(CHERCHEZ LA FEMME)

Há nesta carta informações que têm sido utilizadas para justificar, pelo menos parcialmente, o suicídio de Mário de Sá-Carneiro. Acrescentando-lhes a circunstância de, meses antes, Carlos Augusto, pai do poeta, ter casado com uma mulher frequentadora de locais nocturnos, hostil a Mário. Durante a guerra, tendo partido para Moçambique, não era fácil a Carlos Augusto enviar ao filho as mesadas. Por outro lado, a mulher não devia ver com bons olhos essa despesa. Certo é que a má-vontade era tanta que Mário de Sá-Carneiro foi proibido de frequentar a residência familiar em Lisboa.

Poderá. tratar-se de motivos objectivos imediatos, mas ninguém se suicida por estas razões. Apesar das dificuldades da guerra e do esgotamento da fortuna pessoal, Carlos Augusto, com atraso maior ou menor, nunca deixou de enviar as mesadas. Insuficientes só porque Mário gastava muito, e gastou loucamente durante as semanas que antecederam a sua morte. Outros desgostos podem somar-se a estes, que não bastam para satisfazer a curiosidade de quem se interroga sobre os motivos que levam ao suicídio um indivíduo no auge das suas capacidades criadoras, sentindo já na vaidade o sabor da fama. O suicídio aparece num contexto de factores, próximos e remotos, visíveis e invisíveis. Um contratempo material pode representar somente a faísca que provoca a explosão.

Supõe-se que o caso amoroso do poeta com a Helena (1) tenha contribuído para o desenlace trágico. Sim e não. É difícil admitir a realidade dos maus tratos que terá infligido ao poeta, segundo o testemunho de José Araújo. Sá-Carneiro era muito poseur e José Araújo dramatiza excessivamente o caso das «drogas». Sá-Carneiro é poseur ao exibir uma namorada «impossível!» e José Araújo dramatiza o uso do éter. Trata-se de um narcótico muito em voga nos fins do século passado e princípios do nosso. Acessível, euforizante, facilitador das operações mentais, conta Ernst Jünger que era frequente ver nas ruas pessoas de lenço no nariz, e que não raro passavam carruagens deixando atrás de si um rasto de éter. Sá-Carneiro, como ele próprio diz, embebedava-se com a sua própria loucura. Não tinha necessidade de estimulantes intelectuais. Quando, muito tarde, começa a beber, isso é motivo até para o referir em verso e em carta a Pessoa, que, este sim, era um alcoólico. Mário, na sua inocência, declara mesmo preferir os xaropes aos licores, por terem cores mais vistosas. Esta infantilidade dá a medida dos seus interesses: cativa-o mais a imagem do que a realidade, e isto vale para as palavras, cuja beleza ou poder de sugestão o encantam mais do que o objecto que referem. Se na obra aparecem em quantidade as referências ao éter, morfina, ópio, cocaína, etc., isso faz parte do arsenal vocabular caro aos escritores da época, acrescenta: exotismo aos cenários decadentes, e excita a imaginação em relação à vida dissoluta que por vezes transparece nas novelas. Pose literária, registo de alguma eventual experiência própria ou alheia, o que pretendo dizer é que Mário de Sá-Carneiro não era um viciado nem tão-pouco foi maltratado pela Helena. O caso da estricnina é diferente, mais grave e significativo, mas fica para depois. Aliás, ele reservou para o fim a dose mortal.

Por consequência, não é nestas razões objectivas que a minha curiosidade busca a compreensão do suicídio. Como planta que a maior parte do corpo mostra a quem a contempla, há nele raízes subterrâneas. Antes porém de escavar a carta de José Araújo em busca delas, forçoso se torna sair do dia 26 de Abril de 1916, data da morte, e recuar a 19 de Maio de 1890, data do seu nascimento em Lisboa.

A família de Mário era abastada, o suficiente para que nenhum bem material lhe haja faltado. Carlos Augusto, seu pai, engenheiro militar, dispunha de fortuna que lhe permitia viajar regularmente pela Europa. Mais de uma vez levou o filho consigo. Além de entrar em contacto desde muito jovem com meios onde a civilização mais evoluída lhe deu certamente outros horizontes, Mário tinha conta aberta nas melhores livrarias de Lisboa, recebia directamente publicações estrangeiras, não perdia uma peça de teatro, dava-se ao luxo de passear em automóvel particular pelas avenidas, facto que devia ser pouco usual nos princípios do século. Por estes exemplos podemos concluir que as condições em que viveu eram propícias a desenvolver nele não só o gosto pela arte como o hábito do luxo.

