Meu Caro Amigo (1)

Lá vai para o Porto o nosso Paulino e na volta demora-se alguns dias em Aveiro por causa das aves.

Por várias vezes lhe tenho falado nas que ele trouxe de Trás-os-Montes; ainda me esqueceu mencionar as seguintes Lanius excubitor (2) 1 exemplar, Cinclus aquaticus (3) 2. Dei já um passeio nocturno para apanhar Sapos, e apanhei apenas outro exemplar do cultripes (4). Não vi nenhum mais, nem tãopouco dos ordinários: a noite não estava sapeira. Continuarei nestas pesquisas. Há poucos dias em S. Paulo foi estragado por um arado um exemplar do B. igneus (5). Cada vez me dão maiores esperanças de os obter. Está aqui o Dr. Cortez - entreguei-lhe a caixita com 6 exemplares do Planorbis (6) para o meu amigo ver a espécie : se for boa mandar-lhe-ei mais exemplares em melhor estado, porque as conchas que lhe mando são velhas - únicas que pude apanhar no tanque, porque, como lhe disse, o depósito deles é na nora. Mando-lhe duas Lymnêas (7) do tal tanque. O Cortez volta para aí por estes 2 ou 3 dias. Quando lhe escrevi a minha última carta esqueceu-me dizer-lhe que o Paulino e meu mano foram ao campo ao paúl de S. Fagundo e não acharam ave alguma interessante. Não há que fiar no tempo, que tem estado cada dia com intermitentes, ora de chuva, ora de sol, ora de ventania; logo que esteja bom vou à Geria mesmo por causa dos arviculas tanto o [X]osianus (8) como os de que sempre me lembro = Pretos ferruginosos, de olhos grandes e cauda curta = Não tenho tido por ora muitas borbulhas; porém este estômago não está muito bom apesar de digerir bem a comida. Mandaram de Chaves ao Paulino uma Víbora amodytis (9) que é grande e tinha dentro dela 13 filhos próximos a nascer (10). Tanto a mãe como os filhos estão em aguardente. Ainda não veio de Vizeu ao Manso o Corvo de penas vermelhas P. alpinus (11), e o tio do Manso não tem escrito, por isso não sei se mataram a Pantera e se ele lá terá alguma das cobras grandes que o sobrinho lhe pediu para mim.

Diga-me se também este ano está livre das aulas, e quando se publica o jornal científico. Para o fim deste mês vai o Paulino à Foja, veremos se traz de lá mais exemplares da Lymnêa palustris (12). Não tenho este ano procurado morcegos; eles não me dão esperança de obter mais espécies do que a murinus auritus (14), pepistrelus (15), kulii (16), hastatus, e bihastatus (17). O kulii é para mim duvidoso se existe ou não aqui. Tirei licença para uso e porte de arma caçadeira, por espaço de 6 meses. O Paulino também a tirou. Como temos de sair para sítios aonde nos não conhecem, por isso a tirámos 1:205 réis não é caro. Quando puder dê notícias suas ao seu

Amigo do Coração

Bicheiro-mor



(1) Respondido a 6 de Novembro, manuscrito por Bocage.

(2) Picanço-real. Sacarrão & Soares.

(3) Cinclus cinclus - melro-d'água. Sacarrão & Soares.

(4) Pelobates cultripes.

(5) Bombinator igneus, o sapo de ventre cor de fogo, que não está catalogado para a fauna de Portugal.

(6) Mollusca.

(7) Limnaea. Mollusca.

(8) Arvicola rozianus. As duas palavras estão gralhadas e não é inteligível a primeira letra de "rozianus". Realmente parece um X em posição oblíqua.

(9) Vipera ammodytes - Vipera latasti latasti - víbora cornuda.

(10) As víboras são ovovivíparas, os filhos nascem dos ovos mas dentro do corpo da mãe.

(11) Não descobrimos corvos, pegas (Pica) nem gralhas (Pyrrhocorax) cujo nome específico fosse alpinus/alpina.

(12) Limnaea. Rosa acentua invariavelmente o nome do género, que assim fica triplamente gralhado.

(14) Plecotus auritus. Morcego orelhudo. Manuela da Gama, 1957. Myotis myotis (=Vespertilio murinus e = Myotys myosotis Miller 1909). Não conseguimos saber de que espécie fala Rosa, de resto a sinonímia inclui nomes de plantas - miosótis.

(15) Pipistrellus.

(16) Pipistrellus Khulii. Manuela da Gama, 1957.

(17) Na sinonímia de Rhinolophus ferrum-equinum há um Rhinolophus unihastatus. Manuela da Gama, 1957.