Uma antologia da poesia de Amadeu Baptista

 

AMADEU BAPTISTA


 

A respiração avança através de um gladíolo, as mãos

encrespam-se de silêncio, minerais dolorosos asfixiam

a noite, riscam

como se fossem fósforos as sardas do teu rosto. Vens

 

com os dentes branquíssimos, o peito aberto

aos ninhos, barco

que balouça na névoa, é tecto, casa, cama. Dar-te-ia

 

a cereja do bolo, a serenidade do mar, uma praia

de colmo,

 

se os dias não fossem transitivos e os objectos íntimos,

ó ave, insuportáveis.

 

As Passagens Secretas, 1982


ROYAL LABEL BLACK

(para Ruy Belo)

 

Este homem procura as cores mais secas do nosso entendimento;

vai connosco até à rua; responde-nos

um cigarro primeiro, uma construção na areia, depois um ferro

a espetar nas dunas e no mar

enquanto o mar houver e a paz durar;

come connosco à nossa própria mesa; ama a nossa mulher

e experimenta o odor da nossa casa aonde os nossos filhos

lhe entram pelos joelhos, o cobrem de carícias, lhe atiram

a satisfeitíssima bola de brincarmos aos adultos quando é tarde

ou os dias apresentam um cariz de pouca chuva.

 

Divide o nosso frango, a frugal fruta, as sobras do almoço

e sai-nos portas dentro quando o pôr-do-sol, a solução do sol, o sol

das terras de portugal e das noites de madrid

dialoga connosco, connosco estabelece a nítida fronteira

entre aeroportos, casas — oh as casas — e a mulher que,

podendo ser a de um estivador, do camisola amarela, desse irreverente basquetebolista

que por um grande azar não é das nossas relações,

foi, é, será sempre a mulher

encontrada e perdida na poeira, nas arcas,

nas infâncias multicoloridas

que parcimoniosamente nos excedem.

 

Procura, sim, procura as cores do nosso entendimento;

bebe do nosso vinho; vai à missa connosco; veste-nos

a pele de lobos esfaimados nesta selva de ratos onde os ratos

se confundem com navalhas, intelectuais empalhados, inquiridores

por conta d’outrem (e própria), só para que o amor

um pouco sobreviva, exíguo e tenso; ri

às bandeiras despregadas como só um menino, como só

alguém que sabe da poda pode rir

enquanto os táxis, o choro, as dores de consciência

— que afinal não há, embora os cais… — atravessam o meio-dia,

desesperadamente.

 

Ah, este homem procura as cores mais secas

do nosso entendimento; limpa-se

às nossas toalhas; chega

ao extremo de utilizar a escova privada da nossa privadíssima higiene; rompe

os nossos sapatos (meias inclusive); joga

à pancada connosco, ao eixo; e rouba-nos a carteira

como só quem sabe sorrir pode roubar-nos, pode assinar

de cruz por nós, solucionar

o problema da nossa talvez habitação

sem prestígio nenhum, ao menos uma praia de consolação

em que morrer

 

com o mesmo à-vontade, modéstia e alegria

deste homem que procura,

procura as cores mais secas do nosso entendimento.

 

Green Man & French Horn, 1985


CARAVAGGIO, UM ESBOÇO

 

Eu sei, há uma diferença indizível entre o que ergo

na luz das minhas telas e a vida, sob o fulgor

do anjo a transfiguração é mais surpreendente,

embora deste lado seja ainda mais sombrio

tudo o que dói, o coração,

o que deseja o corpo e o corpo impõe,

os sobressaltos do mar, o olhar

tão infinitamente cansado sobre as coisas. Mas o que faço,

Jerusaleme, é apenas seguir a intuição

de que alguma grandeza há nesta aventura,

uma dor insuportável por mais suportável que pareça,

um grito entre uma escolha e outra,

com a nítida certeza de que a um outro inferno

corresponde esta sombra sublime, este vermelho

brutal a que uma papoila moída deu lugar.

Neste lado do mundo pouco espero,

ou só aguardo um tempo em que do génio

possa subtrair outra palavra para poder ampliar

a noite com uma outra emboscada, um outro golpe

sobre o que advém da eternidade e se consuma enfim

na prega de um vestido, uma janela aberta, o intenso vigor

de um homem que passa carregado de pão e de tristeza.

Por isso, quando passo entre os esconsos lugares da minha vida

bem pouco mais do que ruínas me sitiam

na extenuação de que venho e de que sou,

embora haja ainda um sorriso a iluminar-me a face.

Depois de mim virá quem diga que a tristeza[1]

dura sempre e sei que é no espírito

que um homem se absolve ou se condena

pelas acções que ousa, independentemente

de uma maior porção de negro na brancura

ou o brilho obscuro de um punhal. Ainda assim, Jerusaleme,

nessa lacuna esplêndida, nesse intervalo

entre o que pertence à treva e o sangue corrobora,

algo divino irá permanecer, maior que uma chama

que se extingue ou menor que uma cor

que se não sabe explicar. Desse mistério sou.

E nenhum outro nome hei-de inscrever

no ramo desta árvore que as aves invadiram

porque me nego a acreditar que não seja dessa árvore

a minha própria sombra e dessas aves

o sortilégio que alastra nos meus olhos

e abre o meu olhar à eternidade. Volúveis

e precários, ao acaso da vida nos entregam.

E bem maior que nós é o medo de aqui estarmos

ungidos por uma força que um fumo estabelece

sobre as nossas cabeças. Mas esse fumo é

sinal de uma fogueira que pertence a uma estrela

que é nossa testemunha e pode confirmar

quem somos e não somos nesta casa

e quantas dúvidas dissipam e concentram

as dúvidas de que a alma se reveste

para que a obra nasça e o enigma

reproduza além de nós um outro enigma.

Eu creio-me imortal, Jerusaleme. Por mais silêncio

que venha sobre mim e mais vazio se concentre

sobre as mãos que abandono à lassidão do mundo,

por miserável que seja o destemido amor

que sofregamente procuro entre o comércio de uma moeda e outra,

perduro no que faço e perdurando venço

quem quer que se proponha assassinar

esta firme presença no universo, roubando tudo

a que um cadáver não mais é do que sagrado,

entre filhos e pátria e amor e ofício,

e tudo o que sempre está predestinado

aos predadores abutres da carniça humana.

A arte louvo, por tão difícil arte

ser o seu exercício entre os que redimem

a salvação por que jamais nos salvaremos.

E dessa arte eu sei que chegará,

mais do que a ressurreição dos mortos e dos vivos,

uma outra harmonia sobre o que deslumbra

e irrompe entre nós em benefício

de nos encontrarmos a sós perante o firmamento

e nessa solidão experimentarmos

o êxtase e a vertigem. Esse in anima,

Jerusaleme. Nunca nada, jamais, foi impossível

àqueles que acreditam e que amam.

 

Desenho de Luzes, 1997


APONTAMENTO, ENTRE AS PÁGINAS DE UM LIVRO DE JORGE DE SENA

 

Bem mais que a expressão do inefável

seja a expressão do amor a poesia.

Mais longe ainda que o silêncio denso

onde tudo se amplia e se concentra,

seja o amor a expressão mais simples

do que se escreve e passa para o mundo

como mais nítida transparência entre os sinais

que nos entregaram um dia e soubemos

guardar inexoravelmente. Pode o vazio

vir despedaçar-nos, encher-se o coração

de solidão, enegrecer-se a alma

de não haver sentido, desesperar-se

o espírito por não ouvir o anjo,

seja a expressão do amor a poesia.

Onde quer que estejamos há-de estar o indizível,

mas não menos insondável há-de ser o nosso nome

se entre o infinito em que estivermos

for a expressão do amor a poesia.

Bem mais que a expressão do inefável

seja a expressão do amor a poesia.

 

Desenho de Luzes, 1997


A NOITE DE PAVESE

 

Raras vezes me franquearam a porta

e me deixaram entrar. A febre

sitia-me a alma e quem me vê

assusta-se do aspecto do meu rosto,

esta barba por fazer onde um rouxinol

se esconde. E mais ainda assusta

a minha altura, este lugar de vertigem

e palavras poderosas, a presença

de ilimitados segredos que ninguém quer conhecer,

o estremecimento que corre nos meus ombros.

Embora nada peça, sabem que sou um pedinte.

E quando entro nas casas os meus gestos

afeiçoam-se a alguma coisa enigmática

que contorna o pavor e o entrega

por não se saber que espécie de vida ou de morte

vem comigo. Obviamente, eu abençoo

quem me deixa entrar, dou a entender

que alguma coisa brilha nas minhas mãos

e posso matar a fome com uma ou outra palavra

próxima do amor, um dedo nos cabelos

de quem me recebe. Subi as escadas que vão dar a esta casa

em silêncio e em silêncio aceitei que me aguardassem

com as inefáveis sombras que vejo nos outros

e tento decifrar para meu contentamento.

Mandaram-me sentar e deram-me de beber.

Esse álcool reconfortou-me a alma.

E a minha gratidão expressa-se deste modo, limpo

e nítido, observando a mulher nesse sem fim

das coisas, onde todos os mistérios avançam

para uma explicação que a qualquer momento

pode irromper do espírito como uma explosão.

Olho-te nos olhos e recebo as duas moedas

que me ofereces, o teu rosto é-me familiar

se recuar à infância e subitamente perceber

que também pertenci ao exercício desta árvore

que nesta sala se levanta. Em frente,

na fotografia que o meu olhar alcança

porque me alcança o olhar que dela se desprende,

inscreve-se o enigma que me fez aqui chegar,

mais que um rumor ou um fio ténue

com o nome de todas as coisas inesperadas

que me aconteceram na vida, sempre

que me franquearam a porta e me deixaram entrar.

Agora, com a memória de ter estado em tua casa

e ter recebido a graça de alguma atenção,

eu, que sou pedinte embora nada peça,

entrego-te este sulco da desordem

sobre a página em branco e agradeço-te

com o conhecimento de um outro mundo

ainda mais inexplicável.

Não tendo havido despedida, sabe que permaneço

e na encruzilhada das dores que me couberam viver

não esquecerei o teu nome no dia em que também tiver partido

e mais nenhuma luz houver além daquela

que ilumina o teu rosto na solidão da noite.

Os anjos esperam-me. Não me é possível demorar.

Que me seja a alba a tua tolerância.

 

Desenho de Luzes, 1997


Vou com o carro de feno.

 

Na luz terrena

procuro a salvação

da palavra,

o fogo mortal

que nos vem arrebatar

e perder.

 

Vou com o carro de feno.

 

Pressinto a morte

em cada profecia,

o oiro da perda

por que fomos expulsos,

o terror da palavra.

 

Em silêncio,

vou com o carro de feno.

 

O triunfal silêncio

do carro de feno.

 

As Tentações, 1999


Sabemos o que existe. Não sabemos

o que existe. Nem sequer sabemos

alguma vez de nós no frémito dos sonhos

onde vivemos e perdemos a vida.

 

Nenhuma sombra (a luz) nos conduz à existência,

sequer com a existência celebramos o encontro,

e tudo o mais são sombras violentas.

 

Violento é o ar que respiramos,

sofregamente respiramos a existência,

desde que nascemos e sabemos o que existe.

 

Não sabemos o que existe. Nem sequer

sabemos que nome alastra na grandeza

de estarmos vivos e irmos para o mar

perscrutar a existência

com as mãos rendidas

ao mar intrépido da nossa ignorância.

 

Sabemos o que existe. Não sabemos.

 

As Tentações, 1999


ÍCARO: O SEGUNDO VOO

 

4

(Plano de voo)

Atinge-me o coração a vocação do voo,

sendo soberbos os ardentes vermelhos que há nas fontes,

estes azuis espessos e subtis que sob as nuvens ardem,

os quase incrédulos verdes por que me amotino

sempre que sinto serem as asas tão ávidas e avaras,

tão escasso o tempo que a vida nos impõe,

levíssima a fragrância que chega desta bétula

e amplia a encruzilhada até ao infinito, o dédalo que nos cumpre

sem que alguma vez nos cumpra, esta intenção

de ir atrás do vento como que inventando

outro nome nos nomes, outros lugares

onde apenas anjos nos revemos

com desígnios de desejo, leves desenhos

de cidades e sombras antiquíssimas

de frágeis elegias e mulheres e bosques

onde um sonho se inscreve e tudo se inscreve

para haver no silêncio outro silêncio

onde tudo é grácil, indício, amanhecer,

sem dúvida um homem que carrega

nas mãos uma romã, o pão ainda fresco,

a vital alegria que há nas coisas.

 

Catálogo Rogério Ribeiro: Desenho Pintura, Lisboa,
Câmara Municipal de Lisboa, 2000


A CONSTRUÇÃO DE NÍNIVE

 

Toca-me o sangue. Peço-te que me toques

o sangue. Escuta este rumor

dentro do meu peito, esta palavra enlaçada

a uma pedra que arde dentro da terra.

 

Toca-me o sangue. Ordeno que me toques

o sangue. Este rio que corre nos meus olhos,

a música silenciosa que o mar vem entregar

quando os homens regressam do crepúsculo.

 

Vê como estou vivo. Vê como sabem a terra

as minhas palavras. Vê como tenho ensanguentadas

as minhas palavras perdidas, esses barcos

que a tempestade teme e as aves anunciam.

 

Amo-te. Toca-me o sangue. Sente que venho

da noite, que é com angústia que chamo

pelo teu nome, sonho os teus sonhos,

espero as tuas mãos.

 

Toca-me o sangue. Toca os fios de dor

que me rasgam a boca. Toca o fogo dos meus cabelos.

Toca-me o sangue, a escuridão

em chamas do meu peito.

 

Sou o que espera na noite. Sou o que chora

na sombra. Sou o que espera a tua passagem

silenciosa, os teus quadris ardentes

navegando na noite impassível.

 

Espero-te. Espero-te. Um perfume ergue-se

das tuas mãos, um punhal. Toca-me o sangue.

Sou o que espera na solidão inquieta

e toma a luz pela luz dos teus cabelos.

 

Espero um rio, é uma praia que espero, o azul

penetrante da tua tristeza secreta, esse bosque

rugindo um nome e precipitando a fuga

dos que temem e estão intranquilos.

 

Toca-me o sangue. Toca o arco de fogo

que cai das minhas mãos, as sílabas perdidas na treva

por que uma criança cresce para o sono

e toca a limpidez de uma lágrima.

 

A vida vem com a brisa. Um astro

aproxima-se do teu rosto. Uma canção desprende-se

da árvore de espuma que a sombra engendra.

Toca-me o sangue. O febril sangue do meu peito.

 

Amo-te, mulher desconhecida. Amo-te.

