Quinta do Espinheiro 30 de Julho 64. Meu caro amigo - Donde viria o dizer-se que me estou ocupando com a botânica? Lembro-me que disse ao Dr. Cortez que havia de ir a certo pinhal colher uma planta para o C. Machado; seria daqui? A sua carta de 10 encheu-me de satisfação por ver que o meu amigo não se mortificou com o que lhe disse do nosso museu, e mortificado fui eu por supor que o seu nervoso se irritara com isto. Nessa carta chamou a minha atenção para os répteis; quanto às salamandras aquáticas nada tenho visto de novo; quanto aos Sapos há aqui uma espécie rara que ainda não mandei, e aparece em Maio; é menor do que o Sapo ordinário e tem o ventre cor-de-laranja (1). Lagartixas há uma espécie de que apenas vi dois indivíduos há anos, parece-me ser a que os franceses chamam des souches (2) que não significa Lagart. dos estúpidos, porque então seria minha, mas sim dos troncos ou raízes das árvores. Fui outra vez à Geria e tive notícia de 3 Garcenhos (3) que meia hora antes da minha chegada lá tinham andado, sei agora que eles estão ocultos durante o dia ou parte dele, e é por isso difícil vê-los. As muitas doenças que por ali grassam nesta quadra tiram-me a vontade de lá voltar brevemente, mas conto obter algum este ano. Não é a nicticorax (4) nem a stelaris (5), é a espécie não descrita. Quem me dera cá Setembro para ver o meu amigo e mostrar-lhe algumas aves que hei-de então matar no campo de Coimbra. Estou jurado, mas com esperança de largar a maçada no dia 5 ou 6. Não fiquei hoje jurado e por isso fui ver o C. Machado que se lhe recomenda, disse-me que o António de Carvalho voltara há pouco daí. Lá vai o nosso Júlio Henriques e o Manuel Paulino, parece-me que o primeiro não volta. Tinha esperança de obter alguns animais de Mangualde - Putorius fetidus (6) e congéneres etc.. Em Agosto aparece aqui uma Petina anthus arboreus? (7) ela parte em Setembro o nome vulgar Sombria, porque procura a sombras das árvores. Tenho 3 cobras muito bem conservadas, e até ver o meu amigo, hei-de obter mais répteis. Vi na Geria um arv. Musignani (8) sobre um salgueiro, o amphib. (9) não trepa; achei duas ninhadas dos tais Musignani debaixo da terra mas em pequena profundidade; o amphy. cria nos juncos sobre a água. Logo todos os ratos de água que lhe tenho mandado são o Musignani e não o amphy.. Estou quase persuadido de que o rato grande da Geria é também o Musignani. Pode ser que o entusiasmo me leve, em Outubro e Novembro, a dormir pelo campo do Mondego, nas povoações já se sabe, armando às diversas espécies de ratos que por lá devem aparecer. Os divertimentos de Sintra (10) farão com que o meu amigo não me escreva tão cedo. J.M.R. de Carvalho
(1) Bombina bombina (Bombinator igneus) - sapo de ventre cor de fogo. Não está catalogado para a fauna da Europa ocidental e só existe em parte da meridional. (2) Lacerta agilis - não é uma lagartixa, sim um lagarto. A espécie não está representada ainda em Portugal. (3) Ixobrychus minutus - garcenho. (4) Ciconiformes. Nycticorax nycticorx (L.) - goraz. (5) Ciconiformes. Botaurus stellaris (L.) - abetouro comum. (6) foetidus. Mamífero. Mustela putorius - toirão. (7) Passeriformes - Anthus arboreus. Petinha. (8) Arvicola musiniani=Arvicola sapidus - rato-de-água. Madureira e Ramalhinho. Rosa escreve como Bocage, na Noticia ácerca dos arvicolas de Portugal : primeiro nome com minúscula e abreviado - "arv. incertus", por exemplo. (9) Arvicola amphibius=Arvicola sapidus - rato-de-água. Madureira e Ramalhinho. (10) Bocage tinha casa em Sintra.
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