FLORIANO MARTINS
Tributo
Vocação dialogante
Por MARIA ESTELA GUEDES
MEG | Floriano, tu desdobras-te em várias modalidades de arte, para além de seres tradutor e, até onde conheço, o mais incansável investigador do surrealismo, sobretudo na América Latina: como é que te moves entre as tuas várias facetas? Quantos ensaios sobre o surrealismo tens publicados?
FM | Há dois livros dedicados ao tema: Um novo continente – Poesia e Surrealismo na América (2016) e 120 noites de Eros – Mulheres surrealistas (2020). Também organizei antologias de poemas, publicadas na Venezuela, Costa Rica e Brasil. Um terceiro e último livro está em fase de preparação, intitulado Viagens do Surrealismo. Além disto há alguns ensaios, sobre o movimento e sobre poetas e artistas especificamente. Para a Sol Negro Edições traduzi livros de Aldo Pellegrini, Enrique Molina e César Moro. Quando penso em um cenário como este que chamas de várias modalidades de arte eu não vejo senão um mesmo e sempre aberto campo de conhecimento de meu próprio eu. Aceito plenamente a multiplicidade de meu ser.
MEG | Tu és um importante editor, acolhes livros oriundos um pouco de todo o mundo ibero-americano, ou mais do que esse, e de todos os géneros. Só por essa tua faceta, de que já beneficiei muito, mereces o respeito da comunidade intelectual. Que bússola te guia e que benefícios retiras de uma atividade tão pouco voltada para o enriquecimento material?
FM | Nada do que faço remete a um ganho financeiro. Isto pode explicar o desinteresse do grande mercado pela matéria de que me ocupo. Nenhuma justificação, naturalmente. Contudo, eu procuro ver a questão como uma dádiva minha, a possibilidade que tenho de realizar esse trabalho. A Internet tornou viáveis algumas ousadias, dentre elas a circulação de livros e revistas de modo virtual. Estamos a poucos livros de completar 100 títulos publicados pela coleção “O amor pelas palavras”, uma parceria ARC Edições/Editora Cintra, livros que são oferecidos a público tanto virtualmente como pela opção impressa sob demanda. Estamos lidando com uma dinâmica que nos traz todo tipo de resposta, menos a financeira. Por que faço isto? Porque posso, porque alguém tem que fazê-lo. O grande benefício está em abrir portas, em estabelecer laços de comunicação entre mundos.
MEG | O ser brasileiro hoje difere de ser brasileiro daqui a 10 anos? Não quero pôr no passado o termo de comparação… Se não quiseres responder, não respondas, eu sei que tu combates a situação com o trabalho. Estou cada vez mais preocupada com o que se passa no Brasil, não consigo desprender a atenção do que vou apanhando diariamente no YouTube.
FM | O Brasil está se desfazendo de seu passado, não de um passado imediato, mas desse atavismo que permite uma nação prosperar humanamente. E de tanto perder suas referências, o país conspira contra si mesmo, reflete um abismo a cada passo. Uma década é insuficiente para alcançar uma perspectiva distinta, isto se começássemos hoje a tecer essa nova era. Não sabemos quando poderemos marcar a contagem para avaliar a resultante de uma década. Os dilemas que o mundo enfrenta atualmente são todos uma reverberação perversa do desgaste dos modelos políticos e econômicos. O que distingue um país de outro é a proteção natural com que cada sociedade vai se configurando e fortalecendo. O Brasil não tem esse anteparo, não tem defesas, de modo que tudo entre nós é uma agenda de desastres.
MEG | Nós conhecemo-nos há uns 20 anos, desde que fundei o Triplov e vocês, surrealistas brasileiros, se aproximaram. Então criámos a Revista Triplov, nós os dois e o Claudio Willer. Isso foi excelente para o Triplov, criou uma rede de intercâmbio entre artistas que se mantém até hoje. Para vocês, ou para a Agulha Revista de Cultura, foi benéfica a aliança?
FM | Recordo aquele vultoso dossier que preparamos sobre Surrealismo e que permanece à disposição de leitores. A criação da Revista Triplov foi uma experiência riquíssima à qual eu não pude dar sequência por conta dos excessos de minha mesa de trabalho. De todos os parceiros no exterior que articulamos foste a pioneira e isto por si só já tem sua relevância inquestionável. Produzimos muitas coisas juntas e este nosso diálogo está longe de ser a última etapa de uma cumplicidade valiosa.
