Quinta do Espinheiro, 15 de Agosto 64.

O nosso Dr. Cortez disse-me que havia de intrigar com o meu amigo e por isso lhe falou em botânica; é um grande maroto. Há poucos dias foi daqui para aí um primo dele que é ou tem sido empregado no brigue Ligeira que anda na carreira de Lisboa para o Pará; escrevi por ele ao meu amigo ou a pessoa que faz as suas vezes no museu, com o fim de lho mostrarem, e dar-lhe instruções para ele também concorrer para o aumento das colecções; basta que ele leve para aí os animais que morrerem no brigue para se arranjar alguma coisa boa; morreram 2 macaquitos pretos do tamanho de ratos, com uma malha amarela sobre as costas, talvez ainda lá não tenha esta espécie, que não se perderia se o rapaz os tivesse aberto e deitado em aguardente. Consta-me agora que talvez ele mude de navio e vá para a carreira da Índia a Lisboa.

Não tenho dúvida em crer que o sapo de ventre cor de laranja é o Bombinator igneus (1); o espinhaço dele é mais alto do que as ilhargas do corpo e pode dizer-se que elas formam 2 planos inclinados.

Apanhei e tenho em aguardente 2 sapinhos de que o meu amigo não fala na sua lista (2), são mais pequenos do que o obstréticans (3) os olhos são escuros com um risco branco perpendicular, têm pequenas pintas vermelhas dos lados da cabeça, pescoço, e corpo, parece-me que é o campanisona (4), o meu amigo pode ouvi-los cantar em Sintra depois de Trindades - tó-tó-toró -. Não conheço pelos nomes científicos as cobras - Periops hippocrepis (5) e Coelopeltis insignitus (6). Tenho 4 em aguardente; infelizmente 3 são a mesma espécie, e esta ainda lha não mandei; é castanha mais clara do que a scalaris (7) e não tem as riscas sobre o dorso, tem pintas pretas, brancas no centro, talvez seja variedade da scalaris, a outra cobra tem o pescoço esverdeado e destas há muitas variedades com o ventre branco, com ele preto, pintado, e com as tintas diversamente distribuídas. Desta última já o meu amigo lá tem. Desejo mandar-lhe a cobra escura do mato com o ventre deformado. Pedi ao Dr. Pedro que mandasse apanhar víboras, porém o homem não é bicheiro, e por isso não me deu esperanças. Um homem muito sério diz-me que há cobras grandes vernenosas nas proximidades do Porto e que também há lá víboras que são pequenas e raras.

Se o Garcenho da Geria não é o Botaurus ruffus Brisson, então é coisa nova, não tenho à mão o Brisson nem o Garcenho. Parece-me que o tempo mais próprio para ir ao Buçaco é o do mês de Setembro, agora está lá muito calor apesar de se dizer que o calor é ali agradável, há poucos dias foi lá o Manso e outros conhecidos, e não puderam parar nem na fonte fria!! Calor como tem estado por aqui, não há memória de o ter havido assim! Em breve não teremos água para beber! Pobres dos moluscos aquáticos que não respiram também por pulmões.

Esqueci-me de arranjar em Maio as lampreias novitas em que o meu amigo me falou quando aqui veio; declaro-lhe que sou pouco esquecido em objectos zoológicos, e por isso me tem custado o tal esquecimento. Mandei encomendar Anodontas das poças do Mondego e espero boa porção; desejo-as da Geria porém não tenho a quem as encomende. Quando lá fui a última vez apanhei uma numa pequena vala confluente da da Geria, e parece-me que tem uma pequenita diferença das do Mondego, talvez me engane; o meu amigo a verá em Setembro, e não perderá as passadas se aqui vier. A colecção zoológica é talvez a mais difícil de todas as colecções, quem faz colecção de plantas vai a onde as há e apanha-as porque logo as vê; mas quem procura animais que a maior parte são nocturnos, não os vê e fica não sabendo se existem naquela localidade. Demais no caso de saber que eles ali vivem resta apanhá-los, porém como? Não temos armadilhas próprias, temos portanto de as inventar, e ao menos de apropriar as já inventadas. Que de paciência é necessária para isto?! Que tempo se gasta inutilmente! Inventadas as armadilhas, temos de experimentar as iscas para chamar os animais, depois de tantos trabalhos ficamos satisfeitos quando aparece alguma espécie que ainda não temos, e sentimos uma satisfação imensa quando achamos uma espécie não descrita. Porém há homens que julgam que um Museu é um palheiro, que para se encher basta sair de casa, mandar apanhar a palha e deitá-la para dentro dele; não sabem conhecer o valor que tem um objecto novo, os trabalhos científicos duma bem feita classificação; materiais que são olham só para o material e não querem saber o quanto custa arranjar aquele material, perguntarão se no museu há muitos animais além dos que havia no ano passado, se poucos ainda, se poucos ainda que de grande valor, dizem que este ano nada se fez em aumento do Museu. Aposto que o meu amigo tem por lá desta gentinha? Donde se conclui que a colecção zoológica no nosso Portugal tem espinhos, por ser julgada por juízes os mais ignorantes.

Desculpe-os o meu amigo e desculpe-me a grande maçada que acabo de lhe dar.

Rosa

Quando aqui vier fará favor de me trazer 2 aves estrangeiras e lindas para eu dar a quem teve grande trabalho de me arranjar 3 ratoeiras... (Das sobresselentes) (8)

P.S. Dão-me a certeza de se arranjar um Garcenho, o que já está preparado, macho ou fêmea, novo ou velho.



(1) Discoglossidae. Bombinator igneus (Bombina bombina). Não se conhece ainda a sua existência em Portugal.

(2) Bocage, Liste des mammifères et Reptiles observés en Portugal.

(3) Discoglossidae. Alytes obstetricans, o sapo parteiro.

(4) Rana campanisona=Alytes obstetricans.

(5) Coluber hippocrepis - cobra de ferradura.

(6) Malpolon monspessulanus monspessulanus (Hermann) - cobra rateira.

(7) Elaphe scalaris - riscadinha.

(8) Escrito na margem superior da folha, voltada esta ao contrário.