Amo o jorro de luz da tua boca,

as tuas cálidas palavras, a orla secreta

dos teus lábios onde o mar vem beber.

 

Amo o lume inesperado dos teus olhos, o teu corpo

nervoso, as tuas mãos perdidas no vazio.

Amo as caladas cintilações da tua boca,

a pequena mancha de tule que dança nos teus olhos.

 

Como a luminosidade descobre uma sandália na areia,

o sinal recente de um beijo no contorno de um rosto,

como um coração de pedra arde dentro da pedra

e uma nuvem transfigura para sempre o horizonte, amo-te.

 

Toca-me o sangue porque te amo. Toca-me o sangue

porque trago comigo uma palavra sagrada. Porque estou

inocente. Porque te amo. E uma ponta de luz

entrega a claridade invisível dos teus dedos.

 

Um rumor de água ou de lume vem das tuas mãos.

Pulsa nas veias da noite o vento do teu nome.

Um pássaro queima a tristeza inextinguível.

Um grito, um grito rebenta finalmente no meu e no teu peito.

 

A Construção de Nínive, 2001


PRAÇA DA GALIZA – PAINEL PARA ROSALIA DE CASTRO

 

É um frio tremendo.

A água gela nas torneiras, a solidão

cresce como uma unha, uma sombra

atrai todas as camisas de silêncio, arde,

é uma noite encerrando os perigos da perdição,

os ferros agudíssimos do silêncio.

 

É um frio tremendo.

Perde-se o caminho de casa, a luz extingue-se,

pergunta-se pelo sangue e o sangue

não responde, o sangue perde-se aos borbotões

na vida, não há caminho, não há regresso,

a sereia canta no denso nevoeiro, mas não há

esperança, a tempestade é o único lugar,

o único lençol, a voz velocíssima

entregando-nos sem rendição, entregando-nos.

 

Como uma agulha fecha-nos os lábios, ata-nos

as mãos, como uma agulha de silêncio, feroz,

terrível, cose-nos contra as paredes e os olhos

saltam, saltam, é um frio tremendo

onde tudo arde, arde antiquíssimo, flecha

no coração, solidão descendo o braço,

descendo devagar, espraiando-se

 

na terrível superfície do silêncio.

 

Antologia Ao Porto, Lisboa, Publicações D. Quixote, 2001


RUA MONTE DOS JUDEUS, 78

 

Um laço e um lance de escada,

a sombra revelada é talvez o vulto esperado,

a folha do último outono sobre a clarabóia,

essas linhas paralelas ao teu rosto

onde a ausência rasga uma espera inútil,

um zumbido dentro da cabeça como o primeiro prenúncio

da morte.

 

A ferida alastra,

a rua enche-se desses mercados ruidosos,

laranjas e amoras que queimam a realidade,

um pregão que anuncia a passagem de mais uma hora,

o gesto parado sobre a cabeça do anjo

que ergue a taça sulfurosa, suspende

o brilho sobre os ombros,

incrimina a paixão.

 

Agora o sangue alastra e a cidade arde

no ardil da tintura, a gaze

asfixia o olhar,

as mãos desprendendo-se para um lugar

de absoluta solidão,

esse silêncio que corre nas veias

como soro e antídoto

de uma outra grandeza mais feroz,

essa que afasta a sombra do corpo sobre a fronte imaculada,

o lençol que precipita a luz nos olhos cegos,

o destino que vai com o sol para as fogueiras da noite.

 

O corredor bifurca em dois corredores sem saída,

a panóplia de fragmentações agora recomeça e abate-se sobre o coração,

é ainda possível recordar o quarto minguante que vivemos

no primeiro encontro, saber que não são já as mesmas mãos que escreveram

a subtil despedida, apenas a iniquidade, talvez a pouca sorte,

sem dúvida o constrangimento

de tudo ter sido como que irreal neste espaço brutalmente real

e ter sido a lágrima derramada em vão.

 

Antologia Ao Porto, Lisboa, Publicações D. Quixote, 2001


CARTA A PIERO DELLA FRANCESCA, ESCRITA EM MILÃO, PRETENSAMENTE ATRIBUÍDA A LUCA PACIOLI

 

Não sei porque me preocupo com a proporção divina,

esse acervo de raras conjecturas inflamáveis e alegorias múltiplas

que nos servem para nada de nada ainda sabermos

da casa de que somos, de que caminho vimos,

quais as causas que manifestamente instituem a diferença

entre a hesitação e a dúvida lancinante

e o grão de mostarda a que Deus não perde o rastro.

O pensamento é ainda a dimensão

do que poderá pertencer-nos, o que vem

de repente afluir à nossa boca e não é senão

a expressão do mistério, a intuição

que nos leva a perseguir o sortilégio que há em tudo,

esse outro enigma que em inúmeros litígios, motivos e ciência

para sempre amplia a nossa sombra,

o sulco e a terracota onde guardamos de nós o que ao tempo resgatámos

e à ausência cedemos para que o céu, o inferno, o limbo e o paraíso

sejam de todo em todo a nossa condição, a ambiguidade

de tudo quanto somos em omissão e erro

nos obscuros manuscritos que irão testemunhar

a insustentável precariedade em que vivemos.

Não mais do que da matéria bruta construímos

os trânsitos e os ornamentos em que existimos,

embora tantas vezes o olhar vacile perante a eternidade

e a nossa humanidade e o nosso exílio

vezes de mais nos vençam,

ligando-nos ao que é ínvio e vem com a perfídia

para que nos seja lícito deixar de acreditar

no fundo de inocência que nos resta.

O mundo em volta é essa imperfeição.

Desse miasma é o ar que respiramos,

desse azedume vem o que fazemos

sempre que entre o mal e o bem nos dividimos

para que o veneno alastre a quem divirja

da nossa própria mácula, essa soez passagem

que ao nosso alvitre cede a crença e o capricho

e a nossa solidão redime em sacrifício

que só o esquecimento ratifica.

No meu ofício sei que mais não sou

do que um clarividente percalço no percurso

que a terra impôs e a lâmina condiscípula

limpa de amigos e inimigos para sempre,

seja ou não seja o oiro ou o destino

o esmagador fim último de tudo,

podendo ser a escolha entre a terrível invenção de um número

ou a edificação da dádiva,

a inesperada visita à nossa infância

ou uma oração simplesmente murmurada,

o amor ou o desamor,

a paixão redentora,

a áurea visão de uma nuvem que o sol tocou

e nem sei bem porquê partilho aqui contigo,

a incerteza pelo mundo que há-de vir

ou a aguardada condenação de tudo o que envolve aqueles que estão vivos

e tremendamente temem, transfigurados

em outra coisa que não essa outra coisa

que é a carne, os ossos, os sonhos e a alma

que o nosso corpo escolheu, sem outra escolha

que este sobressalto e este desconforto.

Hei-de dizer o quê aos meus alunos?

Se tudo fosse simples,

se em pés e braçadas se medisse o universo,

se a luz dos lugares e dos espaços

mais não fosse que a implícita matemática que concebe

o círculo e o quadrado de que deus é o espelho,

se tudo semelhasse a progressão natural de uma árvore

onde essência e divindade se encontrassem

em íntima relação excelsa e irrefragável,

se o mistério das coisas se esclarecesse

em cores tão nítidas e eficazes como as tuas,

talvez o que existe e não existe

fosse a pureza escolhida, a sublime

constatação do único e autêntico

que além de revelar aproveitasse

ao que progride e marca o expoente

do que em nós se confronta em exigência

e em gravidade e equívocos se adensa.

Assim, velho e doente, nesta insegurança activa,

nesta terra onde nada corresponde à doçura

que desde sempre quis ter pacificada

mas vejo irremediavelmente incrédula como um homem

que procura há muito tempo, assim, onde

ulula a multidão e a esperança já não pode

fazer de mim senão um vencido sem derrotas,

vendo o orgulho ignorante progredindo

até ao infinito do abandono e da mágoa,

mais nada quero que a inquietação de sempre

e o engenho que o amor ainda consente

a quem persiste em interpretar a deriva,

cumprindo o inefável.

 

Revista Mealibra, nº. 8, Viana do Castelo, 2001


ACENOS

 

Atira-te ao rio e dou-te uma maçã.

Não tenhas medo, a água está tranquila.

Traz esse pau para construir um barco,

quero comandar esse navio.

Onde ele for, havemos de ir também.

Este boné afirma o meu poder.

Ainda um dia hei-de conseguir

nadar até à outra margem.

Ir e voltar será o maior triunfo.

Não sei de que te queixas.

Não está frio, corre no rosto

esta brisa amena, não tarda muito

o peixe vai picar. Ah, deus queira

que a vida venha sempre ao nosso encontro

e eu e tu sejamos marinheiros.

 

Antologia Álbum de Acenos,  Almada, 2001


APARECIMENTO DE CRISTO À VIRGEM

 

Não penses que morri por ter partido

ou que parti só por ter morrido.

Onde estive não estive e onde estou

não estive nunca. Não penses que me vês

só por me veres, ou que por não me veres

eu não existo. Nem penses que existo

se me vires, ou mesmo que existes

por me veres. Não penses que me amas

porque amas o que os teus sentidos

de mim sentem. Nem penses que me sentes

ou me amas só porque me sentiste e amaste.

Não somos nada e tudo somos sempre,

embora sempre eterna seja a eternidade

e a nossa eternidade não exista.

 

Paixão, 2003


escondes dentro do livro a estrela

e não te preocupas com a queimadura,

como se não houvesse outro mundo

e só as páginas fossem inflamáveis,

 

o teu sorriso é uma verificação,

fechas o rosto e tudo continua,

abres o livro e tudo se ilumina,

é certo que de palavras e vento

 

um mundo pode erguer-se, essa estrela

é o teu nome incendiado,

o teu nome onde a morte gasta tempo,

 

o teu nome é um astro quase extinto

que folheio, gostando de queimar-me,

sabendo que por uma nuvem me perco

 

e ganho.

 

Sal Negro, 2003


QUADROS PARA UMA EXPOSIÇÃO

 

não digo que o meu coração pulsa, digo

que pulso com o meu coração.

neste sentido, o que quer que faça,

surge de mim com a mesma acutilância

do que, comigo persistindo, expressa

a inquietação de quem, não tendo asas,

ousa voar, pintando. por um lado, vejo.

por outro lado, pinto. e tudo a que aspiro

é esta perturbação imperturbável

que vem da luz e o mundo transfigura,

sem que ignore, em qualquer momento,

que também surjo do mundo e nessa luz

evoluo, a questionar o mistério e o sortilégio

em que aqui chego, como um sintoma

de tudo o que existe no universo

e é, comigo, a expressão da ressonância

que viaja pelos tempos para todo o sempre

e pela variedade infinita se define. assim,

conquisto pela cor e pela luz

a doçura possível que enquadra

a tensão em que tudo coexiste

e como uma narração procede do amor

e em drama e invenção se manifesta

ocultamente, para que se entenda

a explicação da urgência, a relação suprema,

o contraponto entre a arte e a natureza,

a turbulência, a nitidez, o ofício.

falo, antes de mais, dessa energia

que as formas geométricas corporizam

e não são mais que figuras de nós mesmos

em permanente mudança, a fluir

no que se adivinha e pressente

onde as pulsões se juntam e concorrem

para melhor discernir a solidão, o medo,

a incontornável cronologia das várias circunstâncias

onde nos perdemos ou nos encontramos

como ascensão e queda, ou apurada

enunciação da ascese e do desejo.

pela memória assumo os pressupostos

do que o fio do novelo guarda em si

para que se não esqueça o caminho percorrido

e as suas qualidades, tantas vezes

cercado por negrume e asfixia, tantas vezes

tão próximo da ruína e do extermínio,

tantas vezes acossado pelo que acumula

vazio nos monturos, cadafalsos, forcas.

pela memória assumo a diligência

de averiguar o que é estrela fixa

e no ponto de fusão ao cosmos acrescenta

um lugar de partida e de chegada

a esta passagem para outra luz

onde a luz é um ímpeto e uma espera

implícita para quem sonha e reproduz

no voo um voo esplendoroso

e no desterro uma hipótese, ainda.

pela memória assumo quanto vi

e instaurou nos meus olhos a avidez

e o deslumbramento, pelo auge

das coisas e o seu abismo, pela marca

irredutível que as forças em presença

propagam sobre nós, ampliando

o carácter da obra, a sua estirpe e alcance,

a sua dívida à dúvida estabelecida.

na oficina, milímetro a milímetro,

outro combate enfrento, como se

ao material da memória viesse acrescentar-se

uma presença física carregada

do que é em mim a génese de um destino

e o seu entendimento, uma estranheza

que só em algumas coisas reconheço,

seja um caderno branco ou um jogo de anilinas,

um cavalete ou um labirinto,

seja um livro por ler ou o escuro vão de escada

onde vou amontoando frascos, pincéis,

tubos de tintas, figuras mitológicas,

cubos, triângulos, panos coloridos.

eu sei que essa presença é como uma ilusão

e que toda a ilusão é uma traição

no exacto sentido em que o desvendamento

é sempre uma ocultação do que se mostra.

por isso a minha arte é este rosto

em que continuadamente convoco a invenção

e nó a nó a corda do desenho

é parte convulsiva do que digo

e vou acrescentando ao mais vulgar sentido,

por ser a parte pertinente desta história

em que a história se vai redefinindo

para que o clímax se atinja e a floração irrompa

sob a forma de um silêncio

que não é mais que um grito inexorável.

estou na linha de fogo, o mais das vezes.

e o que me sitia provém de um imaginário

em que o combate comum se apresenta

como um mito maior nas nossas vidas,

um arrepio que ferve e ruge ancestralmente,

um sonho que se inscreve noutro sonho,

formas e brilhos sempre irreversíveis,

a busca permanente e assumida

da paz nos dois lados da muralha,

a ênfase da partilha, a procura

de outra noite no que a noite

contém de indizível, ardente, impetuoso.

em cada fuga que na praia se prepara

e represento com cores fundamentais,

em cada corpo que intui a viagem

e ponho sobre a tela como aparição

explicitamente disponível

para o arrojo do voo e da ousadia,

por cada incógnita que a moldura circunscreve

com feixes de murmúrios e plenitude,

em cada quadro dentro de outro quadro

e a lenta irrealidade com que cito

a transcendência, o fascínio e a intimidade,

em cada abstracção, em cada névoa,

em cada perspectiva,

é o enigma que exprimo,

o dom de adivinhar,

a veemência com que somos errância e origem

na síntese possível

do eterno retorno da pintura

e a transfiguração subliminar.

por um lado, vejo. por outro lado,

pinto. e é como se tivesse

uma dupla pupila sob a reserva

que na alma levo,

vencendo assim um obstáculo e outro,

notando como a mão

a segurar o pincel

é potencialmente uma asa,

talvez precária,

talvez rudimentar,

mas não menos asa sobre o espaço

e a matéria,

enquanto sou um deus

castanho,

negro,

vermelho,

amarelo,

verde,

azul,

ou branco

a abrir janelas sobre o firmamento,

para que nos possamos ver,

dizer,

criar.

