Segunda-feira 11

Meu caro Amigo

Tinha perguntado pelo António de Carvalho; dizem-me que fora à terra dele; e depois que o viram na cidade. Não o tenho apanhado; por isso mando amanhã a remessa pela grande velocidade como me pede na sua carta. Na quinta-feira passada fui outra vez com um rapaz ao [desencantado?] paúl de S. Fagundo. Tudo que apanhei foram coisas repetidas - Mais ninhos e ovos de Calamoherpe turdoides (1), mais de Galeirão e Rabiscoelha, outra Calamoherpe também macho, etc.. Volto lá no próximo domingo por causa de uns ninhos que lá vi em princípio e que ainda não temos.

Eu ainda não sei distinguir a A. arundinacea da S. luscinoides (2). Achei lá ninhos principiados exactamente como os de turdoides porém muito pequenos; veremos como são os ovos. Estes ninhos são sem dúvida os da arundinacea. A Lymnea da Foja é com toda a certeza a palustris (3). O Manuel Paulino já a tinha assim classificado. Tudo o que diz desta espécie quadra perfeitamente com a da Foja. Ela tem uma volta na esfera de mais (4). O sapo B. igneus existe entre nós, e por isso há-de aparecer mais cedo ou mais tarde (5). Mandei ontem o António às chyoglossas (6) para me trazer ou mandar girinos muito desenvolvidos; mandaram-me destes pouco maiores, e grande porção de pequenos. É [...] Foram todos achados numa jeira de água, que vem a ser um bordo de terra amassada para suster a água que nasce numa pedra, e depois de junta a água regar com ela. As chyoglossas põem os ovos na água nos bordos das jeiras. Não sei se as mães entram na água para pôr os ovos, pois é possível não entrarem nela depositando-os à superfície da água.

Ainda não se achou nenhuma adulta dentro de água. Não tem vindo objecto algum da Foja; talvez por o Manuel Paulino não ter escrito a pedir licença aos Ferreiras Pintos para deixarem lá caçar os criados da tal quinta. Eu estou muito bem informado de quanto é insalubre aquele sítio; só no Inverno se pode lá ir. Também o paúl de S. Fagundo é assim logo que as águas sequem. Os muitos peixes vermelhos que há lá morrem, e as ervas podres exalam miasmas pútridos muito prejudiciais à saúde. Se não fosse a grande abundância de água que ainda lá há, eu não podia continuar ali as minhas explorações. Pode ser que a minha ida no domingo não seja ainda a última nesta e na próxima estação, por causa dos ninhos, que continuam, porque a água inutilizou a maior parte deles. Os ninhos da S. turdoides (7) estão 8 palmos, pouco mais ou menos, acima da água. A postura é ordinariamente de 4 ovos e algumas vezes de 5.

Os ninhos de Galeirão são disformes. Um feixe de bunho entrelaçado, mais alto de um lado, com uma pequena cova aonde estão os ovos. Acham-se alguns ninhos que têm de comprimento 5 palmos. A fêmea sobe para o ninho pela parte mais baixa dele, que é uma rampa. Diz-me o barqueiro que os ninhos sobem e descem quando a água levanta ou abaixa. Os ninhos da Rabiscoelha são redondos feitos de pontas delgadas de bunho, ou de ervas secas. Cria algumas vezes nas ervas, porém ordinariamente sobre os troncos baixos dos salgueiros quando eles, em consequência de ser muito podados, formam uma espécie de cabeça na parte mais elevada. Achei um ninho num salgueiro que teria de altura 5 palmos, e a esta distância da água estava o ninho.

Os Galeirões criam no meio dos lagos, e as Rabiscoelhas sempre nas bordas destes. Desta última vez vi lá apenas um milhafre que conheci ser o circus cinerens ou cineraceus (8). O Manuel Paulino a última vez que lá foi achou um ninho dele já feito mas ainda sem ovos. Não sei se enjeitou o ninho. A postura ordinária da Rabiscoelha é de 8 ovos e a do Galeirão é de poucos mais. No paúl achei apenas Lymnêas da espécie ovata (9). Há lá boas succinias (10) no bunho; o que falta é tempo para com vagar e cautela as apanhar. nesta semana vai o Manuel dos ratos à pedreira de Ilhatro [11] ver se mata algum Myoxus glis (12) que lá possa descobrir. Não sei se haverá lá esta espécie. Sem estas tentativas nada se faz. Ainda cá tenho muitos fundos.


12 de Junho

Lá vai a remessa para Coimbra. Estou esperando pelo recibo. Ah! minha querida mala-posta! Sempre será por mim chorada! A remessa está já em maior preço, mais 240 de girinos e 300 no barqueiro. Mandei dizer ao António que visse se descobria girinos mais crescidos. O António de Carvalho disse ontem em Coimbra que lhe mandasse a remessa, mas que não ia agora a Lisboa. Foi para a terra até segunda-feira. Se lhe mando a remessa ela estraga-se por força. Faça favor de me escrever no mesmo dia em que receber esta remessa.

Aqui tem o recibo. Diz o homem que hoje a tarifa é mais barata e por isso mandei eu lá outro dia para ver quanto é menos do que os 900 réis.

Sempre Amigo

[cortada a assinatura na fotocópia]



(1) Calamoherpe turdoides - Acrocephalus arundinaceus - rouxinol-grande-dos caniços.

(2) A respeito de Locustella luscinioides luscinioides (Savi), diz Themido (1952, pag. 160) que apenas um exemplar desta espécie fora observado em Portugal, no Paúl de S. Fagundo, perto de Coimbra. Em Bocage (1862) vêm mencionadas: Calamoherpe turdoides, Calamoherpe arundinacea e Cettia lusciniodes.

(3) Limnaea palustris - Nobre (1941) diz que não tinha dados pessoais sobre a distribuição em Portugal destes moluscos. Na colecção de Portugal do Museu Bocage, por ele estudada, os exemplares não tinham indicação de localidade.

(4) A frase está emendada, tem sinais de "+" e a expressão "de mais" sobreposta no fim da frase, donde se entende que a concha tinha uma espira a mais.

(5) Nova referência ao sapo de ventre cor de fogo, Bombinator igneus, espécie ainda não redescoberta. Porém uma outra espécie de sapo foi há poucos anos descoberta no Paúl de Arzila (região de Coimbra). Outras espécies, mencionadas nos catálogos mais antigos, ficaram ocultas durante décadas, e só agora os caracteres se têm tornado conspícuos de modo a poderem os animais ser classificados. Porém Bombinator igneus nunca foi catalogada para a fauna portuguesa.

(6) Chioglossa lusitanica.

(7) Não é "S", sim "C", de Calamoherpe turdoides - Acrocephalus arundinaceus - rouxinol grande dos caniços.

(8) Circus pygargus - milhafre (Themido, 1952)

(9) Limnaea peregra. Nobre (1941) refere Rosa para as colheitas em Coimbra destes caracóis.

(10) Outros caracóis, do género Succinea. Nobre (1941) menciona Coimbra na área de distribuição em Portugal de Succinea elegans.

(11) Ilhatro ou Ilhastro. Não descobrimos a que lugar se refere este topónimo.

(12) Rato dos pomares, rato das serra : Elyomis quercinus. Madureira & Ramalhinho, 1981.