De facto, na obra virá a manifestar-se algo que certos autores consideram de mau gosto: a tendência para descrever ambientes de uma pesada riqueza. O fausto, as decorações luxuosas, a evocação de perfumes raros, tudo isso provém da sua experiência de uma vida fácil, mas também há aí uma fantasia que deve ser encarada mais no plano da beleza verbal do que referencial. Ou seja, se os cenários, a existirem realmente, se nos afiguram de mau gosto, já o mesmo não se poderá dizer da linguagem, pelo menos na poesia. Os ambientes são imaginários, só a linguagem que os descreve é real. E trata-se, na maior parte, de cenários realmente teatrais. Mário de Sá-Carneiro tinha pelo teatro uma grande paixão.

Por contraste com a abundância de bens materiais, logo aos dois anos o poeta foi privado de riqueza maior: Águeda Maria Murinello, sua mãe, morre com vinte e três anos apenas. Esta morte há-de com certeza ter agido brutalmente no que devia ser um desenvolvimento psíquico normal. A falta de mãe, talvez mais do que a falta da mãe, uma vez que a crianças de dois anos não será difícil aceitar boas substitutas, abriu provavelmente um vazio nunca mais preenchido na afectividade de Mário. O pai não lhe deve ter dado a assistência precisa, daí que a criança tenha crescido sem a presença da autoridade, da solidez de uma protecção emocional. Mais tarde, essa falta vem a denunciar-se na sua insegurança, timidez, dificuldade de entrar em comunicação íntima com os outros.

A distância torna-se um elo de ligação, quando só à distância se entrega, mediante a escrita. Ou então funciona mesmo como vazio, fronteira entre ele e os outros. Como se não tivesse a experiência do convívio social. É assim que nas novelas as personagens centrais são quase sempre o artista, o escritor, o poeta, espelhos que o reflectem autobiograficamente. Não será tanto o narcisismo a operar selecção tão brutal no leque das personagens possíveis, mas a sua inexperiência: teve poucos amigos, quase todos foram artistas, e fora dessa actividade não teve ocasião de conhecer profundamente mais ninguém. As mulheres que aparecem nas obras são criaturas literárias, sem dimensão real. É natural, basta ler a sua correspondência e as biografias para se chegar à conclusão de que, morta a mãe, ele só vem a conhecer a sério uma segunda mulher semanas antes de morrer. A Helena, precisamente. Não há uma única presença feminina entre os raros amigos que teve ao longo dos vinte e cinco anos de vida (2). Nestas circunstâncias, é inevitável que ele seja sobretudo sensível à beleza feminina, ao que vê passar nas ruas, mas se mostre incapaz de erguer na obra a personagem de uma mulher real. Não as conhecia. Não chegou a conhecer sequer Sonia Delaunay, mulher que vem a desempenhar papel tão interessante entre os artistas de vanguarda da época. Todos se correspondem com ela e o marido, todos frequentam a sua casa, todos no fundo se apaixonam por ela (3). Nem Mário nem Pessoa participam do mundo jovial e extrovertido dos artistas visuais. A sua juvenilidade é séria e triste, o seu recolhimento interior chega a mostrar-se doentio.

As raras mulheres que se dedicaram a Sá-Carneiro terão sido, nos primeiros anos de vida, as criadas e a ama. Mas nem umas nem outra devem ter tido capacidade para cumular de ternura uma criatura cuja obra denuncia pungentes carências de afecto, por mais dedicadas e amáveis que se tenham demonstrado. Já nos últimos meses de vida, quando se fazia sentir a necessidade de dinheiro, Mário de Sá-Carneiro incumbe Femando Pessoa de melindrosa tarefa: pedir à ama o cordão de ouro, para o empenhar. Com uma diligência às vezes difícil de entender, Pessoa, sistemático moço dos piores recados do amigo afastado em Paris, condescende em prestar-se ao serviço, enviando pouco depois a quantia recebida. Mas a generosidade da ama é insuficiente para suturar a ferida afectiva. Pode é explicar um pouco que Mário, de entre todas as mulheres possíveis, venha por fim a interessar-se por uma que também é generosa, dedicada, e porventura afectuosa, estando porém longe de pertencer ao estrato social de que Mário provinha: a Helena, uma actrizita de cabaré, prostituta nas horas vagas. Não seria a companheira ideal. Com um pai viajante e distraído, dificilmente Mário terá tido oportunidade de coagular a afectividade num corpo interno, reservatório de combustível emocional que o segurasse a si mesmo ou lhe permitisse o investimento amoroso numa mulher adequada, a eleger em tempo oportuno.