 

O Som do Vermelho, 2003


com um só fósforo ilumino o infinito.

e muitas vezes o infinito é algo

muito próximo, um livro, uma chávena

de chá, o teu rosto escondido

na penumbra, o retrato de alguém desconhecido

que de uma praça acena,

um fio de tabaco, um monograma

num lenço muito branco.

o infinito o mais das vezes é

não mais do que o que toca o coração,

uma leve poeira pelo ar, um ponto fixo

que a mão ousa tocar, esta chama

que de repente amplia a escuridão

e me torna visível a quem passa

e no clarão acende o seu cigarro.

 

Revista Aguasfurtadas, nº. 4+5, Porto, 2003


O ESCRUTÍNIO FENÍCIO EM ANTÓNIO RAMOS ROSA

 

O abecedário treme, escuramente.

A palavra faúlha é obscura.

De abismo em abismo cada letra

é o infrene flagelo da procura.

 

Eis como algumas voam como hastes

e penetram a carne, golpe a golpe.

Irrompentes, emergem e claudicam

para que não baste, ainda, a clausura.

 

Alguém as escreve, alguém as vê

e sente o alarido do seu silêncio vasto,

a cabeça com brilhos animais

que rebentam com tudo o que há no mundo.

 

Nem sequer são punhais, apenas crina

de um cavalo feroz e transparente

que o áugure sofre, toma e aglutina

aos casulos mortais da impaciência.

 

No seu destino ardem, como facas

de luz nas superfícies brancas,

um silvo ágil na sombra das espiras

que marca sobre o fogo a distância

 

que vai da alma ao espírito em lenta progressão

sobre as coisas infinitas, as tensões,

a pura perda, o rasgão no peito,

o escrutínio fenício do poema.

 

Livro colectivo Dez Poemas Inéditos para António Ramos Rosa, Porto, Edições Asa,  2004


NEGRUME

 

Onde se lê coração ler errata.

António Cabrita

2

 

estou no meu esconderijo predilecto e sinto a cona por perto.

os ciganos batem à porta de casa e querem entrar.

trazem várias peças de tecido, várias manchas nas mãos.

sei como me querem roubar e tenho medo.

 

atrás do fecho da porta, onde bate a sombra, pressinto

o perfume a chegar. amplia a casa, recua, abre

para as traseiras como um pequeno relâmpago, feito

de cristais e gelo, de animais a correr, aves cegas.

 

aqui me interrogo, em silêncio, com as mãos

sobre o tórax, no meu esconderijo secreto.

e o tumulto abate-se sobre mim, como se fosse possível

correr de um lugar infinito para outro lugar.

 

o meu lugar na casa é o lugar do silêncio,

em volta estão as torneiras com os seus débitos imensos,

as sombras dos ciganos, a barba rude e azul.

e tenho medo. sinto a cona por perto.

 

de um sortilégio chega a minha dimensão de ser pequeno.

a água ferve, brilha a lâmina no escuro, o meu espanto cresce

na exacta medida de tudo estar parado.

e abro os olhos para um horizonte de escarpas, uma lura.

 

na luz está o meu receio, pelas narinas

sobe o acre odor. receio tudo. a desmedida claridade

em que me escondo, sob a fita de nastro, na brancura

da dobra do lençol, que me aperta o pescoço.

 

os ciganos interpelam-me, querem-me a qualquer preço.

vejo-me nos montes, entre as pedras, entre os tufos

de esteva e a precariedade do lume, das carroças, dos charcos.

sinto a cona por perto. tenho medo.

 

o meu medo é  como uma navalha chamuscada.

o rumo do corte sugere-me um silvo de trovoada.

a mulher está de negro, e eu estou na infância como que manietado.

entre todos, só eu posso ratificar o sacrifício.

 

troco por duas meadas de lã o contrabando inefável.

vendem este menino a ciganos agrestes. o olhar deles

é a turbulência das caravanas e eu sinto a cona, sinto a cona.

sinto a cona vibrar próximo da minha cabeça, e tenho medo.

 

3

 

vi os homens no carro celular, os cães fodidos.

por cima de mim estava o ramo,

havia céu, estrelas. mas os cães

ladravam à minha passagem, acossados.

 

no tempo em que me interrogava,

no tempo em que tinha uma ânfora, azeite e cereal,

fixava a atenção na iridescência. a cristaleira

à minha frente era um espelho.

 

mas sou agora um homem só. os cães fodidos

ladram na distância, ladram, ladram desabridamente.

e o brilho, assim translúcido,

é agora a minha maior pena, o meu maior desgosto.

 

vi os homens no carro celular, a neblina cinzenta.

às vezes Deus esmaga-nos o peito, reclama-nos.

o que gela é escuro como uma torrente de gritos.

meu amor, tremo de frio, a noite é vasta.

 

os cães fodidos. o barco, a viagem. nada espera.

de novo o carro celular volta ao lugar

em que a semente estiola e a boca arde.

não sei de ti, de mim, da nossa sombra.

 

noutros lugares o aceno é o sinal

da transposição do limite. a nuvem abre-se

ao sulco tracejante, ocre ou grená.

e é possível ver fazer chover.

 

aqui, assim, na barra da ausência,

só é possível ver as torres altas, os guardas

que vigiam, a arrogância

dos que nos servem o vinho e a abundância.

 

são desabridos os nossos sentimentos.

o desejo é um cão. os mortos

visitam-me ao crepúsculo. estou em fogo.

vi o carro celular. os cães fodidos.

 

hei-de dizer às crianças: foi assim

que em golpes de sangue o meu amor morreu.

não sei já para que serve a verdade.

Deus existe, não existe, reclama-nos.

 

4

 

posso usar esta palavra da consulta externa

e ter muita alegria por voltar à enfermaria.

com pontos naturais, e muita sede, arrecado a doença,

os efeitos colaterais do mundo.

 

a palavra a usar é a palavra gangrena, a expressão,

derrame cerebral. e estar na cama às sete da tarde,

num outono obscuro, é como fazer um poema

sem possibilidade de aroma, encantamento.

 

para ver a mulher sob o efeito analgésico

subi ali. um marco de intempéries.

a infância regressa connosco ao mesmo erro,

a dissipação, num golfo exaurido.

 

resta chorar, rebentar a cabeça nos portais, pedir

sentenças de deslumbramento e lume. o cigarro

que nos pode queimar é a salvação possível,

mesmo aqui à porta. aqui, ainda, à ilharga.

 

de onde sou que não sou de nenhum sítio,

não sei. sei que sigo as incursões urbanas,

os raros realejos, pluridisciplinares.

mesmo se a disciplina for perder o olhar.

 

na queda, no sedimento da perda, no olhar

parado sobre as avenidas novas, só me calo.

o meu caldo é este, assim verde, assim radicular.

a surpreender os presentes, os ausentes.

 

a enfermaria é vasta, como vastos hão-de ser

os contornos do silêncio. o vigilante entende.

e mesmo que não entenda, a baba e o ranho

são a camisa de forças circundantes.

 

hoje o almoço foi sopa. sopa de carne e alho.

a lenta frescura da árvore cresceu no pátio.

são inúmeros os degraus, inúmeras as águas.

ninguém pode mentir, mesmo se fecha a boca.

 

derrama-se o tempo na drageia branca.

o esgoto é próximo. no ruído estrídulo da ambulância que passa

vai um gemido interpolado de ausência.

a palavra a usar é a palavra sensível, a veia exposta.

 

6

 

estou a dizer caralho repetidamente.

atrás de mim vejo uma embarcação em ruínas,

o sonho assume uma amplidão soturna, as bocas cospem fogo.

depois a cidade cai, com estrondo.

 

vem uma mancha negra ou azul, como petróleo,

e contamina as minhas mãos. principio

a perscrutar-te os olhos sem te reconhecer.

continuo a dizer caralho, repetidamente.

 

depois o sonho alonga-se numa queda sem fim.

vai a cabeça à frente do corpo, coberto

por uma toalha vermelha. da boca voam

insectos gigantescos, maiores que a sua sombra.

 

a treva cobre tudo. chega um vulto e diz que não se pode

regressar por esse caminho, há que seguir em frente.

um caminho de longos silêncios e longas lâminas

intimida os que querem passar.

 

a mão intratável sobrevoa-me os ombros.

tenho as omoplatas pontuadas por uma claridade verde esmeralda.

estou a chorar, na antiga casa, o velho alpendre.

volto a cabeça e vejo o teu sexo, a gruta escarlate e quente.

 

a gruta tem um enorme poder de sedução,

sou ainda uma criança e fico em silêncio a observar.

o meu silêncio pesa mais do que o peso da minha alma.

passam gansos, peixes brancos. digo repetidamente caralho e não me calo.

 

vem alguém e entorna leite no chão da cozinha,

um homem vocifera e ergue-se com uma corda ao pescoço

e uma faca na mão. volto a repetir: caralho, caralho, caralho.

passa um carro na rua a buzinar estridentemente e acordo, num sobressalto terrível.

 

depois, tudo é silêncio avassalador. há passos surdos no corredor

contíguo ao meu quarto. oiço um alfinete cair, a mãe a gemer.

a cama range, o pai volta-se nos lençóis, para outro lado,

outra direcção atroz.

 

a casa está submersa num silêncio sólido, irreparável.

estou muito só e tenho frio, embora esteja um calor abrasador.

ouve-se um cântico ao longe. o som de asas a roçar nas paredes.

digo: caralho, caralho, caralho, num sussurro infinito, até perder o fôlego.


PENA AGRAVADA

(para Vítor Silva Tavares)

 

Estou a cumprir pena perpétua.

 

Na infância, uns filhos da puta rodearam-me

com triângulos escalenos e não pude

fazer mais que emocionar-me. Nesse tempo,

a minha ocupação eram as luzes coloridas e um rio

em que as barcas abrangentes conduziam as almas

para o inferno, sem que dessa escuridão se suspeitasse.

Nos anos cinquenta a miséria absoluta confrontava-se

com um menino inocente, que o alarido dos vizinhos

amedrontava, sendo que alguns deles sangravam dos ouvidos

e dormiam ao relento sob as árvores, e bebiam

até que pelas veias corresse apenas álcool. Com cuidado,

olhava-os nos olhos, a fazer do silêncio um primeiro

recorte obsessivo de palavras, películas vermelhas

que invadiam a nítida frescura do meu pátio.

Estava ali e queria persistir, talvez porque pensasse

que há lugares ilesos um pouco para além

dos gemidos da noite e do chicote

com que a turbulência arrasa certas vidas

que não podem mais que o pão quotidiano,

sobretudo se o desamparo é não o ter.

Agir, por essa altura, era crescer, embora o crescimento

seja uma fortuna inverosímil, que se pega

ao corpo a assinalar o teor que há na dor

de modo mais profundo e explícito, em que a morte

é como um sinal de perigo, mas não exactamente

uma ameaça. Fazia sete anos e era pastor aquando

do passamento da mulher amada, a quem chamei avó

e sei que é um álamo verde nestas margens

em que me reduzo a pó nesta memória

de a lembrar agora a inscrever nas praças do seu tempo

um meneio escandaloso de passar por elas

com os cabelos soltos e a anca em fogo.

Compôs-se então de treva a claridade e aprendi a ler.

Foi-me tormento a escola e o terror

de ter por mestres gente que batia nas crianças

e andava curvada sobre o tempo

que se estendia cinzento sobre os dias,

sem qualquer alegria que a tristeza anódina

dos que perderam para sempre a macieira

mágica. Cheguei a presumir que nos temiam,

sendo as nossas certezas tão escassas

mas tão vociferantes essas figuras

que nos faziam crer que compensava o crime

de nos manterem reféns no estrado,

completamente prontos para a impunidade

de uma régua mortífera nos nós dos nossos dedos.

Mijávamo-nos de pavor pela violência inumerável

da aprendizagem, onde o fulgor coalhava

com notícias do céu tão abstractas

como o facto de sermos navegantes

há tanto tempo que não o lembrávamos.

Até que um dia, já adolescente,

descobri o poder da poesia que, a par com o mar,

aprendi a fitar com imprudência, por serem

revoltosas essas águas em que o dia

e a noite se confundem. Era essa imprudência

o desassombro de ouvir o longínquo e o genesíaco,

com homens e mulheres a recortar-se

da imensidão dos tempos, a cantar a dolência

e o sublime, a invectivar o mistério e a ampliar

o enigma que há entre os enigmas, ou o surto

de sentidos que, num sopro, agrega ao infinito

o infinito, para que haja mais infinito no sentido.

No meu país, então, grassava a guerra

e para os da minha idade só havia

essa promessa como compromisso,

que abarcava a morte pela extorsão

e a posse da terra, e a escravatura

de outros homens em tudo iguais a nós.

Longos anos durou essa aflição, até que um dia

o mais cruel dos meses comportou

a amenidade esperada, dando à paz

um fugaz clarão de expectativa.

Por essa altura descobrira os gregos

e não tardei a ver com que punhais

trabalha a insídia e aos abutres

se não devem confiar os braços levantados

para a prece comum. Os pobres

estão mais pobres do que nunca e despojado

o mundo pelos roubos que, entre acerto e desacerto,

cada um de nós vai consentindo, por cobardia,

fraqueza, ignomínia. Ainda assim eu quis resistir.

E li mais gregos, e instintivamente olhei o mar.

E fui, contra a corrente, nessa corrente

de vozes subterrâneas e ventanias densas

que me tornaram órfão de tudo quanto amei

e perplexo amante de um recontro tenso

com o poema oculto no poema

em que, mais do que o amor, surpreendi a morte

com que, fora de mim, por dentro me revejo,

agora que, ungido pelo vazio, só mesmo a poesia

sobrevém. Triângulos escalenos trouxeram-me a este cais

e, tal como na infância, uns filhos da puta me rodeiam.

Não posso fazer mais que emocionar-me.

 

Antecedentes Criminais, V. N. de Famalicão, 2007


CANÇÃO

 

O buxo forma um arco com algumas

dezenas de léguas que é preciso percorrer.

Depois há um pomar de magnólias brancas,

de onde se pode vislumbrar o esplendor de um regato.

Deste regato, contando cinquenta passos, alcança-se o jardim.

