MARIA ESTELA GUEDES
… a escultura serviria uma refiguração fenoménica, antes de se libertar no sentido de pura modulação espacial. A ela preside aquele senso de estrutura que implica não o padrão da natureza, mas o secreto processo dos seus métodos –
uma espécie de «criacionismo», como o definiria Huidobro.
Herberto Helder, Photomaton & Vox, p.77, 1979
É muito gratificante e honroso dedicarmos este tomo da Revista Triplov ao poeta chileno Vicente Huidobro. Tal foi proporcionado pelos materiais cedidos por cortesia da Fundación Vicente Huidobro, mediada por Mario Meléndez, colaborador a quem o Triplov deve imenso, não só pelos textos do próprio Mario Meléndez, mas pelos de diversos poetas que tem enviado: chilenos, sim, mas também um pouco de toda a parte, e em especial italianos, dada a sua residência na Europa até há poucos meses. Cortesia também de Agulha Revista de Cultura, cuja face é Floriano Martins. A Agulha é nossa mais do que irmã, desde a “Série Floriana” da Revista Triplov, que agora resolvemos designar assim, para mais fácil identificação, visto que a seguir veio a Nova Série e atualmente editamos a Série Gótica.
Vicente Huidobro não é um poeta desconhecido em Portugal: eu li-o pela primeira vez no final dos anos setenta, a isso estimulada por Herberto Helder, que era um devorador de livros, em especial de poesia, e tinha Huidobro em elevada conta, como vamos ver.
A epígrafe deste artigo comprova o que vou expondo, e mais: não se tratava apenas de ler os poemas de Vicente Huidobro, Herberto Helder dominava o suficiente a teoria do criacionismo do poeta chileno para a invocar no ensaio dedicado a João Cutileiro, em Photomaton & Vox, ou, se quisermos levar a sério o poeta português, no ensaio destinado a criticar o modelo crítico vigente em 1968 – anos hippies, ano revolucionário, Maio de 68. Basta para nos instruirmos transcrever o título do ensaio, fielmente, com a distribuição de palavras, o itálico e os parêntesis ideados pelo autor como recurso estilístico deste livro:
(este escrito pode ser utilizado como ironia ao modelo
crítico vigente, 1968
o modelo permanece e possui uma dúzia de variantes
pretexto: uma exposição de João Cutileiro)
Duas perguntas faço, às quais um dia poderei responder, não agora, pois a resposta exige investigação de pelo menos algumas semanas, mas adianto desde já que o trabalho terá ou teria resultados surpreendentes e muito gratificantes. Algum professor de Literatura chilena ou portuguesa, que me leia, sugira o trabalho a um mestrando ou doutorando:
1ª – Em que medida o criacionismo de Vicente Huidobro se aparenta com o temperamento da obra de Herberto Helder?
2ª Haverá semelhanças entre os dois poetas que justifiquem um trabalho de literatura comparada?
Temos de ver primeiro o que é o criacionismo, pois de um lado ele não se esgota na exclamação de Vicente Huidobro de que fundamental é “Criar! Criar! Criar!”, e por outro lado o termo “criacionismo” está demasiado vinculado ao seu oposto, o evolucionismo, para podermos passar à frente deste facto importante por vários motivos, de que se estabelece com ele uma aliança estreitíssima com a Biologia. Ora se há poesia corporal, biológica, ela pertence a Herberto Helder. De outra parte, quem escreveu os versos abaixo? O poeta português ou o chileno?
As palavras têm um génio recôndito, um passado mágico que só o poeta sabe descobrir, porque ele sempre regressa à fonte.
Podia deixar a pergunta em suspenso mas isso seria ociosa maldade, gato escondido com o rabo de fora, pois a citação é interna, o texto faz parte do corpus deste tomo da Revista Triplov. Os versos podiam ser portugueses na origem, mas não, na origem redigem-se como segue e são chilenos:
Las palabras tienen un genio recóndito, un pasado mágico que sólo el poeta sabe descubrir, porque él siempre vuelve a la fuente. Vicente Huidobro
Peço perdão, não se trata de versos; extraí a frase do fragmento de ensaio de Huidobro intitulado “A Poesia”. O lapso justifica-se por Herberto Helder fazer ensaio em discurso lírico, tal como Huidobro. Mais um elo de ligação, afinal, entre estes dois poetas que parecem gémeos no que pensam (no que sentem, mais do que pensam) da poesia, no visionarismo, na alquimia da linguagem, no interesse pela magia e tudo aquilo que torna Herberto Helder o Poeta Obscuro.
Quanto à visceralidade/estrutura orgânica da poesia, deixemos apenas a nota de que a polémica gerada no século XIX com o aparecimento da obra de Darwin, A origem das espécies, teve por cerne a questão bíblica, e por isso a ação de Deus na Criação, aceite pela generalidade dos naturalistas até então, designados, como se sabe, por “criacionistas”.
Em princípio, o criacionismo de Huidobro encontra-se com o biologismo de Herberto Helder, esse mesmo que leva o poeta português, em «Memória Montagem» (nos livros Cobra e Photomaton & Vox), a iniciar o texto com a famosa citação de Aristóteles: «O poema é um animal». E de novo surge no horizonte a poesia e o criacionismo de Huidobro, quando o poeta chileno aparece com as suas casas a ombrear com as de Aristóteles, Walter Benjamin, Picasso e Malraux, o que denota a alta estima que o poeta português sentia por Vicente Huidobro e a razoável profundadide do seu conhecimento dele.
Vale a pena terminar aqui, mostrando em imagem a primeira parte do texto «Memória Montagem», prefácio de Cobra (1977) e agradecendo a Mario Meléndez e a Floriano Martins a sua camaradagem e participação neste tomo primaveril da Revista Triplov.
Maria Estela Guedes (1947, Britiande, Portugal). Dirige o Triplov e a Revista Triplov de Artes, Religiões e Ciências (www.triplov.com). Escritora, cultiva géneros vários, entre eles, poesia e ensaio (diversos títulos, em Portugal e no estrangeiro). Neste campo, tem dois livros sobre o poeta Herberto Helder: Herberto Helder, Poeta Obscuro, Lisboa, 1979; e A obra ao rubro de Herberto Helder, São Paulo, 2010. No ensaio, a referir trabalhos sobre a Carbonária e sobre temas de História Natural. Dirige a coleção Cadernos Surrealismo Sempre, na Apenas Livros, Lisboa. Este ano viu publicada uma antologia de poemas bilingue, traduzida em romeno, Dracula draco, com chancela da Academia Internacional Oriente-Ocidente. Como dramaturga, foram levados à cena dois espetáculos seus, O lagarto do âmbar, no ACARTE, em 1978, e mais recentemente, no Teatro Experimental de Cascais, em 2009, a peça A boba, cujo tema é o de Pedro e Inês, teve encenação de Carlos Avilez.
HOMENAGEM A VICENTE HUIDOBRO
MATERIAIS, CORTESIA DE:
FUNDACIÓN VICENTE HUIDOBRO
AGULHA REVISTA DE CULTURA
TRIPLOV.COM
© Revista Triplov. Série gótica . Primavera de 2018