VI ENCONTRO TRIPLOV NA QUINTA DO FRADE
Casa das Monjas Dominicanas . Lumiar . Lisboa . 14 de Julho de 2018
MARIA AZENHA
Poemas de Xeque mate
Como será estar morto durante duzentos anos
Como será estar morto durante duzentos anos?
O que diria Sócrates?
A vida não tem sentido, quem o disse foi Tolstói.
E Freud? Outro cismático!
Eu, que fiz análise durante vinte anos,
tornei-me um humano ainda mais pessimista.
A vida é cheia de solidão infelicidade e caveiras dos outros.
Ultimamente têm-me passado coisas estranhas pela cabeça.
Talvez um dia encontre um amor com dentes de ouro
e cheio de banhas para amortecer os desgostos.
Ora bolas, afinal para que é que servem os espelhos?
Vou passar um fim de semana a ver filmes de Manoel de
Oliveira.
Sou o que se chama um militante holístico.
Dizem que há um “olho” que nos está sempre a ver
Por acaso vivi durante onze anos com um oftalmologista
e nunca me receitou óculos. Os que disponho atualmente
são para recitar livros sobre a vida-em-morto.
Tenho muitos medos.
Ando obcecado pelo tema dos esgotos.
Deve ser por isso que gosto de Esopo
que me ensinou um processo fabuloso para exterminar o medo.
— Há uma substância química no nosso corpo que faz com que
não sejamos galinhas. E outra, que nos faz irritar uns com os
outros. —
O tema da morte é mesmo um tema assombroso.
O preço do gás continua a subir.
“Todas as tentativas de suicídio são um fiasco.
Vivo abrindo as janelas e fechando o gás”.
Não sei como os mortos conseguem viver.
Mas acho que devem ser pessoas fantásticas.
Violência doméstica
Comprei
na padaria da avenida
um pão-de-deus.
Trouxe-o pelo elevador
para casa.
A porta não queria abrir.
Introduzi-lhe a palavra-passe.
A porta abriu
fui dar à sala
esperei que me viessem
trazer o pequeno almoço
chamei a gata como de costume
fiz-lhe uma festa ela fez ronrom
e enquanto abria a porta
vi a gata lamber os beiços
em ginástica de alongamentos pela manhã.
Continuaria a fazer o que mais gosta:
espreitar os pássaros
que já fazem parte da Europa
ou a sonhar com a maneira mais rápida
de contracenar com o gato da vizinha.
Entretanto
voltei à sala.
Não estava lá a padaria nem a avenida
nem o pão-de-deus.
Espreitei a rua.
Também não estava lá.
Vi o Primeiro a falar sozinho.
O presidente estava à janela com a boca aberta,
falou pouco,
talvez tenha dito AH!
depois peguei no telefone
atenderam da Alemanha
o caso do pão-de-deus deu-se em grupo
numa padaria da Europa.
Maria Azenha
in “Xeque Mate”, Editora Urutau, SP Brasil, 2018
REVISTA TRIPLOV DE ARTES, RELIGIÕES E CIÊNCIAS
série gótica. Outono . 2018