Cada um dos canteiros do jardim está disposto numa singular

correnteza de sete pequenos losangos, que são coroados

por um círculo de terra. Em cada círculo de terra

há flores brancas e amarelas, sendo jacintos as mais vigorosas

e gerânios as que dissipam a sombra. Segue-se, depois,

por uma estrada de saibro, e descobre-se um lago,

enquadrado por quatro torres vermelhas. O lago

é de um azul penetrante e as árvores que o circundam

são sagradas. Depois, segue-se pelo caminho da esquerda,

que se bifurca na ponte de pedra. Daqui, segue-se em frente,

até ao campo de girassóis, que dez colmeias pontuam

e um velho castanheiro vigia desde o tempo dos tempos.

Depois, há uma clareira que se deve atravessar até que se encontra

um portão. Não havendo ninguém ao portão, acende-se um archote

para iluminar o caminho. Esta luz deve ser obstinada.

Depois, à direita, há um túnel, e, logo após, uma gruta

e uma longa escadaria, que se deve subir como uma montanha.

Encontra-se, por fim, a antecâmera. No centro da antecâmera

ergue-se um trono e, à frente do trono, há uma cama,

em que uma mulher está adormecida. Sobre o rosto

desta mulher adormecida está um livro aberto,

que é preciso ler até que o amor seja um laço de sangue.

 

E tudo isto feito, Fiama há-de estar viva.

 

Antecedentes Criminais, V. N. de Famalicão, 2007


GEORGE FRIEDERICH HANDEL: LA PAIX,
DE MUSIC FOR THE ROYAL FIREWORKS

 

Há uma curta distância entre o céu

e a terra,

eu posso imaginar as aves inquietas,

o que passa é forte

como um remo abrindo as águas

e a imagem do homem.

 

Deste lado da luz

o horizonte em chamas

nomeia a solidão,

é grande o ar,

a justa partição do que redime

pelo precário poder

dos deuses,

a chama ilesa.

 

É do fogo que chega

este mistério,

pelo inefável arde,

o eterno sopro em pedra

e som

— a paz do mar.

O Bosque Cintilante, 2007


JOHANNES BRAHMS: DANÇA HÚNGARA Nº. 5

 

São os húngaros que passam

em obscuras carroças

e entregam ao vento

a beleza avara.

 

Correm pelos campos

a perseguir a dança

e entregam ao vento

a beleza avara.

 

A beleza avara

dos húngaros que passam:

estarmos vivos

e irmos com o vento.

 

Com a dança intuímos

as obscuras carroças

dos húngaros que passam.

A beleza avara a correr pelos campos.

O Bosque Cintilante, 2007


LUDWIG VAN BEETHOVEN: ODE AN DIE FREUDE, DA SINFONIA Nº. 9

 

Não sei se isto é um hino e os anjos

precisam deste instrumento

para ampliar o silêncio. O que sei

é que chega de longe esta surpresa

de poder segmentar em força o coração

que em mim pulsa e eu não sei

de onde vem quando na música

pressinto um tema que só aos anjos pode pertencer

pela pujante candura dos acordes

e a humilde magnificência da alegria.

 

Tudo quanto ignoro é que está bem.

O Bosque Cintilante, 2007


WOLFGANG AMADEUS MOZART: ANDANTE, DO CONCERTO PARA FLAUTA E ORQUESTRA EM DÓ MAIOR K 373

 

Quero que os meus contemporâneos

me contem na minha melhor fase, ainda que não

me ouçam, ainda que engulam silenciosamente

a inveja com que me aceitam, ainda que saibam

que tudo quanto fiz prevalecerá inaudível

até à minha morte, tantos foram

os obstáculos que levantaram à minha passagem

e nenhuma grandeza pôde vencer, nenhum desprezo.

Eles sabem que se o nosso encontro se desmoronou

e o mau juízo que fizeram de mim

se cobriu de esquecimento e premeditada ignorância

foi porque pertenci ao futuro do meu tempo,

ao que houve e há e há-de haver

no coração dos séculos.

O Bosque Cintilante, 2007


JOHANN STRAUSS: SCHATZ WALSER

 

Não ser nitidamente de nenhum lugar

que não desse precário poder que há na música

e em suaves contornos corresponde

ao que de mais efémero se reparte

em puro encantamento e pura luz.

A perfeição é esta melodia

onde se ocultam brilhos de fogueiras

em noites extensíssimas e palavras

que se partilham pela transparência

de um sortilégio ausente.

Inerme é o mistério que nos cerca

e prodigiosamente entrega um nome

quando sob os segredos se vislumbra

uma forma irreal de autonomia

— o primitivo Deus, diáfano e esplêndido.

O Bosque Cintilante, 2007


JULES MASSENET: MEDITAÇÃO, DE THAIS

 

Não há coisas absolutamente vivas

como não há coisas absolutamente mortas.

 

Sempre que tocamos a árvore

há uma folha que se desprende.

O Bosque Cintilante, 2007


ROBERT SCHUMANN: TRAUMEREI

 

O número das ruas que sobem

não é o mesmo que o das ruas que descem.

 

Sei que me aguardas

e não vou voltar.

O Bosque Cintilante, 2007


JOHANN SEBASTIAN BACH: BADINERIE

 

Altas horas da noite

ouvi a fala da estrela

prometer-me a cegueira

do esplendor da luz.

 

Não há como fugir a céu aberto.

O Bosque Cintilante, 2007


VIVALDI: OUTONO, DE AS QUATRO ESTAÇÕES

 

[para Miguel Florián]

 

Que memória haverá da gôndola vermelha que atravessa o canal,

quando eu morrer?

Que sombras beneficiarão a Piazzeta

e iluminarão a noite,

quando eu morrer?

Quem consolará Beatrice, Belvidera

e Orietta,

quando eu morrer?

Continuarão a chamar-me demónio

e a condenar a angústia

que me afeiçoa às mulheres e me afasta do culto,

quando eu morrer?

Que música ondulará sobre Sant’Angelo,

quando eu morrer?

E as órfãs,

as órfãs do Pio ospedale della Pietà,

quem velará o sono das órfãs,

quando eu morrer?

Quem se debruçará da janela

para melhor escutar a plangência divina

que exprime o sublime,

quando eu morrer?

 

Deus?

Os anjos?

O próprio Outono?


FRANZ VON SUPPE: POETA E CAMPONÊS

 

A jovem camponesa que faz versos.

Não os passa ao papel porque não sabe escrever,

mas diz que os preserva em cada árvore que vê,

e na chuva que cai,

e no sol que se põe.

Uma pequena erva pode ser um poema,

ou a água que corre no leito de um ribeiro

onde uma luz se esconde ou uma sombra vibra.

 

Como cuidar da imperfeição

senão sofrendo pelo que é perfeito?

 

Às vezes –  diz ela –, passa-me pela cabeça

uma onda de música que não tem lugar

e eu sei pertencer a um mistério sem nome

que dói no coração muito devagar.

O Bosque Cintilante, 2007


PRAIA DA GRANJA

 

Pelo que quer que seja a exaltação habito aqui,

nesta casa de sete janelas,

com uma pequena porta e uma varanda verde.

 

A praia incendeia-me os olhos,

e chamo, chamo à mulher espiral do mundo.

 

Toco com um dedo o muro branco e acrescento

ao entendimento ervas amargas, animais solares

e obscuros, um antigo instrumento de trabalho,

o búzio, o barco, o arado,

um ramo de salgueiro, esta pedra incisiva,

uma maçã vermelha.

 

Guardo no coração uma voz que vai de lugar em lugar

a interrogar as sombras

e no poema murmura o poder das cintilações

sobre a cânfora,

a hortelã,

os figos,

o encantamento,

a cabeça da víbora.

 

A extensão desta casa é a dimensão desta praia

divina sobre as águas,

tal como é divina a mulher que me acompanha

e a quem chamo espiral do mundo

por ter criado um sortilégio assim,

uma casa grega,

branca,

nítida,

com sete janelas,

uma pequena porta e uma varanda verde

sobre o mar.

Antologia A Sophia, Lisboa,  2007


OUTROS DOMÍNIOS

 

32

A dor – não obstante a dor, chegarei a Horeb

antes que a noite caia, e direi os meus versos

de contrição e êxtase a quem tiver ouvidos.

 

E direi que a dor é como o fogo ou a lua,

e que me fortaleço na desolação, e o meu caminho

é pelo lume e os astros iluminado,

e mais me fortaleço na desolação.

 

Eu chegarei ao mar, e cantarei o hino,

e a minha canção incendiará a noite,

e os versos invocarão o homem, o bem-amado, o excelso,

e pelo meu canto aproximarei o coração

ao coração das raparigas que cantam em Jerusalém.

 

E direi que a dor é como o lume e os astros,

e que me fortaleço na desolação, e o meu caminho

é iluminado pelo fogo ou a lua,

e mais me fortaleço na desolação.

 

Outros Domínios (Clamor por Florbela Espanca), 2008


DESCIDA DA CRUZ

 

Vi os homens do alto da cruz, mas não vi o demónio.

O demónio dir-me-ia que a morte é vital, mas nada ouvi, aqui,

nesta paixão, sendo que apurei o ouvido e nem o eco das montanhas

do Moab ouvi, só ouvi como é doce a paixão e como esta crucificação

rende preito à esperança dos homens, tal como, de mim para comigo,

disse tantas vezes, e à multidão dos homens repeti.

 

Há coisas que não ouço e que não vejo, o demónio não vi, eis o que sei,

ele, se me visse nesta cruz, por certo choraria, pelos seus mil olhos

eu sei que choraria, pelos seus mil demónios no olhar, enquanto

chega a morte para que tudo se perfaça sobre o sofrimento,

a esponja do vinagre, a lança no flanco, os gritos das mulheres,

o grave galope dos cavalos a reter a multidão na sua esperança aflita.

 

Vi os homens do alto da cruz, mas não vi o demónio, essa luz

tão diferente, esse asco assinalável, mas não menos amistoso

pela demoníaca presença se aqui tivesse vindo, sendo que não me negaria

como outros me negaram, ah, não, não me negaria o que me persegue,

diria quem eu sou e qual o meu nome, e como os maltrapilhos desta terra

exercem pelo seu nome o nome que eu tenho, todos quantos

só pela minha dor rejubilam e se podem salvar.

 

Não vi aqui o demónio, nem vi Deus, vi o cálice e vi o abandono,

e vi a terra toda ensanguentada e Adonai ausente, ausente em parte incerta,

enquanto as mulheres e os homens se enlaçavam,

e foi a manhã inicial,

e a coroa de espinhos perfurava as minhas têmporas,

e os homens e as mulheres se enlaçavam,

e foi a noite inicial,

e por amor se uniram e geraram filhos,

enquanto sobre o Gólgota ecoavam os oboés e as trompas.

 

Sobre as Imagens, 2008


CARAVAGGIO: A MORTE DA VIRGEM

 

Ela é a virgem,

embora tenha conhecido muitos homens

e os seus filhos peregrinem pelo mundo

com lágrimas nos olhos

por não terem mãe.

 

Já cadáver, encontrei-a no Tibre,

e trouxe-a para aqui para a pintar,

sabendo que os frades não me irão

indultar a ousadia

— hão-de dizer que a tela é indecorosa

e que no meu trabalho nunca largo

o escândalo que me é próprio,

sempre tocado pela lascívia.

 

Na bacia de cobre está um preparado

com vinagre

para lavar o corpo da defunta,

sendo que aos pés da morta

é Maria Madalena que se vê,

com a cabeça caída

sobre o peito

por ser fundo o desgosto

de ver a amiga morta

— tinham chegado a Roma

há muito tempo

e conheciam-se

de pequenas aventuras nas tavernas,

sendo que às vezes partilhavam a cama

e os clientes,

ou, sendo caso disso, uma manta

no Inverno,

ou algum pão,

escasso,

o mais das vezes.

 

No centro da pintura estão três apóstolos.

A razão por que um deles está estupefacto

e ergue a mão direita

tem a ver, somente, com o drama

de a morte ser injusta,

usurpe alguém divino,

ou um miserável que não tenha

onde cair morto.

 

Mateus,

de todos os apóstolos o mais sábio,

porque estudou nos livros e na vida,

sabe que não há bálsamo eficaz

para quem parte,

por muito que tenha já sofrido;

por isso o represento assim,

inconformado,

com uma mão aberta, e outra fechada:

 

a vida é tudo o que nos resta

estando vivos  — o que vem a seguir

nunca se sabe que dimensões comporta,

mesmo que haja luz no outro lado

e a promessa de bondade seja cumprida.

 

Ao lado de Mateus, pintei Tiago,

que presume que a mulher não faleceu,

mas só se encontra adormecida

— se deu à luz, um dia,

e os seus filhos estão aí a comprová-lo,

ainda que dispersos pelo mundo,

é porque o transe da morte ultrapassou,

e dorme, apenas, para que conheça a eternidade

e influencie o céu

com a sua doçura perene de mulher.

 

O outro é Lucas,

que, a olhar em frente,

está a tentar compreender o que é um corpo,

essa engrenagem obscura,

que, sem álibis,

nos reflecte os métodos de Deus

— que dá, a cada um, um modo de sorrir e de chorar,

um modo de sofrer e de amar,

um modo de nascer e de morrer.

 

Atrás dos três apóstolos,

está disposto o mundo

— é gente que encontrei pelos mercados

e, em silêncio, dá testemunho

de que há na terra um tempo

em que se deve duvidar do que é certo,

sendo que certa há-de estar sempre a morte,

mas, também, o trabalho que aguarda

pelas nossas mãos,

na oficina,

nos campos

ou em casa.

 

Um é curtidor de peles,

outro negoceia cereais e vinhos,

outro faz cestos, e vende-os pelas praças,

outro é talhante,

um outro é ferrador e é barbeiro,

outro é astrónomo,

outro copista,

outro é soldado,

e outro pede esmola nas vielas,

a gritar a quem passa por piedade.

 

O mundo, pois.

Onde esteja a morte

é bom que um pintor figure o mundo,

para que no jogo de sombras fique incluso

esse jogo mais duro do confronto

com a realidade,

onde o próprio veludo tem cores cruas.

 

É isto que os frades me não perdoam

— o meu desassombramento perante o mundo,

a concisão patente no que faço,

chamando-lhe indecência

e insinuando que vesti de vermelho esta mulher

por gozo pessoal e por volúpia.

 

Não é verdade.

Antes de mais, porque a encontrei assim.

Depois, porque pensei que numa mulher não há pecado,

seja ela quem for e de onde venha.

