Uma rica análise do governo de Bernardo Lorena

 

 

 

 

 

ADELTO GONÇALVES


Por Kenneth Maxwell


. Kenneth Maxwell, professor de História (aposentado) da Universidade Harvard, de Massachussets (EUA), ex-diretor do Programa de Estudos Brasileiros do Centro David Rockfeller para Estudos Latino-americanos e fundador do Programa de Estudos Brasileiros da mesma instituição, é autor do clássico A Devassa da Devassa – a Inconfidência Mineira: Brasil e Portugal 1750-1808 (1977), entre outras obras.

. Prefácio do livro O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo – 1788-1797.


Adelto Gonçalves substancialmente enriquece a nossa compreensão da história e do desenvolvimento de São Paulo durante o fim do século XVIII. Este trabalho, de sólida base em documentos históricos e pesquisas de arquivo, reflete a formidável jornada de Adelto como historiador de Portugal e Brasil. Em Lisboa, pesquisou no Arquivo Histórico Ultramarino, no Arquivo Nacional da Torre do Tombo e na Biblioteca Nacional de Portugal, entre muitos outros grandes arquivos portugueses. Às investigações, somam-se pesquisas em outras partes do Brasil e em São Paulo, assim como a obra de outros pesquisadores brasileiros e estrangeiros.

A forma como as fontes de arquivo são utilizadas fornece a base para grande parte da história a se contar. Elas fornecem uma fascinante percepção da vida socioeconômica da jovem São Paulo, e delimitam as vidas dos indivíduos paulistas e os seus governadores portugueses. Eis que vemos as dificuldades, paixões, subterfúgios e disputas do cotidiano. Adelto, sem dúvida, formula problemas para muitas discussões.

Os registros do Conselho Ultramarino, em Lisboa, provaram-se particularmente reveladores. Adelto depurou estes registros, ricos e originais, com muito esmero. São certamente arquivos “oficiais”, mas são documentos que lançam luz sobre as questões e os conflitos com os quais os governantes portugueses tinham de lidar no dia a dia, tal como as autoridades municipais, a magistratura local, os padres e todo o clero, e a população como um todo. Como muitos registros históricos portugueses, estes nos conduzem pelas disputas, denúncias e conflitos. Não sem também trazer à tona o que havia de vívido no cotidiano dos paulistas no século XVIII.

São Paulo, à época, era um assentamento fronteiriço. A sua população era de apenas 178 mil habitantes, em 1783, com cerca de 20 mil vivendo na capital (que compreendia 26% da população da capitania, excluída a população indígena que ainda era numerosa). Ao fim do século, eram 99.200 homens e mulheres brancos, 37.971 homens e mulheres negros, 30 mil de mestiços. O assentamento urbano de São Paulo (e Adelto Gonçalves nos fornece uma excelente descrição da organização da cidade) localizava-se após a Serra do Mar, no planalto de Piratininga, e sua economia orientava-se para as fronteiras ocidentais, com os sistemas fluviais que entravam no continente, como o rio Tietê, em direção ao rio Paraná, e às recentes descobertas de ouro em Cuiabá e Mato Grosso.

Disputas com a população indígena, conflitos com os jesuítas até a sua expulsão no fim dos anos 1750, e com espanhóis, são todas contadas no livro. De São Paulo, partiam as monções, que por vezes compreendiam 305 canoas e 3 mil homens, pelo Tietê rio abaixo. As minas de ouro de Cuiabá estavam entre os principais destinos almejados pelos portugueses, que forneciam guarnição para os postos fronteiriços mais distantes, e sustentavam a ligação fluvial até o Mato Grosso. Durante muitos anos, o poder local ficou nas mãos de duas famílias de fazendeiros, os Pires e os Camargo, que dominaram a política de São Paulo por mais de cem anos, entre o fim do século XVII e o início do XVIII. Cada uma das famílias tinha três de seus membros na Câmara Municipal.

Nem todos os primeiros governadores foram honestos com relação aos bens públicos. O governador Pimentel era particularmente malvisto. Em 1728, descobriu-se, em Portugal, que uma embarcação vinda de São Paulo teve sete arrobas de ouro substituídas por chumbo. Muitos governadores retornaram do Brasil para a metrópole com riquezas ilícitas naquele período. Pode-se dizer que já era lugar-comum, àquela época, misturar o público com o privado.

Durante 17 anos, após 1748, São Paulo foi governada a partir do Rio de Janeiro. Neste intervalo, a capital do Brasil colonial foi transferida de Salvador para o Rio, em 1763, e os governadores paulistas passaram a sofrer mais críticas e reclamações. O governo paulista mais longo, o de morgado de Mateus, que durou 10 anos, foi submetido a viciosos ataques pelos “republicanos” na Câmara. Quando retornou à Lisboa, foi vítima de muitas acusações. Mas denúncias dos frequentemente implacáveis proprietários locais (os assim chamados homens-bons) não eram novidade alguma. Eles foram, também, os exploradores da mão-de-obra indígena e, mais tarde, de escravos africanos, que desembarcavam no porto de Santos, vindos direto da África, durante o governo de Bernardo Lorena.