MEG | Floriano, vejo-te como trabalhador incansável. Artista a tempo inteiro também, mas isso é menos percetível para mim do que o encontrar-te permanentemente disponível. Invariavelmente, mando-te um email e tu respondes imediatamente. Como é o teu quotidiano?
FM | Algo me diz que descobri a fórmula mágica de fazer com que o dia passe a ter 48 horas. A sério, tudo é uma questão de equalizar as relações entre tempo e espaço. Tenho uma agenda diária que me permite cuidar intensamente de todos os projetos em curso, sem atropelar as tarefas domésticas e a brincadeira com os netos. Mas evidente que não há receita para isto, dado que é tudo muito natural. Não é um projeto de vida, e sim a própria vida.
MEG | Andas sempre ocupado com novos projetos, alguns dos quais chegam até mim, caso da coleção O amor pelas palavras, em que tens estado a editar autores de nações várias, incluindo portugueses. Mas nada sei do teu mais recente projeto, apenas noto que o estás a acarinhar muito. Fala-me dele.
FM | Bom, há vários novos projetos em curso. Em termos de livros, trabalho na preparação de Viagens do Surrealismo, já aqui mencionado, e de um livro que reúne e comenta a minha correspondência com vários poetas ibero-americanos; além da sequência de volumes com o conteúdo seletivo da Agulha Revista de Cultura. Na área virtual, este ano criamos um Atlas Lírica da América Hispânica, em parceria com a revista Acrobata; e dois outros projetos, Conexão Hispânica e Escritura conquistada – Poesia hispano-americana. São três vultosos bancos de dados sobre a tradição lírica em 19 países. O Atlas é uma mostra, traduzida ao português, de poemas de um trio de poetas a cada trimestre, ou seja, 57 novos autores são apresentados a cada três meses; a Conexão reúne 190 ensaios de autores diversos sobre poetas, e será também ampliada trimestralmente; já a Escritura, ela reproduz e amplia um volume homônimo que publiquei em 2018, reunião de mais de uma centena de entrevistas, enquetes, ensaios, prefácios, neste caso tudo assinado por mim.
MEG | O Rolando Revagliatti, escritor argentino que decerto conheces bem, pergunta sempre, nas suas entrevistas a escritores, se o seu interlocutor se recorda dos seus primeiros versos, do seu primeiro conto. E tu? Lembras-te dos teus primeiros passos? E onde: no Ceará, em Fortaleza?
FM | Os meus primeiros passos talvez tenham sido ensaiados na barriga de minha mãe. Demorei a pensar em mim como poeta. Primeiramente escrevi uns contos eróticos, ali pelos 14 anos, transpirado pela leitura dos 120 dias de Sodoma, do velho Marquês. Não recordo se os publiquei. Creio que não. Aos poucos comecei a escrever poemas. Como convivia com músicos eu queria mesmo era aprender a escrever letras de canção, o que só consegui décadas depois. Pelas leituras de infância, o teatro me seduzia mais do que a poesia. De modo que essa multiplicidade do ser começava a aflorar: fui aprendiz de percussionista, entrevistador, editor, agitador e poeta, tudo antes dos 18 anos. Sim, em Fortaleza. Em seguida foi morar no interior da Bahia e ali começo a me concentrar mais na escritura de poemas. Aos 20 estou de volta a Fortaleza, me caso com a Socorro – com quem vivos até hoje –, e surgem os primeiros livros (antes havia publicado apenas uma plaquete). Quando nasce a primeira filha vamos morar em São Paulo, que é quando têm início as atividades de tradutor e entrevistador. Mas olhando agora essa extensa colcha do tempo, me parece que os primeiros passos estamos a dar a cada momento.
MEG | Em Fortaleza, vives junto ao mar. O que conheço da tua obra, sobretudo fotografia, leva-me a imaginar-te naquelas belas praias de geologia ainda em formação, com as rochas friáveis compostas de areias de todas as cores… Estou certa ao pensar que deves mais ao mar do que a André Breton? Que influência tem exercido essa natureza na tua poesia e na tua arte plástica?
