(BEIJANDO-SE NOS ESPELHOS) Voltando atrás, dizia eu que na obra de Sá-Carneiro se denuncia uma líbido errática. Isto é, o seu desejo inorganizado erra por potenciais objectos amorosos sem se fixar em nenhum. Se fugazmente se detém em si mesmo, nesta visão feminina ou num Fernando Pessoa, trata-se apenas de uma escala ansiosa sem grande significação, num percurso que carece de itinerário e de destino. O desejo erra nos vários sentidos que ele e errância tomam. Dieter Woll, estudioso frio e cauteloso, repudia o que designa por atitude homoerótica, inclinando-se, com Maria Aliete, para um fenómeno bem mais simples e gritante na sua evidência: exceptuando a Helena, Sá-Carneiro não teve experiências sexuais com mais nenhum companheiro. Portanto não há excessos, há uma falta como desvio à norma a merecer atenção, por desencadear reacções que funcionam como máscara da realidade. E que de certo modo torna compreensível o drama das relações com aquela rapariga. Aproveito para manifestar estranheza perante a opinião de Fernando Pessoa, segundo a qual a «desumanidade» dos versos de Sá-Carneiro resulta da falta da mãe, tal como desta falta resulta o seu amor por si mesmo. Em primeiro lugar, o termo «desumanidade» não se concebe em relação a nada que diga respeito ao Homem. Só serve para gerar preconceitos estéticos que infelizmente ainda hoje subsistem, por exemplo no modo como certos críticos encaram a ficção científica, a banda desenhada, etc.. Ora nem um computador fornece informação desumana, visto que trabalha em função de dados introduzidos pelo homem. Uma arte produzida por intermédio de um computador é tão humana como a que sai de uma guitarra ou de uma esferográfica. Este preconceito existe inclusivamente na distinção entre o manuscrito e a dactilografia directa de um texto. Se o termo «desumanidade», usado por Pessoa, se refere a crueldades (e também a crueldade seria manifestação do carácter humano), é certo que há sugestões sádicas nas novelas, mas entram no capítulo do delírio erótico, no mesmo plano das masoquistas. Quanto ao amor por si mesmo, ele contraria logo a desumanidade. De resto, são muito ternas as passagens de poemas em que, na sua solidão e desamparo, o poeta se encosta à sua própria afectividade como única companhia. Mas isso é raro e não creio que a falta da mãe gere narcisismo. A falta de mãe, de objecto de amor primordial, parece-me gerar mais o seu antinarcisismo. Finalmente, se no relacionamento amoroso o outro funciona como espelho que nos devolve a nossa própria imagem, e só o amamos na medida em que a imagem reflectida nos agrada, a ele faltou-lhe o primeiro dos espelhos. Donde é natural concluir que não chegou a tomar posse da sua identidade. Se algures aparecem referências ao facto de se beijar nos espelhos, isso reflecte mais o desejo de se identificar consigo do que narcisismo no sentido vulgar do termo. E ainda aqui o gesto tem para mim uma grande carga de humanidade. A verdade, porém, é que Sá-Carneiro rejeita a imagem que vê nos espelhos, por muito que a queira amar. Ele não gostava de si mesmo, sente-se humilhado com o corpo que tem:
Por se considerar gordo, desastrado, inapto, «esfinge de papelão», mais difícil ainda lhe era gostar de um outro, uma vez que o espelho dos outros o paralisa de medo. A megalomania patente noutras passagens é um reverso de medalha, máscara. Sabemos que no fundo do desejo de se mostrar superior há sempre um sentimento de inferioridade. Por um golpe de contradição, diríamos que Sá-Carneiro só revela a sua real condição de criatura superior quando se humilha. A angústia manifesta-se através de jogos em que a realidade nunca é a dos sentidos literais, antes a antítese deles. Sá-Carneiro só gostou de si o mínimo indispensável para se manter vivo durante vinte e cinco anos. Nessa altura verificou-se a rejeição radical da realidade, nela se incluindo o próprio corpo. Narcisismo doentio, megalomania, representam elementos de um cenário teatral na mesma ordem de ideias dos excessos sexuais. Por detrás dessa manobra compensadora existe timidez, humildade mórbida, excessiva dependência, carências afectivas muito graves, desgosto pela própria aparência, vergonha, uma tremenda imaturidade. Somando positivos e negativos, da contradição resulta uma criatura indefesa, incapaz de sair das «zonas intermédias» a não ser através da poesia. A que vêm preocupações por assuntos cuja intimidade gera nuns tantos rodeios e a outros parecerá intromissão indevida? Há inúmeros motivos para fazer esta pesquisa, incluindo os doutrinários. Uma obra não traduz só o que pensa ou sente o autor, reflecte igualmente o que é do domínio social ou de outro. No caso de Sá-Carneiro temos de distinguir a sua verdade do que nele é pose literária, atitude submissa perante uma ordem instaurada dentro ou contra a ordem por que se rege o anonimato. A concepção que um amigo íntimo, correspondente