Por último, porque tratando-se da virgem,

só mesmo o sangue a pode vestir,

o sangue espesso e forte,

de modo que quem olhar esta pintura

saiba o que vê, imediatamente:

 

uma mãe

que o sofrimento jamais abandonou,

em tudo o que viveu

— os perigos que há ao dar à luz,

a fuga para o Egipto,

a ameaça concreta no Sinédrio,

a árdua resistência necessária

para perscrutar em qualquer cruz

a iniquidade que o destino alcança.

 

Inchado,

maculado,

desfigurado

tem o seu rosto esta mulher morta,

adormecida.

 

E eu sou Caravaggio,

que luto, denodadamente, com a arte

para que a tragédia,

sagrada ou profana,

se represente igual à sua gravidade,

cantem, ou não, os anjos as hossanas,

goste-se, ou não se goste, do que faço.

 

A vida é turbulência

— e é assim que chega às minhas telas,

 

e é assim que o que pinto,

entre claros e escuros,

me proclama.

Poemas de Caravaggio, 2008


TRÊS ELEGIAS

 

1

É em manhãs assim que não sei como escrever

elegias, vou à ágora do poema e só encontro

cães, e os cães estão sôfregos pelo que paira no ar,

a extensa litania que submerge a cidade e irrompe

 

do sentido para prevalecer. É uma manhã napolitana,

com fumarolas e lâmpadas a crescer pelas praças,

e os cães estão a céu aberto a marcar com as patas

o exíguo território a que se confinam os mortos,

 

os mortos amontoados nas ruas, como se fossem

uma barreira para o mar, uma barreira de coral

com pés e mãos, e bocas hiantes no sobressalto

do mundo. É em manhãs assim que alguma coisa pica

 

o sangue, e me lembro de ti um pouco antes de seres

definitivamente mulher, e és uma rapariga camponesa

a enumerar as ondas, a descer sobre os campos

onde todas as batalhas decorrem, todos os clarões.

 

És hoje esta elegia, mas não sei, ainda, como hei-de

escrever-te, permaneces no templo e guardas na luz

o teu contorno marítimo, onde há colinas nuas

e arbustos pequenos como os teus dentes miúdos.

 

Os cães aguardam, e uivam, e rosnam, e é esse o sinal

para o arrebatamento, vem um braço de vento tocar-te

o rosto e sou eu que toco os teus cabelos, numa carícia perfaço

um juramento em que estás presente, ainda que estejas

 

ausente, e só saibam os cães onde, e como, procurar-te.

Encontro-te, talvez, um pouco acima do céu, um pouco abaixo da terra,

encontro-te exactamente onde Nápoles se olha no escuro

e onde tenho a boca em fogo para pronunciar o teu nome,

 

ainda que em manhãs assim não saiba como escrever

elegias e a partida seja um rio intranquilo em que tudo

te lembra. Eu e os cães ouvimos vozes nocturnas, e, de repente,

apareces, e a manhã estremece, e vibra, muito branca,

 

sendo que os cães sabem tudo de ti e eu te choro

sob esta sombra, ainda que o sol brilhe sobre o mar,

ainda que a janela entreaberta enquadre a nitidez de uma silhueta

com o teu rosto, e eu não seja mais que um navio votivo, perdido a jusante.

 

2

Claro, o mármore transpõe o teu rosto para o tempo

e deixa-te a sorrir pelos séculos, sobretudo nas estações

do ano em que a luz é mais densa e a memória é, ainda,

um indício de como se trabalha na terra e como a terra

 

nos trabalha a nós. No mármore ficam todas as sedimentações,

todas as maçãs, todos os ritmos em que o apaziguamento

recobrou os sentidos e te leva pela casa a altas horas

da noite a murmurar canções indizíveis, às vezes coisas obscenas,

 

que tu cicias com um sorriso cândido quando há gente em volta

a insistir em ouvir a tua voz. No mármore ficam os filhos

que tiveste ou lamentaste não ter e, também, as noites de luar

em que te chamas madrigal e invocas os anjos para que sejas

 

tu mesma um anjo. E ficam os mantimentos que escolheste anos a fio,

a tua sombra magnífica sobre o fogão, e o teu perfume,

esse perfume dourado a conjecturar sobre o amor

como se o amor fosse não só uma essência mas todos os jardins

 

do mundo. Claro, o mármore cinge-te às coisas que só tu pudeste

ser, mas incredulamente, como tu dizes, e continuas a ser

nesta irremediável dimensão da pedra em que tudo se transforma

para que a sua fria dureza manifeste algo idêntico ao teu corpo

 

e tu te reencaminhes na eternidade sem outra vocação

que a de voltares a nascer logo que possível para vires mimar

o gato, as flores, a neve quase azul da primavera e, depois, reacenderes

a lareira com os teus finos gestos de adoradora do sol.

 

3

Não sei como pode um homem desolado conduzir

os exércitos e dar à emboscada um sentido preciso

no rumo do combate. Não sei como posso

ainda erguer-me e sentir o sol na cara,

 

ou ver, ao longe, os duzentos cavalos a desbravar

a montanha e sentir, com eles, o coração

acelerado e triunfal, não sei como posso

sentir a aljava de buxo nos meus dedos

 

ou desmontar a tenda na hora do regresso

sem que saiba de que sono e ausência precaveste

os mais íntimos enigmas que o teu corpo

fechou sobre ti mesma. Não sei como tolerar

 

o intolerável e ir à guerra e sentir vertigens

pela falta que me fazes cada dia e noite.

Não sei como pode a água ser clara e a trepadeira

florir assim, com luz vermelha, se a dor que me mantém

 

é a tua sombra imóvel, e inviolável, nesta casa. Não sei

como entender o que grita e ruge e se amotina

no meu peito porque não voltarás a encher o meu bornal

nem estarás comigo a ver a bruma densa

 

sobre os campos de feno. Não sei, não sei

sequer como erigir uma elegia em que te possa

lembrar na desvelada ternura que entregaste

aos prisioneiros que fiz na última batalha.

 

Não sei como suprir o que esta perda

me trouxe de frio e maldição, ou como adormecer

contigo na memória e a garganta áspera

do vinho negro e doce da libação amarga.

Poemas de Caravaggio, 200


OS SELOS DA LITUÂNIA

 

1

escrever pode ser, naturalmente, ter três anos,

estar na praia num dia muito quente

e sentir que alguém nos apanha pela cintura

e mergulha nas ondas violentas

de um mar revolto, vendo num relance

a multidão em volta, toucas amarelas,

biquínis coloridos e o homem da bolacha

americana, de boné enfeitado com uma âncora,

a percorrer o areal em toda a extensão

que vai do paredão à casa do banheiro.

vir num soluço à tona de água e voltar

a submergir com um grito preso na garganta

para ver do mar o fundo, aquelas algas

ameaçadoras num bailado aquoso

que as lágrimas ainda mais adensam.

se não for isso, pode ser, exactamente,

ter um profundo conhecimento da palavra

garrotilho, ter estado de cama com sarampo

e a janela para a rua resguardada

por um pano vermelho que vai do chão ao tecto,

sentindo muita sede, sem poder

sequer molhar os lábios. ou, então, ouvir

a tarde toda os gemidos de alguém

a quem diagnosticaram esclerose múltipla, a regredir

na idade e a ir morrendo aos poucos

de drageias brancas. escrever pode ser, exactamente,

ter um medo mortal de ir à escola, e sofrer

os efeitos maiores da crueldade

que os mestres manifestam nas crianças,

as páginas à deriva entre a baba e o ranho,

as pernas aflitas por todo aquele pânico,

doridos nós dos dedos e o coração

aos saltos. não sendo isso,

escrever pode ser, provavelmente,

um ajuste de contas com o passado,

ou até mesmo a lembrança dessa noite

em que o vento varreu o nosso quarto

e destelhou as casas circundantes, vitimando

o garboso pundonor do gato que cruzou

a estrada e foi atropelado por um balde

amolgado. não sendo isso, pode ser o cavalo

inquieto que no prado, certa vez, se vislumbrou, ou animais

degolados, com as vísceras entrançadas

num novelo no alpendre, perto da roupa

pendurada na corda de secar. ou a noite,

imensa e perdurável, em que alguém

bateu à nossa porta e não entrou,

e nós com a lanterna tentámos ver

sob a chuva que vergasta ainda

as sebes que há em volta do cercado,

o cata-vento em forma de avião, os cardos

do baldio. se não for isso, será, precisamente,

aprisionar o rosto a um lugar

para não ceder, ir com o corpo adiante procurar

o ritmo das paixões, as mais vorazes,

as que podem produzir assassinatos, estontear

as cabeças, irromper de um céu de sombras

verdadeiras, mesmo que não haja céu,

mesmo que não haja sombras

e nas letras resplandeça

pouca coisa.

 

11

atrasei-me muito no caminho da escola

para casa porque o bosque

enfeitiçou os meus sentidos.

fiquei a olhar as pedras e as árvores

e a tocar o chão com as mãos para perceber

de que matéria a luz é feita ou como podem

certos pássaros voar, assim tão negros,

como se fossem o segredo que se encontra

entre o ágil e o fluido, a limpidez

e o abundantemente imponderável.

comigo ia a evanescência das coisas, o caminho

em que se decide tudo, a fonte de água

pura que os animais procuram, esse fumo

invisível que atravessa o coração

e nos há-de acompanhar durante a vida,

se à vida devolvermos claridade

pelo que vemos e ouvimos, esse frágil

rumor de mil cintilações à nossa volta.

caía a tarde célere e a noite próxima

fez-me despertar deste fascínio, o regresso

impunha-se e a inocência

poderia seguir num outro dia

o rastro que na tarde havia descoberto.

tinha que me apressar, ainda havia

uma longa distância a percorrer

entre as cintilações e a casa inatingível.

nunca tive uma relação pacífica

com a mulher que me criou. quando cheguei,

abriu-me a porta impacientemente,

pressenti-a nervosa e pude ler-lhe

uma infinita censura no rosto,

não bem pelo atraso com que vinha,

mas porque é mesmo assim a crueldade,

com aqueles traços finos de quem sabe

que há sempre castigo exemplar

para um miúdo de nove anos. em silêncio,

indicou-me a porta das traseiras e fez-me entrar

na garagem deserta àquela hora,

onde uma fila de garrafas e um monte de jornais

foram a fria testemunha de como pagaria

o facto de ter visto uma libélula

e perscrutado o vento. não me bateu

com as mãos, ou mesmo com um cinto,

mas com uma velha correia de borracha com arame dentro

que estava ali abandonada de um arranjo

do carro, há já bastante tempo.

não verti uma lágrima.

nem disse uma palavra.

o bosque ainda hoje me extasia

e a esta mulher morta desejo

a terra leve.

 

20

a pensão portuguesa aceita casalinhos

só por uma tarde. não há check-in.

um balbuceio apenas exprime a intenção

do que queremos e as notas, franzinas,

passam de mão para mão, devolvendo esta

a chave com um número. é lá em cima,

como sempre, que se situa o quarto,

no corredor, ao fundo, mesmo ao lado

da casa-de-banho colectiva, que há-de estar

ocupada quando for preciso. sobe-se

a escada ali da recepção e pensa-se

que o trajecto é muito longo, enquanto

sorvemos os degraus, um pouco exaustos

do que essa insídia representa, embora

demorasse pouco tempo para aqui chegarmos.

ela ia a atravessar a rua, eu vinha

um pouco atrás, e, de repente,

percebemos o vazio que alastrava

e que ambos estávamos deprimidos

pela chuva que caía, a cidade, o trabalho

obscuro com que íamos comprando, a prestações,

o vencimento da nossa própria morte. não

nos sorrimos, por não valer a pena,

ou sermos vagamente conhecidos

de outros trânsitos citadinos,

com a mesma chuva,

os mesmos rituais de quem sai de casa

como se estivesse a viver os dias da quaresma.

viemos para foder. a chave abriu a porta

com duas voltas rápidas, um som

metálico sob as dobradiças, o riso adjacente

de alguém que não tardou

a começar a gemer num tom agudo

que abalava o mundo. no quarto

há pouca coisa, uma cama sem coberta, por abrir,

duas toalhas gastas, um psiché

parecido com aquele que me habituei a ver

na infância, nos quartos lá de casa,

um espelho manchado e nada mais,

além de uma janela que dava para as traseiras,

com sanefa e cortinado de cretone desmaiado,

entre um lilás mortiço e um verde que já fora carregado,

que ela abriu, passando um dedo pelas sobrancelhas,

como que a compor a maquilhagem.

tal como os domingos são intoleráveis,

e os sábados, e os restantes dias da semana,

resisto por instinto à depressão

sabendo bem que onde existe o nada

nada há-de reverdecer a minha vida.

tirámos os sapatos. aproximamos, enfim, os nossos corpos

e, como uma implosão, beijamo-nos

na boca, com ardor.

vamos morrer agora por instantes.

um toque no cabelo, que mais que o arrumar

o desarruma, é o sinal para nos começarmos

a despir e, um no outro, adivinharmos

o sem sentido deste silêncio atroz, esta carícia,

as minhas mãos a percorrer-lhe os ombros, os seios,

o umbigo que parece um poço, um poço fundo

de que ninguém já bebe. a lingerie dela

é de seda negra, contrastando com a pele

branca, ponteada por sardas e sinais

e uma gargantilha breve que usa no pescoço.

demoro a perscrutá-la e comprovo,

enquanto aplico o preservativo,

que ainda é bela, já não sendo nova,

e que o modo como olha sobre as coisas

poderia ser terno se não fosse triste

e a dor predominante

insustentável.

Os Selos da Lituânia, 2008


VAN GOGH: CAMPO DE TRIGO COM CORVOS (1890)

 

(para Joaquim Cardoso Dias)

É cedo em Auvers-sur-Oise,

mas os malfeitores permanecem vigilantes.

 

Desde que me lembro a minha vida

é uma fuga

 

– fujo dos malfeitores

 

e, por isso, a minha cabeça não aguenta,

a minha cabeça treme,

 

e estou só,

e atravesso a terra de ninguém

como se fosse perseguido pelo demónio

e o demónio se aliasse aos anjos,

 

e tudo fosse, na terra de ninguém,

essa conjura.

 

É cedo em Auvers-sur-Oise,

 

e noto as cores

da perseguição,

 

verdes, azuis e cinzentos

convocam-me os sentidos,

 

mas estou alerta,

 

alerta como só um louco pode estar,

ou um profeta.

 

Theo,

tal como as nossas brigas,

também o sangue que me corre nas veias é eléctrico,

 

e é preciso que eu parta,

 

é preciso que eu parta,

definitivamente.

 

As paixões enervam-me,

destroem-me.

 

E já não sei como dormir,

como cuidar que a navalha

esteja num lugar em que a não veja,

 

porque a navalha, Theo,

 

fascina-me,

 

e, às vezes, odeio esta maldita pintura

 

que fez soçobrar o meu amor

e a minha vontade.

