MARIA AZENHA
Foto: M CÉU COSTA
TRIBUTO
Por JOSÉ FERNANDO TAVARES
Ensaísta e crítico literário
O infinito é uma Forma diferida de Deus
Maria Azenha
No momento crepuscular em que nos é dado viver e reflectir, há uma forma da expressão poética a que já nos habituámos a passar ao lado. Deve-se esta relativa indiferença a mais de que uma razão: ou porque achamos ter essa expressão alcançado o limite da sua originalidade, ou porque, simplesmente, as suas propostas já não conseguem chocar-nos com a sua intensidade de um escândalo possível. Referimo-nos ao discurso da loucura e às suas fórmulas afins.
Há, no entanto, sempre um lugar para esse tipo de loucura a que chamamos «loucura sábia», ou «loucura iluminada» e que constitui uma manifestação da arte poética a que, mesmo que o queiramos, não podemos ficar indiferentes. Na poesia de Maria Azenha não encontramos sinais desse tipo de loucura geralmente associada ao foro clínico: trata-se de uma manifestação lúcida, porém desprendida, o alcance de um novo estádio do conhecimento, uma nova postura no seio da criação poética. Nesta fórmula nova na poética da autora quase poderíamos reconhecer uma voz diferente, uma voz outra, heterónima, distante, dessa voz grave, branda e sóbria que já estávamos habituados a ouvir. Nos poemas de P.I.M. podemos encontrar, por um lado, uma revivescência modernista: por outro, um pendor surrealizante; por outro, ainda, o gosto da intervenção panfletária, associado a um desejo; um só: o desejo de mudar aquilo que está mal no mundo em que vivemos, mundo esse que, muitas vezes, nos parece ser um planeta desconhecido, povoado por uma espécie que, apear de humana, se reveste de contornos imprecisos e estranhos.
A estranheza do mundo é-nos revelada pela matéria intensa da poesia; desta ou de qualquer outra tão lúcida quanto esta. Trata-se de uma lucidez desprendida na medida em que não se refugia no espectro de uma angústia redutora e sempre frágil. Este livro de Maria Azenha serve-se do discurso de uma certa loucura para nos dizer que há uma outra realidade para além daquela, aparente, em que vivemos. Nota-se, porém, que o discurso usado pelo sujeito poético da autora, se bem que subsidiário dessa forma de «loucura sábia» de que falávamos acima, utiliza diversas variantes e diferentes registos desse mesmo discurso, conferindo a este livro um painel original de ideias e de crenças a que não poderemos, de facto, ficar indiferentes; ou seja, mesmo que estejamos perante registos discursivos que nos falam do mundo de uma maneira a que nem sempre estaremos receptivos (sobretudo porque a nossa sensibilidade poética ainda não se adaptou a eles), temos que saber ler e interpretar a sua íntima sabedoria, a sua íntima essência. Essa é a tarefa a que Maria Azenha nos convida de uma forma directa e quase mágica: para além da palavra, há o resto e é nesse «resto» que mergulhamos.
À semelhança de um universo estagnado, pelo menos no que respeita ao poder do espírito, o mundo em que o sujeito poética vive assemelha-se a um gigantesco manicómio. A sua loucura, a existir, é a loucura universal, esse estádio da existência que nos transporta para dentro da noite, essa noite eterna que nos anuncia a claridade, a claridade de um dia que tarda em chegar. Diz-nos: «E ao grande livro da Noite/ Fazendo versos de crómio/ Com a paciência de um doido/ Sou Todos num só manicómio!». O tom popularizante com que o sujeito poético se apresenta ao leitor no pórtico deste livro faz-nos recordar a sabedoria de um Bandarra, desta vez um Bandarra do nosso tempo que está consciente do mundo em que vive e que, ao mesmo tempo, se projecta para o futuro, pois podemos encontrar na sua voz, não apenas um tom profético, mas também sinais de uma profecia maior e mais inquietante. Esse será, porém, o papel do leitor. Sem dúvida que este manicómio pode oferecer ao leitor, pelo menos, uma dupla leitura: o mundo enquanto espaço de uma loucura negativa e o mundo enquanto resultado de uma razão sábia e estimulante. Será nesta dicotomia de sentidos que o sujeito poético de Maria Azenha se move.
No poema intitulado «A História da Princesa Salgada» encontramos já uma tónica que nos remete para uma manifestação da candura estilística do discurso modernista praticado na primeira metade deste século um pouco por toda a Europa. Esta candura modernista irá manifestar-se ao longo de todo este conjunto de poemas e será, se assim o podemos dizer, a sua tónica dominante. Por outro lado, há, neste discurso uma revivescência vicentina sobretudo no que diz respeito a uma notória teatralidade. O discurso da loucura é-nos imediatamente anunciado logo na primeira palavra, que constitui o primeiro verso do poema: «emaluqueci. / ponto final / parágrafo se faz favor / que sou um cómico defunto / na barcarola do amor». Esta consciência teatral, (ou parateatral) está aqui presente de uma maneira bastante explícita, quando a personagem nos diz: «já não tenho idade / (e a plateia ri)». Este verso entre parêntesis funciona aqui como a didascália a uma cena teatral. Ainda no mesmo poema, a revivescência modernista manifesta-se de um modo não menos explícito através do uso da onomatopeia: «e bzum! / pum!», já para não falarmos na referência à «Nau Catrineta», canção do romanceiro popular que Almada Negreiros recriou e pintou.