O governador Lorena é o personagem principal deste livro. Muitos boatos descrevem-no como o filho ilegítimo d´El-rei d. José em seu caso com uma das esposas dos Távoras (Lorena era filho de Nuno Gaspar de Távora, o irmão do marquês de Távora). Também se dizia (o embaixador britânico em Lisboa, na verdade, espalhou este boato em Londres) que esse caso foi o motivo da tentativa de assassinato do rei, e as consequentes execuções públicas dos Távoras e do duque de Aveiro pelo futuro marquês de Pombal.

Bernardo Lorena certamente trouxe grandes mudanças à capitânia de São Paulo, incluindo a abertura de uma estrada pavimentada e mais segura na Serra do Mar, entre São Paulo e o litoral. Concentrou, assim, o comércio em Santos, para a aguda irritação dos outros portos da região. A Calçada do Lorena foi construída com o apoio de engenheiros portugueses, do Corpo Real de Engenheiros de Lisboa. Em associação com o grande mercador português, Jacinto Fernandes Bandeira, Lorena estabeleceu uma rota direta entre Santos e Lisboa, evitando o Rio de Janeiro, assim como uma rota direta entre Benguela, em Angola, e Santos, encorajando a importação direta de escravos africanos. O governador Lorena, rapaz jovem e solteiro, também é descrito por Adelto Gonçalves como alguém de reputação libertina.

A obra de Adelto Gonçalves ilustra longamente a falta de ressonância da Conjuração Mineira em São Paulo. Em 1797, Lorena foi declarado governador de Minas Gerais, após o retorno do visconde de Barbacena para Lisboa – governador mineiro durante a Inconfidência. O livro mostra que um inconfidente central, o padre José da Silva de Oliveira Rolim, foi ordenado em São Paulo, onde, de acordo com o governador à época, Lopes Lobo de Saldanha “conseguira, à força de presentes de ouro e pedras preciosas, obter ordens, mesmo sem ser examinado, apesar da vida dissoluta que leva”. Mas isso não era novidade. O bispo de São Paulo, Manuel da Ressurreição, ordenou (segundo o governador) 217 indivíduos, “todos homens de ofício e até feitores do contrato de diamantes que nunca tinham aprendido gramática latina”. Adelto Gonçalves é, também, autor de um livro sobre Tomás Antônio Gonzaga — outra figura de destaque da Inconfidência mineira (Gonzaga, um poeta do Iluminismo, publicado em 1999). Paralela a essa edição da Nova Fronteira, o autor também publicou pela Série Essencial, vol. 56, em coedição com a Academia Brasileira de Letras-Imesp, Tomás Antônio Gonzaga.

Oliveira Rolim era o filho de um dos grandes negociantes de diamantes de Minas, e foi um dos inconfidentes mais atuantes. Depois do encarceramento dos insurretos mineiros, Oliveira Rolim não foi exilado para a África, mas, em uma sentença secreta, foi aprisionado em Lisboa (no monastério de São Bento), onde conheceu o então cativo poeta, viajante e libertino Manuel Maria Barbosa du Bocage (também contemplado com uma obra de Adelto Gonçalves, Bocage: o perfil perdido, publicada em 2003 pela Editorial Caminho, de Lisboa). O governador Lorena, em seu mandato mineiro, foi inteirado sobre a Inconfidência, e sobre a situação econômica da capitania.

Bernardo Lorena é transferido de São Paulo para Minas Gerais num período de grandes mudanças políticas portuguesas, logo após a morte do ministro dos Domínios de Ultramar, Martinho de Mello e Castro. Em 1795, assume Luís Pinto de Coutinho, ex-governador do Mato Grosso, o ministro de Assuntos Coloniais, antecessor de dom Rodrigo de Souza Coutinho, amigo próximo de Lorena, dos tempos da Universidade de Coimbra.

Há, também, uma interessante ligação entre as origens da Inconfidência descoberta por Adelto Gonçalves: o encontro entre Thomas Jefferson, enviado dos Estados Unidos da América na França, e José Joaquim da Maia e Barbalho, em Montpellier e em Nîmes, onde foram discutidos supostos planos de uma insurreição brasileira. O possível contato deles no Rio de Janeiro era Eleutério José Delfim, filho de Antônio Delfim Silva, renomado empreiteiro de obras públicas na capital. A família Delfim era também fortemente ligada ao tráfico de escravos. Eleutério, então, viajou do Rio para Lisboa, e então para Montpellier, e fez o contato entre Maia e Barbalho e Jefferson, por meio da maçonaria. Esta conexão pode ser merecedora de futuras investigações.

Esta obra é, em sua totalidade, não só uma rica análise do governo de Bernardo Lorena, mas um estudo que abre muitas linhas de investigação, formula muitos problemas novos, o que deveria ser a tarefa de todo bom historiador. Para a história de São Paulo no século XVIII tardio não há guia melhor.

O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo – 1788-1797, de Adelto Gonçalves, com prefácio de Kenneth Maxwell, texto de apresentação de Carlos Guilherme Mota e fotos de Luiz Nascimento. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 408 páginas

Revista Triplov

Tributo a Adelto Gonçalves – Índice

Portugal – Fevereiro de 2023