 

Os malfeitores permanecem vigilantes,

 

e eu só quero o sul,

só quero, cada vez mais, o sul,

 

e é com o sul que sonho

cada noite,

 

a navalha,

o sul,

o quadro inacabado

que aguarda

a indecisão da minha espátula.

 

Ainda não sei, Theo,

porque nasci

 

– um homem vem ao mundo

para trabalhar nas minas

ou arrotear os campos,

 

não vem para que se entregue ao suplício

e nele ponha a sua devoção

e a miséria.

 

Fosse eu um homem diferente, Theo,

 

o homem que julguei capaz de ser,

 

e talvez no hospital me entendessem

e deixassem de me olhar

como o vagabundo que sou,

 

com a roupa manchada de tintas

e este rosto de quem vive o tormento

de passar sem indiferença

pelos seus semelhantes.

 

Preciso, Theo,

do consolo das tuas palavras,

e de pincéis comuns,

 

e de alguém que me visite na prisão,

se eu for preso

por ter perdido a cabeça,

(treme-me, a cabeça)

e me ter insurgido contra a turbulência

com que me perseguem.

 

Ontem fui à taverna, Theo,

 

e as cores deslumbrantes com que vi aquilo

pareceram-me ser de uma bondade infinita

 

– trabalhei toda a noite,

e é inimaginável como o trabalho me rende

quando esta febre chega

 

e as cores,

todas elas,

zunem nos meus ouvidos,

se expandem no meu crânio,

 

e descem pelo meu braço:

 

há um laranja saturado que só eu sei

que existe,

 

a luz envolve-o,

as sombras querem conspurcá-lo,

 

mas eu resisto, Theo,

 

trabalho incessantemente

 

e rezo, baixinho,

para que Jesus me ouça.

 

Em presença deste laranja,

meu irmão,

fico em pleno uso das minhas faculdades,

(sim, a cabeça, a cabeça treme-me por dentro)

e sorrio dos que me chamam louco,

e aprovo-lhes a decisão de me manterem afastado

dos favores do álcool:

 

fico à porta da taverna

e o espírito eleva-se,

e fico ali,

sozinho,

a tentar pescar a terra.

 

Não, não me empanturro de vinho,

de grão-de-bico e lentilhas,

 

farto-me, isso sim, desta cor,

 

que é a cor da transfiguração

e do equilíbrio,

 

porque sou imundo e intocável,

por mais que os malfeitores me persigam

e eu seja desequilibrado

(treme-me, a cabeça).

 

Quero tocar com as mãos

coisas que nunca vi,

 

sem receio,

atravesso os campos enrubescidos

pelo dilúculo matinal

e ouço vozes,

ao longe,

 

ouço vozes desconhecidas

que me chamam

 

e me fazem ver o incriado,

a miragem,

a alucinação.

 

Não temo:

 

tingido de carmim,

o horizonte espera-me,

 

e os malfeitores perseguem-me,

 

e sou como Isaac

a morrer às mãos do anjo mensageiro

 

e corre-me pelas veias

um sentido de grande utilidade:

 

pinto e pinto,

e a luz absolve-me do mal

e da maldade.

 

Theo,

 

há momentos em que a terra se cobre de papoilas

e eu possuo todas as riquezas da terra,

 

e sou um pobre pintor

a exultar pela magnificência,

 

por este ocre queimado, da cor

dos peixes da terra,

 

por este laranja-de-cádmio

que me reconforta,

 

por este vermelho,

vivo e condescendente.

 

Um dia há-de chegar a revolta

dos desprotegidos,

 

e os malfeitores saberão

o que vale efectivamente perseguir

quando a tristeza perdura

 

e só um tiro de pistola

vem resolver a contenda

indisputável, Theo.

 

Por isso, vou para sul

 

e há-de ser a sul

que me encontrarei com Deus.

Doze Cantos do Mundo, 2009


PAUL GAUGUIN: O CRISTO AMARELO (1889)

 

E sabíamos todos que a hora

era chegada e tudo em volta

escurecia,

 

e que, em Pont-Aven,

era chegado o tempo da colheita

e os campos estavam todos amarelos.

 

E aconteceu que as mulheres da Bretanha

ajoelharam,

e vinha eu no caminho

e vi a luz,

 

e os meus olhos cegaram para que visse

a roda do martírio

e o escárnio.

 

E aconteceu que as cores se saturaram,

e a paleta recebeu,

vindas do céu,

as cores

 

–  e eu enchi a tela de perguntas,

e, pelo esplendor,

atirei-me ao chão

e em mim senti um som sombrio.

 

E vi, então, que as mulheres

choravam

e que os homens

não se compadeciam

de quem sofria,

 

e tudo tinha um brilho

esplêndido,

um brilho sobrenatural,

à minha volta.

 

E aconteceu que se ouviu cantar

o galo,

e que toda a terra se abriu para aquele brilho,

 

e os camponeses vieram,

e choraram.

 

E vi que preparavam varas novas,

e que as varas eram só espinhos,

e que o homem caía,

 

caía mesmo em frente aos nossos olhos,

que nada mais fazíamos do que o ver caído.

 

E eu tomei a tela e preparei-a,

 

e sangrava o homem

abundantemente,

e eu perguntei ‘quem somos?’

e nada se ouviu.

 

E chegou o crepúsculo

e, em volta, era só amarelo o que se via,

 

e o rosto do homem inundava-se de lágrimas e de sangue,

e arquejava-Lhe o dorso,

e puseram-Lhe aos ombros o madeiro.

 

E as mulheres da Bretanha

irromperam em choro,

e a multidão

adensou-se no lugar,

e suplicou o pão,

e os peixes,

 

e seguiram-No.

 

E vi as minhas cores queimadas pelo fogo,

 

e que os meus pincéis vibravam,

e misturei ao óleo terebintina,

enquanto o homem subia pelo monte

onde reinava o silêncio

e a abominação.

 

E perguntei:

‘quem somos, de onde vimos?’,

 

e em volta levantou-se um grande incêndio,

e as labaredas tomaram o lugar,

 

e era tudo amarelo nesse sítio.

 

E houve uma mulher que trouxe

água,

e com a água trouxe um pano branco,

e limpou-Lhe o rosto,

e o Seu rosto estava iluminado.

 

E eram amarelos os Seus cabelos,

e amarela era a Sua barba,

e a cruz, nos ombros,

era amarela,

como um topázio.

 

E, então, caiu o homem

pela segunda vez,

e as mulheres da Bretanha

arrancaram os cabelos,

 

e olharam em redor

para que chegasse algum socorro,

de onde quer que fosse.

 

E os campos em volta permaneciam amarelos,

e eu prendi aos dedos o pincel

porque toda a terra tremia

 

e o coração

saltava-me do peito,

e a cabeça doía-me

e pesava-me.

 

E o homem seguiu, arrebatado

pela dor,

e um outro homem veio em Seu auxílio,

e eram grandes as feridas,

e deitavam muito sangue.

 

E as mulheres da Bretanha

seguiram com Ele,

e vacilavam-Lhe os passos,

e o Seu corpo

era todo amarelo,

 

a boca,

as mãos,

os pés.

 

E assim se acercou do cume da montanha,

com as mulheres da Bretanha sempre atrás,

 

e havia soldados

e outros condenados,

que o viram cair pela terceira vez.

 

E Ele levantou-se,

e a multidão exultou nesse momento,

e eu, com o pincel, fiz o esboço

daquele quadro de grande sofrimento.

 

E uma das mulheres chamou-Lhe ‘filho’,

e outra ‘amado’,

 

e a elas se juntou outra mulher

que Lhe chamou ‘irmão’,

 

e, nos seus vestidos,

caíram lágrimas de sangue e de estupor.

 

Do meu pincel só o amarelo

permitia

estender-se na tela,

e tudo era amarelo,

 

os campos em volta,

o rosto de quem estava,

e a cruz.

 

E cravaram-Lhe as mãos e os pés

àquela cruz,

 

e tudo em volta foi um só silêncio,

e parecia que a terra dimanava

um odor amarelo,

que só as mulheres da Bretanha compreendiam.

 

E um soldado

veio com a esponja

embebida em vinagre,

e prendeu-a a um ramo,

e deu-Lhe de beber, porque a sede

o martirizava.

 

E eu executava a minha obra,

 

e tudo era amarelo à minha volta,

as árvores,

as colinas,

as casas que se viam do ponto onde estava.

 

E o tempo passou,

e olhei o homem,

 

e olhar a Sua face pacificou-me,

 

porque o homem sorria

por ver a multidão

a partilhar o pão

e os peixes

que Ele lhes entregava.

 

E a terra tremeu,

 

e vi tudo amarelo à minha volta,

e as mulheres da Bretanha olhavam-No

a sorrir,

enquanto eu perguntava:

‘quem somos, de onde vimos, para onde vamos’?

 

E na linha do horizonte vi os anjos,

 

e as asas dos anjos

cintilavam,

 

e cintilava, também, esta pintura

onde, em silêncio, pus

as mulheres da Bretanha,

 

e o Cristo amarelo

com o meu rosto.

Doze Cantos do Mundo, 2009


FRANCIS BACON: STUDY FOR CROUCHING NUDE (1952)

 

(para José Manuel Vasconcelos)

Os cães,

essa corda de cães

a ganir ao relento

e a lamber as feridas gangrenadas

 

–  ao que vêm,

se a este território

só chegam os eleitos,

com os seus cetins cinzentos

de abóbada celeste?

 

E eu, como os suporto,

como os vejo,

sabendo que sou deles

pela carne e os ossos

e, mais profundamente, pelos uivos

aterradores?

 

Estou aqui

para não me conter,

e sei que o meu trabalho

é exaurir e exasperar,

 

enquanto sigo

a cor

e, de mim para mim,

pressinto, em cada esquina,

a lancinação

 

dos cães a apodrecer.

 

Como os suporto,

como me contenho

de lhes ladrar também

enquanto se ilumina a montra do talhante

e, sobre a carne,

o cutelo se abate

para a deflagração?

 

Que crime estabeleço

para pôr no que faço

o que me fazem os cães

da ignomínia

 

–  se não consigo,

na insustentável máquina das cores,

fazer vibrar no escuro,

a dor,

eficazmente?

 

Ah, a vida:

se aqui cheguei,

que insígnias escolho

para a confrontação

com a sangueira que corre

pela estrada?

 

A escuridão do roxo,

servirá?

 

Será que a carne admite

a transmutação de cada pincelada

de modo a que se veja,

e a que se sinta,

a putrefacção?

 

Ou é preferível usar

este tom violáceo

que nas cerdas se amontoa

e faz com que na boca

cresça a aguadilha do meu nojo?

 

Este vermelho,

 

figurará no quadro

o âmago da alma

e o horror nos tímpanos

com que a arrogância

se expande na cidade,

enquanto a fúria dos cães nos amedronta?

 

Os cães,

essa corda de cães

martirizados,

a ganir ao vento

e a lamber as feridas gangrenadas

 

–  como posso

acirrar-lhes o fogo

e acossá-los?

 

No osso inciso,

na grande obra incompleta,

sou uma válvula de vácuo

e um transístor,

a desfragmentação

e o cromatismo

que resiste à vileza

e vê no crime

o imparável modo de estar vivo,

a aprofundar a refrega dos subúrbios,

como arte,

dissipação,

incandescência.

 

E os ferros progridem

sobre a minha cabeça,

e não creio

 

– quem sou já pouco importa

porque os cães estão em todo o lado,

e devoram as casas,

e sobem aos telhados para devorar

os livros,

e, nas jaulas,

amontoam cadáveres,

instantes peregrinos

com cabeça de rádio

e desorbitados olhos

pelo terror do urânio,

as múltiplas engrenagens.

 

Vacilo, eu?

 

Hesito e não hesito

neste páramo de ódios

e incertezas pútridas,

cósmicas,

telúricas

pelos dentes acerados

da matilha?

 

Como não basta pôr termo

às mortes assassinas,

sob o empaste?

 

Circulo,

envilecido,

na proximidade das morgues

e a matéria do mundo

 

–  cadaverosa,

a tinta.

 

Mas há um escalpelo

sobre a mesa

e, onde durmo,

um sonho extravagante,

revestido a ouro,

que pulsa na agonia.

 

E não quero nada intacto,

 

e dou uso

ao branco e ao verde

para que a luminosidade mostre

o esplendor da nudez,

e o óleo arda,

e a sagração amplie

os contornos da dor que, sobre os corpos,

reluz,

torcionariamente.

 

Ah, os cães:

 

essa corda de cães ajoelhados

com o ódio a vibrar

nas suas línguas pútridas,

a ganir ao relento

e a lamber as feridas gangrenadas.

 

Eles e eu,

numa acareação

de maldição e praga,

onde os gritos são o silêncio vasto

das lágrimas dispersas

pelas coisas:

 

uma grade,

um elefante que atravessa a noite,

um sinal da exterminação,

os uivos que se escutam

de Berlim a Londres,

a crucificação,

 

o sangue da chacina,

as cores da abstracção.

 

Eles e eu,

numa acareação

em que não há metamorfose

e tudo é a terra desolada da infância

onde correm cavalos

degolados

e as três graças

estão cegas,

surdas,

e em silêncio

 

como se já tivesse vindo o apocalipse

e os cães tivessem derrubado os cavaleiros

para sempre.

 

Ah, os cães,

eles e eu:

essa corda de cães

a ganir ao relento

e a lamber as feridas gangrenadas.

Doze Cantos do Mundo, 2009


MARK ROTHKO: NUMBER 207- RED OVER DARK BLUE ON DARK GRAY (1961)

 

Não sei o que há entre Dvisnsk

e Nova Iorque,

 

e mesmo que soubesse

proporia que tudo fosse silenciado,

 

que nada se dissesse,

 

e só o avassalador silêncio

pudesse dizer quem fui e o que fiz.

 

As palavras enredam-nos em armadilhas

mortais

e nada há mais mortal

que a vida,

 

por isso,

as minhas telas

são o silêncio que são,

 

onde as cores se demoram

para que a exaltação do silêncio

permaneça e se guarde

 

e só quem as contemple reconheça

o que lá está:

 

a dor,

o sofrimento,

a vida em estado puro.

 

Se alguma coisa tenho para dizer,

direi, apenas, que há emoções

desconhecidas no que faço,

 

e que é pela claridade que confronto

o público

com as telas

 

que, com elas,

deve gritar e chorar,

porque foi exactamente aos gritos e a chorar

que as pintei,

 

rangendo os dentes

e insuflando-lhes vida.