No poema intitulado «Directo para o infinito» encontramos uma forma do discurso surrealizante, característica que também está presente na quase totalidade destes poemas. Na sequência da postura modernista do sujeito poético de Maria Azenha, encontramos aqui outra manifestação que não deixa de ser curiosa a nível da história da poesia contemporânea. Essa manifestação é da chamada poesia concretista, tendência estética que já se pode integrar no domínio dito «pós-modernista». Essa manifestação concretista (ou seja, uma poesia liberta das peias do convencionalismo retórico e voltada para a visualização, mesmo ao nível da palavra) encontra-se nos poemas «Um i» e «Navegação». Na generalidade, esta poesia serve-se de uma imagética bastante rica, seja ao nível da palavra, seja ao nível da metáfora. No poema «O Poeta no seu atelier de lágrimas» encontramos a metáfora do amor, metáfora aqui particularmente tratada com exaustão. Neste poema longo, dá-se uma sucessão de metáforas a que não podemos ficar indiferentes. A forte presença da poesia modernista e da sua influência faz-se sentir nos poemas «A teoria dos aviões», «Ó minha Irmã Violência! Ó minha Irmã Guernica!» e «Manifesto Pim». Nestes três poemas há uma força inusitada: há uma voz que clama pelo fim das atrocidades do mundo, embora essa mesma voz saiba que não é possível mudar aquilo que é estabelecido pela natureza humana.
O gosto pela loucura (ou o gosto pela postura libertária da loucura), está presente no poema intitulado «Definitivamente». O sujeito poético assume-se como possuído pela loucura: «Definitivamente quero ser doida. / deixem-me ser Isso. / quero ser só Isso!». O discurso parateatral mantém-se, assim como se mantém, tal como desde o primeiro poema deste livro, toda uma filosofia poética da criação. Essa filosofia está subjacente ao longo deste livro, mas ela é-nos confessada nestes quatro versos: «estou farta de literaturas / estou farta de tudo / que vão todos p’ro diabo / com as estéticas e mais Isso!». Verifica-se aqui um cansaço da razão, um libelo de evasão para o mundo desconhecido da Verdade. Esta busca da essência daquilo que é real (mais do que a busca da verdade propriamente dita), constitui um apelo para o Infinito, esse estádio último que é procurado por toda a poesia que se sabe autêntica. No prosseguimento da sua postura criadora (que, afinal, não deixa de ser mais uma aporia estética a juntar a todas as que já existem), o sujeito poético de Maria Azenha fala-nos nessa necessidade de Infinito que é sentida por todos os poetas. Apesar desta generalidade, este Infinito de que nos fala assume uma compleição invulgar (se é que o Infinito pode ter compleição), pois tudo aquilo que comporta diz respeito à essência última do humano. Consideramos que o centro deste livro de Maria Azenha se encontra, justamente, no poema intitulado «O Infinito», pois é aqui que se encontra a razão maior desta poesia; aqui, tudo converge e se unifica: encontramos aqui uma pluralidade simbólica que seria interessante explorar do ponto de vista esotérico.
Em primeiro lugar, este Infinito que o sujeito poético de Maria Azenha nos propõe é o grande manicómio universal: «O Infinito é um manicómio / com números ao contrário». Há aqui uma subversão do quotidiano, uma alteração de modelo e de estrutura, à semelhança do poema intitulado «Portugal ao contrário», poema em que nos é proposta uma espécie de contra-epopeia imperial. Depois, há também uma sucessão quase vertiginosa de símbolos que nos transportam para essa dimensão esotérica de que falávamos acima, dimensão que sempre foi cara ao sujeito poético da autora. A terra, a pedra, a rosa de ouro, são elementos que aqui encontramos e que, na sua unidade convergente, servem para enformar esse gigantesco manicómio, o qual não representará o caos do mundo actual, mas também o regresso ao caos original de um Universo que será, para sempre, enigmático. A questionação subversiva do real está aqui presente de um modo bastante explícito, característica que se afigura constante ao longo dos poemas deste livro: «O Realismo do Infinito / é uma rosa de ouro. / Das suas pétalas caem gotas / com que os Anjos enfeitam os Poetas quando escrevem / nos dedos». A consciência da sublime missão da poesia está também aqui presente; nenhum poema será produto do vácuo ou da cegueira; nenhum poeta servirá a mediocridade do mundo; nenhum poeta poderá sucumbir às mãos de qualquer forma tirânica de poder.
O poeta jamais poderá vergar-se, sequer, ao peso de uma tradição poética: embora ele seja, de alguma forma, um iniciado, o seu pensamento é livre e a sua postura será sempre produto do livre arbítrio e da escolha justa. O sujeito poético de Maria Azenha também não hesita em parodiar o próprio desejo poético, o qual será, muitas vezes, a consequência de outros desejos, sem dúvida inferiores, e mal resolvidos. Essa postura céptica é visível no poema intitulado «Os poetas que conheço os que». Vencer a morte será um desejo comum à maioria dos homens, mas nem todos poderão receber essa benesse, a não ser os eleitos, aqueles que fazem da Palavra o sentido do Universo, mesmo que este Universo continue a mostrar-se vago e sempre oculto.
O sujeito poético de Maria Azenha assume-se neste livro como uma entidade cósmica, como é visível no poema intitulado «Bilhete de entidade», título que contradiz a simplicidade do seu conteúdo. Na poesia de Maria Azenha tudo culmina no poema. É neste discurso poético, no qual a loucura assume o protagonismo maior, que podemos vislumbrar uma necessidade que se impõe, e que nos ajuda a explicar, em grande parte, a compleição modernista que esta poesia encerra: a grande mensagem que daqui poderemos retirar consiste no desejo de subverter (ou esmagar) alguns dos ícones que marcam o nosso quotidiano infeliz. Será esta postura iconoclasta a novidade mais imediata desta poesia.