FM | Não creio que eu deva muito ao Breton. Mesmo se falarmos apenas de influência da poesia ou do Surrealismo. Devemos todos ao modo como encaramos os obstáculos e as oportunidades. O meu mar se chama alegria de viver. Mas evidente que este imenso céu azul de Fortaleza – que tanto me lembra outro céu valioso de minha vida, o de Sidney, na Austrália onde mora minha filha – é um diapasão precioso para essa volúpia existencial que melhor me caracteriza.
MEG | Também és dramaturgo e tradutor de peças de teatro. Ultimamente traduziste algumas peças de Arrabal. No Triplov há marcas desse teu lado criador. A mais recente é uma micro-peça que escreveste com Zuca Sardan. Eu diria que o dialogismo é um dos teus traços mais marcantes, quer como escritor quer como colega: tu prezas muito a coautoria. E eu também, devo dizer. Prezo muito a tua parceria. O que te atrai nestas alianças? A cumplicidade? O teres uma orelha à escuta?
FM | A orelha, eis a questão (risos). Talvez seja o sentido que mais falta ao mundo, a audição e a fortuna de seus elementos, o altruísmo, a alteridade. Neste exercício dramatúrgico de criação conjunta, há dois nomes que são decisivos para mim: Zuca Sardan e Berta Lucía Estrada. Com o Zuca já escrevi várias peças, todas elas publicadas em nossa coleção “O amor pelas palavras”. Berta Lucía é uma imensa poeta, dramaturga e ensaísta colombiana, com ela já escrevi duas peças e uma novela. Agora mesmo nos preparamos para concluir a trilogia de teatro. Antes do teatro eu já havia criado poemas a quatro mãos, o que rendeu dois livros, com a brasileira Viviane de Santana Paulo e o mexicano Manuel Iris. No volume em que reúno a minha poesia completa, Antes que a árvore se feche, há outras parcerias, com a dominicana Farah Hallal e a brasileira Leila Ferraz. Certa vez escrevemos juntos, o crítico Jacob Klintowitz e eu, um ensaio sobre o artista Antonio Bandeira. Dividir com alguém um momento tão íntimo como o da criação (seja de um filho ou de um poema) é uma dádiva inconfundível.
MEG | Uma última pergunta, bem surrealista: o que entende tão incansável estudioso e divulgador do surrealismo como tu, sobre o surrealismo? O que distingue o surrealismo do movimento pânico, do dadaísmo ou do romantismo?
FM | Eu sou um crítico do Surrealismo. A inclinação por uma ortodoxia acabou levando muitos surrealistas a acreditarem que as opiniões em contrário são adulterações de seus princípios. Pânico e Geração Beat, por exemplo, são desdobramentos do Surrealismo, um modo dele avançar e não ficar engessado no tempo, como preferem muitos surrealistas ortodoxos. Dadá, com seu afã pela destruição, impôs naturalmente ao Surrealismo a tarefa de criar um mundo novo. O Romantismo nos trouxe valiosas lições de humanismo, porém teriam que ser sempre adaptadas a atuar de acordo com o espírito de cada época. Nem sempre são os mesmos os grilhões que temos que romper. Agora, todos esses movimentos que mencionas estão baseados na supressão das diferenças entre vida e obra. Contudo, por vezes temo que os excessos de Breton na condução do Surrealismo tenha passado a impressão de que a vida é mais importante do que a obra. De qualquer forma, ao menos no Brasil, é fundamental apresentar o Surrealismo, porque seu universo de atuação é muito mais amplo do que se imagina e se espalha praticamente pelo mundo inteiro. É o que tenho feito.
Floriano Martins (Brasil, 1957). Poeta, ensaísta, editor, tradutor. Dirige a Agulha Revista de Cultura e o selo ARC Edições. Colaborador das revistas Altazor (Chile), Matérika (Costa Rica), La Otra (México), Blanco Móvil (México), Triplov (Portugal) e Acrobata (Brasil). Estudioso da tradição lírica na América Hispânica e do Surrealismo.
Contato: floriano.agulha@gmail.com.
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Agulha Revista de Cultura:
http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com
Escritura conquistada:
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Atlas Lírico da América Hispânica:
https://revistaacrobata.com.br/atlas-lirico-da-america-hispanica/