário de Sá-Carneiro desaparece antes do auge de tragédias que afinal se definem pelo extermínio não do indivíduo em si, mas dos indivíduos que formam certas populações, portanto antes do genocídio. Ele assiste porém ao subterrâneo desabrochar de ideias que o tempo amadurecerá até se tornarem actos, actos quantas vezes desproporcionados ou desviados, em relação às ideias que os precedem. Refiro-me naturalmente ao futurismo e a Marinetti. Sá-Carneiro conhecia a obra daquele que, em 1919, foi o segundo da lista fascista encimada por Mussolini, durante as eleições políticas em Itália. Na aparência, Sá-Carneiro não só se desliga da realidade como vive literariamente a sua vida. A política nunca interessou os homens do «Orpheu», só por acidente se envolvem nela. Mas um criador, mesmo o mais esquizofrénico, é receptáculo de influências de que não toma completa consciência. As literárias podem ser até as menos significativas. Movimentos psíquicos, tensões nervosas, estados de espírito perpassam pelo corpo social antes de ficarem aptos para explodir. Por razões perfeitamente infantis (veja a documentação inserida por François Castex no seu livro sobre a «Amizade»), Sá-Carneiro prefere que os alemães ganhem a guerra. Inútil censurá-lo, de resto um indivíduo é livre de se posicionar como quiser diante da realidade, desde que o posicionamento se apoie em argumentos razoáveis. Ele nem argumentos tem, quanto mais razoáveis. Curioso é que a estrofe de «Serradura» com o «Viva a Alemanha!» tenha sido eliminada das provas de página do «Orpheu» 3. Elimina-se muita coisa que não interessa. De tal modo se elimina que ainda há pouco tive oportunidade de assistir a uma reunião de feministas em que Femando Pessoa surgiu a dar autoridade a argumentos o mais possível desfasados das suas ideias. Se realmente se soubesse o que ele pensava das mulheres, estou certa de que não era preciso ser feminista para o arrumar com a respectiva filosofia na gaveta das inutilidades. O que não quer dizer que não seja um grande poeta, com certeza que sim. Mas uma coisa são os versos e outra a ideologia. Guardemos os versos, já que o homem, enfim. Enfim, ainda que se lhe volte as costas, a realidade funciona como gerador de estímulos, bebidos consciente ou inconscientemente pelas pessoas. Por natural hipersensibilidade, um artista ainda mais receptivo é a palpitações imperceptíveis de origem social. Acredito menos na hipótese de vaticínios como o da estrofe
do que na disponibilidade mental de Sá-Cameiro para captar no presente os sinais do que havia de vir. Não se trata de uma arte divinatória, mas de capacidade de recepção de informações mais ou menos clandestinas na mensagem do presente. A informação fica guardada na memória sem ter sido descodificada, só no futuro se encontra a chave do código. De qualquer modo, não se adivinha no vazio. Até o profissional, antes de emitir oráculos, necessita de lançar as cartas, estripar os passarinhos, ou de ler os sinais da bola de cristal. Eles eram muito dados ao ocultismo.
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