 

Vejam:

 

alio este vermelho a este azul,

 

as cores conjugam-se,

mesmo repelindo-se,

 

e, olhando bem,

não é só o vermelho e o azul o que se vê,

aqui, em frente à tela,

mas tudo o que nos toca o coração,

 

e se encontra latente na memória

 

e, pelo confronto,

chega.

 

O azul, por exemplo:

 

sente-se que oscila,

 

sente-se que nos leva para trás,

sente-se que nos arrasta pela nuca

 

e nos coloca

perante obsessões

que nos envenenam.

 

E, levando-nos para trás,

os nossos olhos fecham-se,

 

e entramos num quarto muito escuro,

e, no escuro, reconhecemos

o azul do brilho de uma lâmina,

 

e os nossos dedos,

azuis,

tocam a lâmina,

e a lâmina,

azul néon e mate,

impele-nos a confrontar a morte,

 

até que não podemos mais

e, a correr, saímos.

 

E o vermelho

 

– é, tão-só, vermelho,

 

ou atrai-nos para um poço?

 

O poço é escarlate,

 

e escarlate sendo, o que se vê?

 

Uma mulher deitada numa cama,

com um roupão vermelho,

 

e as unhas pintadas de vermelho,

 

e a boca vermelha,

 

e a cabeça caída sobre uma almofada,

também vermelha,

 

de um vermelho vivo,

tão brilhante,

 

que sabemos

que há um crime oculto no vermelho

que nós observámos na infância.

 

Vejamos o conjunto:

 

o azul está por baixo e, por cima,

o vermelho primário a transformar-se

em lábios,

corais,

crepúsculos,

 

e um sortilégio avassalador

que nos leva a um monte com um túnel.

 

Atravessando o túnel

vemos as cidades,

e, por cima das cidades,

o demónio,

 

e o demónio blasfema,

 

e lembra-nos a indiferença

com que os nossos pais nos abandonaram,

 

e é medonha a noite,

e é medonha a sensação de termos sido

abandonados.

 

No fim, há só silêncio.

 

Mas o milagre já aconteceu,

 

já cada um de nós foi confrontado

com o que não queria ver

pela selvajaria da serenidade

 

e pode, depois disso,

voltar para casa.

 

De novo vem a nós

o silêncio:

 

estamos em casa

e as cores, de tão amenas,

são já frenéticas,

 

e os nossos dedos rasgam-nos

a carne,

e supliciamos o corpo,

 

e percebemos que há pouco sentido

na vida que levamos.

 

Tem cor a nossa vida?

 

E a resposta chega-nos,

certeira e inequívoca,

enquanto nos lembramos

dos gritos e do choro

que, em frente ao quadro,

produzimos,

 

e da força que há na nossa natureza,

 

e dos milagres possíveis

que em cada coisa há.

 

Coube-nos viver num tempo de assassinos,

mas é a claridade que almejamos,

 

não a que veio ao quadro convocar-nos,

mas a que, pelo poder da pintura,

se instala em nós,

a modular a noite

e a apaziguar-nos.

 

É essa claridade que procuro,

– e o silêncio.

 

O silêncio das cores e o seu apelo

irrevogável,

 

de que nada há a temer,

mesmo que atemorize.

 

A vida é isso mesmo:

 

o medo à nossa frente,

imóvel como a esfinge,

 

e nós sempre a enfrentá-lo,

 

transparentes,

aflitos,

condenados,

 

mas prontos para ver

 

as cores do infinito.

Doze Cantos do Mundo, 2009


O ANO DA MORTE DE JOSÉ SARAMAGO

 

Não se desfloram capões no sânscrito do dia,

seja a questão columbófila o supremo fenómeno

ou haja umas escadas a subir para o lado poeta

dessa cidade perdida, agora entregue às lojas chinesas,

onde nenhuma aurora há

 

A esta hora, nem rodas de fogo se avistam para lá dos pilotos da barra,

onde à sombra do farol escarlate o mundo se acabava,

postos os barcos no rio por um sável errante

ou uma agitação convulsiva de enguias e lampreias

 

Onde ontem fomos meninos e havia pombos anilhados,

onde as formações dos astros palpitavam sobre as ruas escuras,

onde tu e eu fomos descalços à loja do homem careca para cortar o cabelo

e havia laranjas a rolar pelo chão, deixamos hoje de ter corpo

porque o nosso exílio durou demasiado e nem sombras há

dessas mulheres inauditas que apareciam à nossa frente

e nos tomavam de loucura, a ponto de partirmos

os candeeiros da rua

 

E assim também com os pombos aconteceu,

e aos seus pombais, e às agremiações

onde dançámos ao som do ululante discurso em vigor,

ao som do vento nas árvores, a zurzir as garrafas de gás

e as grinaldas de flores entrançadas nos tabiques

onde os pombos alçavam os seus voos sobre o espírito

que ensandeceu a nossa juventude, ali para os lados da praia

de Miragaia ou da Cantareira, onde todos os universos eram livor

e cinza empedernida

 

Depois da morte não há quem leia Herberto Helder,

o coração dos mortos não recebe a chapa do luar que no rio recai,

o homem do leme exaure-se e nada acontece nos seus olhos de pedra,

nem o mar é o mar, visto desta distância em que os filhos partiram

para um refugo de vida que não sabe como se contrafazer na erosão,

nem de poesia sabe, ou de poemas, ou de pássaros, ou de penas,

esgarçado que foi o azul das interrogações do mundo,

ainda que pese o seu feroz aspecto,

essa dura ravina

 

Aqui, a cento e vinte e cinco quilómetros do Porto,

onde as pedras sitiam os livros de poesia e um mercador

não deve abalançar-se ao território do poema sem que se faça clandestino,

onde as redes do rio são outras e malsãs, adquiriram novas mutações

os pombos, que se transformaram em ratos,

no desatado sol da província exangue,

a ver-nos homens feitos, substantivos, apenas,

se ouvimos sonatas para violoncelo

e primavera

 

E assim é que emudeceu o céu e voaram as aves,

e tudo há-de ser dito não mais que no passado,

a rolar nas fragas de um cruel desconsolo,

porque o que há a carpir não se coloca como assunto urgente, refrega improtelável,

mas só transe estatístico,  questão de somenos, sejam versos a ter como lidos

ou escritos, ou pombos em seus pombais parados e vertiginosos

 

Houve, já não há, um problema candente

entre poetas e columbófilos, entre pombos e pombas, entre poemas,

quando éramos jovens e nada sabíamos de todas as coisas

e todas as coisas sabíamos do que havia no mundo, enquanto uns outros jantavam

com as pistolas em cima da mesa e denunciavam os vizinhos por uma ou outra palavra

fora da boca, e estavam as caves cheias desse torpor de incandescência

que nos punha a olhar os voos – mas decididamente fomos crismados,

e vieram os chineses ocupar os nossos tesouros mirabolantes,

as nossas chagas

 

E fechou-se o edifício da Alfândega,

e foi a Cantareira uma refrega adiada,

e a Fonte da Colher passou a ser menos que uma referência desses dias

em que a hortaliça tolhia os meus passos pequenos

nas íngremes escadas que iam dar à rua do Monte dos Judeus

onde ardiam os limoeiros da Dona Adélia

e a minha avó Esmeralda consentia em dar à voz de Deus

uma tintura hodierna, fatal como o destino,

mas ainda assim pacífica,

como uma doce rolinha

 

Contudo, o dilema desfez-se, o diletantismo corroborou

as opções da vizinhança, e sabe-se o que acontece quando o teor

democratizante nivela as coisas por baixo,

vão-se nas cheias os efeitos das enchentes,

os porcos flutuam,

caminham sobre a águas,

e fica suja a pomba de Picasso,

indefectivelmente suja no transe contemporâneo que se apropria de tudo,

os paroxismos das multidões em júbilo,

o posto de trabalho das costureiras,

o salário dos que punham nas minas

os seus bicos de luz e acetileno,

à espera de dias melhores e melhor paga

 

Sou do tempo dos bailes da Sociedade Recreativa

e das largadas de pombos sobre as praças,

a menina nua da avenida dos Aliados permanece no seu posto fulgurante

circunscrito por pombas de outros mundos,

mas nada do que foi vigora agora no entreacto universal,

essa miríade deflagrou em morte desagregadora

e as lojas chinesas ocuparam o seu centro

 

E não é que eu seja xenófobo, mas um poeta

vê-se em palpos de aranha quando as centrais financeiras

expatriam cidadãos, em desabono da verdade,

obscura que seja, e ainda que haja  poemas que se gerem em desgosto

– é incerta esta agonia abrangente, este modo ingente

de subsistir na velha tribuna em que os homens têm voz

 

Pombos, poetas, columbófilos, versos – os homicidas

extravasam as regras instituídas, hão-de querer matar

cada um destes sobreviventes, hão-de afundar-nos

na catástrofe da aurora, em que nenhum arbusto pega

de estaca, nenhum modelo de barro sucede ao exemplo

da argila que chora, esse almagre semovente que tem o nosso rosto,

esses fantasmas que somos, a empreender a dança da carne como uma primícia prenunciadora, as belas sentadas nos limites da sala,

já nessa altura, connosco em simultâneo, insuspeitadamente europeias,

à espera que a música começasse e tudo fizesse estremecer

 

Mal de nós que somos irmãos enquanto filhos únicos que fomos,

o desaguisado quotidiano levou-nos aos livros do início

com a imprecaução dos poemas, os versos não existem,

tal como as pombas e os pombos não existem,

e só por intuição e prática poderão ser gerados,

gerados, não criados, exactamente como aconteceu com Deus no início

do mundo, se mundo é isto a que chamamos mundo,

onde agora me vejo, cosido de sombras

 

Ah, dancemos juntos, dancemos enlaçados,

o tesão violento de uns e outros há-de manchar cambraias finas,

há-de sujar as calças de ganga, as reputações, os exemplos do devir,

as pulsões da testosterona e dos esterogénios, as sequências

da cerimónia do crisma –  vão à tua cabeça e põem-lhe óleos sagrados

para que sejas reconhecido entre os escolhidos,

embora se não saiba se serás o eleito,

acompanhado que ficas do Espírito Santo, as regras do regime,

a vigilância da polícia política

 

A desgraça de um país mede-se na distância que vai das instâncias do poder

à esperança dos seus habitantes, o deserto especializa-se quando a crise

se amplia, chegam os usurpadores e o equilíbrio das emoções descontrola-se,

a ciência columbófila ressente-se por esse condicionamento,

eiva-se de sinecuras e compadrios,

especializa-se em apreciações,

distingue-se entre os méritos e os desméritos

por simonia,

favorecimentos,

invejas comezinhas

 

E é então que a saudade se expande como palavra portuguesa

e eu volto à infância, enquanto tu, Dempster das Irlandas que não há,

revives e oficias o K3 dessa Guiné repulsiva para que o fascismo te mandou,

como se houvesse uma nova crónica do descobrimento e conquista da Guiné a ampliar

a que o Zurara escreveu, e nada se cria ou se perde, e tudo se transforma,

como a antiga lei nos disse, e de versos se inça o exílio que jamais projectamos

e, sem mais, o acaso da vida, pelo seu ábaco infeliz, nos ordenou –

e sabemos que os poemas sujam tudo,

tal como os pombos, as pombas, os ratos, os pais que nos traíram,

e todos os que traíam as infâncias que, como as nossas,

foram vividas a golpes de marcas nos costados pela sovas iníquas

que nos deram

 

Falemos de exemplares vivos e pios de aves,

o centro da cidade é uma loja chinesa na ordem geral do mundo,

nós estamos a viver algures entre a rua Formosa e a rua da Paz

e o dia de hoje, claro como há muitos dias não havia, enche-se de sombras,

e eis que acabam de bater as doze e quarenta e cinco e morre, em Lanzarote,

José Saramago, tão pombo como nós na refrega das coisas que nos escapam

entre os dedos como se não fossem mais que jangadas de pedra onde nenhum

ente divino se senta à nossa mesa por um café – falemos

da inexprimível solidão dos poetas, esse luto

 

Vejo-me como um homem calado, vejo assim os poetas,

vemo-nos como homens calados que não podem estar calados,

ou que estão cegos e não podem estar cegos,

ou que não podem deixar de deambular na cidade,

porque há uma pedra a levantar do chão,

um povo a levantar,

uma infância a levantar

 

É, foi na infância que o descontrolo se arrostou,

aquele odor a sal e a vinagre palpita ainda no meu cérebro,

ligamo-nos assim à terra, a olhar o interior das mercearias,

dos pomares,

a surpreender a alegria que se faz pela interposição do silêncio

com as palavras vitais, o rego de sangue que se abriu

na via do caramanchão quando ficou determinado o lugar das alucinações

e se abriu a porta para um determinado ponto da cidade,

esse mesmo onde caímos pela primeira vez

 

O que lá está é nosso e não nos pertence nunca, o olhar

deslumbra-se por esses cavalos, essa estátua, esses pombos,

provera a Deus e seríamos meninos para sempre com essa brisa no rosto,

os barcos estão cheios de carvão, discorrem sobre eles as mulheres

que pelas tábuas passam e carregam à cabeça largos cestos de vime,

e é como se fossem podoas a escandir o ar, como se fossem

a nossa misericórdia irremissível

 

Depois a tarde alonga-se, vem a noite, e as mulheres repartem-se

pelas inúmeras tabernas das suas circunstâncias,

bebem à nossa memória, e nós permanecemos transidos

nesse desvendamento,

atrás de nós está o Jardim da Cordoaria, está o António Nobre com uma camisola

de pescador e uma Bíblia sob a cabeça, está o Raul Brandão na pedra do lume

como uma árvore sem poda, estão as putas, está a árvore da forca,

está a nossa vontade férrea pelo eterno, está o Hospital de Santo António

onde a minha avó morrerá de uma cirrose,

está Caim, estão os pássaros, a celebrada cadeira do nosso barbeiro comum,

aqueles frascos alinhados nos seus torpores azuis e verdes, e grenás, e roxos,

está a Foz Velha, onde tu, Nuno, como eu, não muito longe de ti,

aprendeste o desusado rumor dos versos,

essa penumbra

 

E estão os pombos, as pombas, as velhas clarabóias dos telhados antigos,

está o burgo a ensinar-nos a desfiar as penas, esta torre barroca criou-nos assim

para que tivéssemos fome de tudo, e fôssemos ao baile da Sociedade Recreativa Columbófila dançar todas as tardes, e uma certa menina casadoira nos negasse

a fímbria do seu lenço, enquanto arremetia sobre nós o seu ventre casto,

e eu e ela vibrássemos por fim

 