assíduo, gozando de ascendente sobre o poeta, evidencia sobre a mulher - questão suficientemente importante para revelar uma ideologia - há-de ter influenciado o ultra-sensível Sá-Carneiro. Um dos méritos da revista «Orpheu» era não incluir colaboração de mulheres; só seres superiores tiveram a suprema honra de lá meter o nariz. Anos mais tarde, se acaso estas filosofias tivessem atravessado a fronteira, não teriam sido os judeus nem os atrasados mentais a estrear as câmaras de gás, com a vantagem de o extermínio das mulheres resolver de forma radical o problema da reprodução de uma espécie afinal tão pouco digna de respeito. Não acuso Fernando Pessoa de desumanidade nem de falta de ternura, acuso-o de ignorância, quando escreve, nas «Páginas de Estética»:
A tridimensionalidade do disparate, perante o que a fina flor da nossa investigação científica considera «O animal mais perfeito da Criação», com uma ironia assente noutro tipo de valores e de conhecimento, só se entende se lembrarmos a fábula da raposa e das uvas. Eram incomestíveis por estarem demasiado altas para a fome as agarrar. Pobres pequenos... pobres pequenos..., se se me permite um plágio que dispensa mais considerações. Verdade se diga que, a interpretar autobiograficamente certos passos da obra de Sá-Carneiro, o mesmo Fernando Pessoa lhe terá receitado, para alívio dos padecimentos, a eleição de uma companheira gentil. Clínico competente, se bem que a sabedoria não vá mais longe do que confundir a mulher com um tubo de aspirinas. Outros a considerariam a dor de cabeça. «Impossível, impossível, um mistério, um horror!» Seja como for, Mário de Sá-Carneiro teve a experiência do remédio ao mesmo tempo doença. Com Ophelia, Pessoa ficou à distância das uvas, absorto na correspondência. Aliás compreende-se mal que um defensor das virtudes da pederastia se tenha deixado entusiasmar com um ser bidimensional, nitidamente inferior. Ora importa ver em que medida são verídicos ou apenas verosímeis factos que, a tomarem-se à letra, não passam de aberrações. Não discuto a homossexualidade em termos de anormalidade social, uma vez que já Fernando Pessoa lhe determinou a norma ancestral. Em termos biológicos é uma anormalidade, se considerarmos que o sexo só existe quando se fundem dois núcleos com metade do número dos cromossomas da espécie, sendo paisagem o que lhe fica à volta. Nem as teorias sobre o Corpo Astral têm poder para modificar o fenómeno. Mas nestes casos literários discute-se a paisagem. Não é a biologia que responde às perguntas sobre o temperamento de alguns arquitectos do «Orpheu». Adiantando a conversa para o que importa, se bem que num plano filosófico da bi- e tridimensionalidade do psiquismo humano: o que merece discussão é a teoria que defende essa e outras práticas desviadas de uma norma sexual que a mim me parece tão saudável, com a alegação de ser a mulher imprópria para consumo. Estes dois rapazes, um com vinte e cinco e outro com vinte e sete anos em 1916, eram estarrecedoramente infantis. Se a sinceridade é de facto moeda forte em matéria de apuramento de qualidades estéticas, mesmo no fingimento de uma representação teatral, a convicção honesta com que frequentemente discorrem sobre o que ignoram ultrapassa de longe as fronteiras da farsa: é alta tragédia, e isto merece umas lágrimas. Mário de Sá-Carneiro, por muita simpatia que haja demonstrado pelo amigo, e por extensa correspondência que tenha recebido, não era homossexual. A importância de estabelecer a verdade dos factos resulta da necessidade de evitar interpretações equívocas da obra. Nas novelas, não raro aparecem situações desse tipo. E como a prosa de Sá-Cameiro tem muitos dados autobiográficos, apontados até nas cartas, o leitor é facilmente induzido a tirar conclusões erróneas. Também a poesia está carregada de sugestões que podem levar a concluir que havia da sua parte tendências para a homossexualidade passiva. É o caso de «Feminina»:
É curioso que ele diga gostar de ser mulher para enganar o amante com um rapaz gordo e feio, de modos extravagantes. Forma de exprimir o desejo de ser amado, como rapaz gordo e feio. E esse capricho de excitar e recusar-se também merece que se pergunte: só as mulheres se recusam? O homem não tem direitos iguais? O poema data de Fevereiro de 1916. Em Março, segundo José Araújo, Mário conhece a Helena. O que é que ele, na sua condição masculina, não pôde recusar-lhe? O éter ou a estricnina? Em meu entender, esta é a resposta ao enigma do «Esfinge Gorda». Digamos, antes de prosseguir por outro caminho, que a literatura de Sá-Carneiro é um extenso delírio erótico. Nesse delírio, o aspecto homossexual é apenas um elemento de cenário. ...............................................................................................................................................
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