A literatura de Mário de Sá-Carneiro, toda ela, desde as cartas a Fernando Pessoa até aos poemas, é um documento vibrante de impossibilidades, a mais viva das quais se define pela incapacidade de escolha de um par amoroso. Há quem refira a sua incapacidade de amar, o que me parece justo. Menos justa me parece a alusão a falta de desejo, e em consequência o seu desejo de o experimentar. O desejo de desejo é sobretudo desejo, excesso que só a morte acalma. Portanto eu penso o contrário: aquele luxo dos cenários, habitados por mulheres luxuosamente bizarras, manifesta, mais que o mau gosto do luxo, uma grande inclinação para a luxúria. A mim, cada linha ou verso deste autor me fala de uma tal perturbação sensorial que atinge os limites da tragédia, da mais desesperadora infelicidade: a presença contínua de desejo, de um exacerbado apetite sexual, na base do que ele mesmo diz ser uma impossibilidade de possuir. Por timidez, ou lesão orgânica que a provoca. É interessante ver como a ansiedade o leva a tecer esses cenários luxuriosos que, a partir de certa altura, deixam o plano do verosímil para se erguerem num grito delirante além daquele «quase», sinal de impotência. Quando ultrapassa as «zonas intermédias» é para cair numa linguagem desesperada, patética à força de transfigurada em «Asa» ou «Quimera», em suma: impotente para referir algo que na realidade não toca, não conhece, e por isso é impossível descrever.

Por outro lado, as personagens sobre que recai o peso do desejo também são irreais, metamórficas, não correspondendo a modelos tirados da experiência vivida. Daí que não absorvam a energia liberta pelo sujeito, antes a disseminem. Energia que já de si vem pulverizada. A sua líbido é errática, poder que se não concentra, não conflui para um alvo. Para usar um título seu, bastante sugestivo, o potencial amoroso e sexual encontra-se em estado de dispersão. Pulverizado intimamente, o afecto não acha saída para um suporte físico que não seja a literatura, razão tendo aqueles que afirmam ter Mário vivido literariamente a sua vida. O desejo, além de centrado, organizado, precisa de um ser além de si que represente um espelho, objecto que apare e devolva a energia investida. Que dê sobretudo de nós uma imagem amável, visto que só amamos outro em função do nosso amor próprio.

Em Sá-Carneiro, não somente a afectividade não está contida num dispositivo organizado, como, por isso mesmo, não se detém numa pessoa determinada, eventualmente reflectida por determinada personagem. Líbido errática ou aparelho psíquico confuso, a indeterminação vai gerar equívocos, com fundamento literário mas, na experiência, sem contrapartida real. É assim que alguns autores, com rapidez não isenta de encanto, determinam que Mário de Sá-Carneiro era homossexual. Tendências latentes era natural que as tivesse, mas na mesma percentagem de quantas diferentes dessa se possa imaginar que ele tenha imaginado. Que aquele «Gosto tanto de si!» em carta a Fernando Pessoa, tal como a habitual dependência amorosa (a que o destinatário não terá sido insensível, por lhe alimentar o narcisismo amoroso e literário, razão talvez da sua dependência utilitária em relação a Sá-Carneiro) evoquem a ideia de uma relação desse tipo, é evidente. Mas a realidade em factos é impossível. Aliás, parece oportuno fazer aqui uma pequena citação, oriunda de «Ressurreição», novela incluída em «Céu em Fogo». Mário de Sá-Carneiro, numa das cartas a Pessoa, identifica as personagens como sendo pessoas das suas relações:

Por minha parte, confesso-lhe que me mantenho cingido de orgulho. E podem mesmo os outros, os tais outros eternos, afirmar que a nossa arte (a minha e a do Fernando Passos) é no fim de contas «uma arte de masturbação»! - Pobres pequenos... pobres pequenos... Longe estão eles de adivinhar que essa frase só me pode ser um motivo de glória... Pois - olvidando todos os preconceitos - não será a masturbação a voluptuosidade máxima de Alma; a mais imponderável, visionada e subtil em Além?

Olvidando todos os preconceitos, não é a arte masturbatória que merece reticências. Quando o jovem Mário se esforça desesperadamente por assentar em teorias a sua prática, é que eu fico de sobreaviso em relação à experiência que tem do que afirma. As suas justificações, tal como o desfecho das cenas de luxúria, desaguam sempre no delírio poético. Nenhuma realidade lhes assegura um mínimo de verosimilhança, tudo é literatura. E não é por aqui que a literatura perde ou ganha em qualidade; limito-me a afirmar que ele não tinha experiência do que recusa, se a teve do que defende.

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(1) Um acaso de interpretação da obra fez com que tivesse surgido este nome, pouco lógico, de resto, uma vez que era francesa. Utilizo-o por necessidade de dar um nome às pessoas, não me é grato designá-Ia por «a tal rapariga». Sobre este assunto veja Joel Serrão, Maria Aliete Galhoz e Dieter Woll.

(2) Escreve 3 ou 4 bilhetes sem importância a Cândida Ramos, tia de Luís Ramos (verdadeiro nome de Luís de Montalvor). V. «Cartas», organizadas por Arnaldo Saraiva.

(3) V. Paulo Ferreira, «Correspondance».