Nem com o mundo nem com a divindade alguma vez contamos,

não sabemos de onde vem a convicção dos versos, é de lonjura

que se faz a angústia, são estas horas da tarde desta tarde de Junho

e o tudo e o nada desencadeiam o acaso, e a Cantareira emerge

do toque cibernético, avultam esses brilhos no cabedelo,

e as aves vão connosco, não somos nós que vamos com as aves

 

E vou contigo, Nuno, à cata de pardais e mexilhões, onde começa o tempo,

sobre as primeiras palmeiras do Passeio Alegre, pelos bosques, as vielas,

a saber que o meu vizinho, que é criador de pombos, é um prosélito feroz

da polícia política, e nada há a fazer enquanto o regime não apodrecer de vez,

a tomar por certo o meu amor do exílio em que hei-de morrer,

sem mais, um dia destes

 

Pungente e fanado o espírito do lugar desponta mal, agora

–  no nosso tempo ainda se chamuscavam as navalhas,

ainda se ia à bruxa das águas-furtadas ou das caves esconsas,

ainda havia a Micas Bombas a ir ao cemitério de Agramonte

buscar óleo de morto para que crescesse o cabelo,

ainda havia passarinheiros e sardinhas assadas nos carris das vagonetes

do largo da Alfândega, ainda havia um túnel onde os comboios passavam

em frente das agências de navegação que já não há, talvez,

e onde, tantas vezes, fui validar conhecimentos de embarque e resolver emolumentos,

enquanto o Saramago via o seu avô Jerónimo a abraçar-se às árvores para morrer, naquele tempo, e estava a minha mãe a debruçar-se sobre as escadas

com as mãos tingidas pelo sabão amarelo, não havia nada no deserto da rua

e o comboio irrompia do túnel,

e um fumo espesso cingia-nos como num sonho,

ficávamos nessa nuvem como se estivéssemos no limbo

 

Deve ter sido por aí que perdi o rastro aos meus, fitava os pombos,

cingia um deles ao exíguo território do meu peito

e não via como o estava a asfixiar, não via que não era

um coelhinho branco dentro de uma caixa de sapatos,

não via como faltava, apenas,

que a Cacilda cantasse sobre os ocres telhados dos armazéns envolventes

e o meu tio não fosse tão rico pelo negócio da sucata e a desusada indiferença

pelos sobrinhos, e não fosse a minha cidade um prognóstico cinéreo

que me desabalaria

 

Verdade seja dita, a Cacilda vendia hortaliças e detestava os pombos,

não tinha a ver com as mulheres do carvão, mas detestava os pombos,

aí, nesse centro da infância, não tem o céu a ver com a montanha, por estranho

que pareça, as meninas pressupunham o baile silencioso

da Sociedade Columbófila de modo a que eu não esquecesse o preço

que custa um livro,  que custa um verso, que custa a insolência

de questionar o mundo, não para que nos ouçam ou leiam,

mas nos ouçam ou leiam as nossas mortes,

os nossos mortos,

nec spe nec metu,

esse latim,

enquanto as carvoeiras arrostam com todo o peso do mundo,

inexistentes já,

no rio dourado

 

E agora escrevo, e não tem isto que ver com o amor,

o que seja o amor

– o bando sobrevoa os telhados,

o columbófilo faz a dramaturgia dos pombos,

acena-lhes panos para que reconheçam o ninho,

mostra-lhes o columbário,

abre-lhes o caminho aéreo para o pombal,

pousa com fragor a pistola no tampo da mesa

e mata-nos por antecipação porque é bovino o povo,

há-de deixar-se ir tempo demais na miséria,

repartindo-se pelas múltiplas partes da sua própria diáspora,

vão uns para a guerra, outros para a emigração,

aos que ficam nada mais restará que esperar

e tudo ficará escalavrado como dantes,

tudo será decisivo como termos aqui estado

 

Cacilda, se isto é amor é uma transmudação peculiar,

tornando-se o amador na coisa amada

sem mais nenhum mistério,

mas algum espírito invasor há-de denunciar-nos,

marcar-nos para toda a vida

– eu detestava a verdura sobre a qual trabalhavas,

não foi esse o meu Paraíso,

mas só a proximidade do Palácio das Sereias,

de onde me acena na infância uma mulher,

não sei se uma monja,

se uma personagem de Camilo,

talvez a Teresa Albuquerque do Amor de Perdição,

talvez a Mariana

 

E assim somos, voláteis e terrenos, enche-se a cidade

de lojas chinesas, envelhecemos a comer leitão e outras iguarias

de igual monta, precipitamo-nos neste inferno capital – o verso –,

lembramos o homem de Moimenta que ao volante do automóvel branco

conduz já morto para a estrada de Burgos,

o esquecido Vanni Fucci que a hiena de Dante eternizou

na cova respectiva,

e estamos entendidos,

estamos absolutamente desentendidos,

enquanto um de nós morre,

próximo de um vulcão chamado Timanfaya,

e tudo são exéquias à nossa volta, mortos que estamos

neste presente de lojas chinesas preocupantemente sinistras na cidade,

entre um ensaio sobre a cegueira

e outro sobre a lucidez,

entre a velha questão de ser e de não ser

ou náufragos,

ou afogados,

ou o que seja

 

(Ah, sobrevoar de novo o destino

em que não há destino, além da sombra

do que é divino e sempre nos persegue,

subir além do firmamento,

ter uma alma que espera uma palavra,

não ser mais que um pombo-correio sobre o mar)

 

E mais escadas se sobem no atrito de as subir

–  vem-se ao mundo por uma pomba inexistente,

a terra pede aos poetas o sémen pelo chão,

atrevemo-nos, sem mais, ao desafio,

e o mais são imprecações,

Deus caído na estrada,

e depois há essa corja que retira aos contemporâneos

a pouca vida que têm,

porque já nem a outra vida compensa, agora,

posto que está o epitáfio sem palavras sobre a tumba

dos que cuidam dos versos como se fossem pombos

e de tudo se morre,

de exílio,

de pátria,

de vida,

de boçalidade

 

Noé ia na arca e viu as águas cordiais após tanta tormenta,

abriu o portaló à ave disponível

e veio ela com o ramo de oliveira suspensa do bico,

e mais não fez do que inventar o vinho

para se esquecer dos assassínios de Deus,

há uma crença hoje que nos mente sobre a paz,

passa das marcas esse desengano e esse vazio,

aqui, na Sociedade Recreativa Columbófila,

com sócios aguerridos e torneios decisivos,

míticos e místicos,

com a arcaica pomba

 

Vamos pela cidade e todos estão mortos,

morreram uns por inanidade,

outros por decepção,

outros por fantasia,

outros porque preferiram suicidar-se a suportar isto

– só a menina nua da avenida dos Aliados

sorri com os braços apoiados num plinto

de cujas faces quatro mascarões lançam água para um tanque,

vejo-a há cinquenta e sete anos como se visse um sonho,

estarei morto e será ela, ainda, o meu fascínio

 

Esta é a juventude perene,

a que nenhuma neve cede às prerrogativas do tempo

e que eu, em menino, quis entrever para sempre,

a crença firme deveria poder reduzir-se

a outro teor, exaurindo-se do que avulta em injustiça no embaraço

de pregar aos peixes, como se a abutres fosse,

em vez de a homens,

com rostos semelhantes ao nosso semelhante,

nas intransponíveis perguntas para que não há resposta

 

Daí que todas as perguntas tenham sentido e não façam sentido

nenhum, unem-se os raros e os ternos, a luz solidifica,

todos os confrontos explodem em outras recriminações,

as cidades passam, passam as acareações,

passa a desolação para que outra desolação se apreste

na cidade,

mas ninguém, morto que esteja, lê Herberto Helder,

como há muito sabemos,

enquanto a fulminação da infância é uma desventura

e é uma desvantagem escrever versos que ninguém há-de ler,

ou só mesmo pensar em escrevê-los

 

Adianta pouco esta roda de comprazimento,

caímos uma primeira vez e uma segunda vez iremos cair,

e logo uma terceira vez caímos,

mas morreremos, como sempre, na praia,

como sempre morremos ao percorrer a passadeira devagar,

entre uma loja chinesa e outra loja chinesa,

entre um e outro descaminho,

um descaminho de atropelamento,

e fuga,

e nada mais,

nada mais no horizonte da menina nua da avenida dos Aliados

 

Tudo é avulso, tudo é repulsivo,

calha-nos ensandecer cedo demais,

bastaria que a Cacilda erguesse a voz uma única vez

e logo nos lembraríamos como em ciclos pesados se completa a vida,

como em atavios humildes se perfaz a banca dos legumes

enquanto uns morrem longe,

outros mais perto de nós,

e o nosso coração não aguenta,

e já não canta ninguém nas escadas da rua Monte dos Judeus,

e ninguém tem memória de quem foi a Micas Bombas,

crespos cabelos varridos pelos degraus empastados de óleo de morto,

Blimunda que vê como somos,

mas só por fora,

porque basta o que basta

para nos entristecermos

 

Ontem vi a nossa cidade como se não fosse minha,

escavou-se-me uma tristeza ampla nas meninges,

ia a rapariga comigo, a pretexto da arte e da natureza dos versos,

e eu vi-me como sempre me vi,

mais um estrangeiro no cenário familiar,

nem a minha casa fui,

nem entrei nos socalcos do rio,

só a memória explode em ocasiões assim,

em que rostos desconhecidos nos sorriem

e não sabemos o que fazer a tanto desespero,

estava o Nuno sob os plátanos a ser feliz

por alguns instantes possíveis,

alguns instantes irremediáveis,

nas remanescentes Irlandas da lezíria

 

Depois, refugiei-me num mutismo ensurdecedor,

o caminho para o exílio é longo de cento e vinte cinco quilómetros,

entre o Porto e Viseu vai um prodígio de verdura,

mas eu sei como a hortaliça tolhe os meus passos pequenos,

a couve roxa prejudica os meus sentidos, o tomilho, os repolhos, o alho-porro,

eu só sei que a melancia tem coração

e nada mais sei de mim,

sob os avulsos versos

 

Há uma zona em que o leito do rio está seco,

e vejo-te, Nuno, com a pá de madeira à procura

de crustáceos e moluscos, tens umas calças compridas,

estou eu de calções, e enchemos o olhar de búzios miúdos,

com espirais de madrepérola, reúne-se a magia ao real

e é essa a surpresa, poder no lodo descobrir centelhas

de diamante, e guardá-las nos bolsos

– dividimos o saque sob as copas das árvores, o que temos

retalha-se em ínfimos fragmentos, nem saque é, mas espólio

onde se incrustam feitiços, palavras, só palavras e resquícios de memória

sob a linha de guindastes na barra de Leixões,

os jacarandás em flor no horizonte,

a crista de clarabóias a sitiar a cidade,

acrescentando-a,

tomando o ar odores a baunilha e a hulha,

a sangue derramado,

a menarcas de mar

 

Podemos geminar poemas e pombos-correios,

mas tanto há-de valer esse júbilo como uma viola

num enterro, o presidente, entretanto morto, da Sociedade Recreativa Columbófila

era da polícia política, entretanto morta,

mas a cidade está cheia de lojas chinesas e eu sinto-me mal no meu país,

sinto-me mal,

a esta hora só as mulheres permanecem com os cestos à cabeça

a carregar carvão nos barcos da distância da minha memória

e não há como chorar enquanto se trabalha,

não faz sentido isso,

com certeza despedem-nos

e nem com trabalho ficamos no trabalho que não temos,

nem sei se a Cacilda ainda vive, ainda perdura

no âmago das ruas,

ela a cantar no pomar,

e eu, na infância, a perturbar-me no baile,

a progredir para a velhice sem nunca deixar de ser criança

 

Hoje são as exéquias do José Saramago,

não falta o trânsito dos corvos na câmara ardente,

mas em três dias tudo estará esquecido,

as cinzas semeadas não frutificarão,

ponham-nas ou não sob oliveira ressequida

na Azinhaga do Ribatejo, em frente à Biblioteca,

ou em Lanzarote, sob o vulcão

– umas oliveiras nascem,

outras morrem,

outras estão a permanecer mais um dia,

mais uma noite,

mais uma derrogação

para que as cinzas fiquem agora decididamente em Lisboa

e às barcas seja permitido flutuar

por uma vez, as barcas novas do Tejo

e do texto de João Zorro,

Ai, mia senhor velida!

 

Isolados dos ruídos do mundo,

os bons e os maus aí estão

para a penha da glória,

seguimos essa espiral,

mas estão os dados lançados já antes de os lançarmos,

estão os poemas incisos na pele de quem mais nada pode,

e segue a rapariga a meu lado, abismada,

a ilustrar o trajecto,

chegou há pouco de Estocolmo e infere uma prevalência de abetos

que não é possível explicar,

mais nada pode que reclamar da frieza das cidades do norte,

tão iguais a esta que nos pertence,

dela proscritos,

mas em que há uma torre de cinzentos

torrenciais que espera por nós,

que sempre há-de esperar por nós

 

Do pouco que sabe do que seja a vida

não sabe da melancolia, a rapariga,

tem uma caixa de lápis de cor,

olhos azuis,

madeixas incandescentes no cabelo,

e o mistério da arte,

o único predomínio que nos salva,

e há-de exaurir-se da infância a desenhar animais,

tudo leões e tigres, em vez de pombos e pombas,

o urso a preto e branco na constelação do grafite

– eu, cada vez mais pesado,

cada vez mais desiludido,

as árvores a definhar sem mais apelo,

a viagem do elefante a completar-se,

o desvario ainda por cumprir-se

por lojas chinesas e asfixia,

e gente à míngua,

como versos impronunciáveis

 

Melhor seria que não houvesse cinzas,

que dos livros só restasse o volume das páginas,

mas todas em branco,

todas imaculadamente brancas,

sob a acção magnânima de um vento poderoso,

um vento que tudo varresse na pátria pesarosa,

amarga,

padecente,

hipócrita,

desolada

 

Mas todos nós somos cinzas,

há as cinzas de Gramsci,

as cinzas de Pasolini,

diversamente rossi, due gerani

agora as de José Saramago,

não tardarão por aí as nossas,

mortos que estamos neste país de luto,

um luto fundo, intenso, cerrado

como o de todos os órfãos e de todas as viúvas,

como o de todos os poetas e de todos os poemas,

cada qual a perder frescura no ano da nossa morte,

cada qual a gastar o tempo e a vida

 

E depois os espartanos e os atenienses estão em guerra,

e Sófocles morre,

e Lisandro obedece ao deus do teatro do seu sonho

e manda que a guerra pare,

que os exércitos abram alas

e deponham o lamento e a vénia

sobre o cortejo lúgubre,

e o louvor reproduz-se,

as clâmides agrupam-se sobre o solo grego,

os guerreiros suspendem-se no tempo

e deixam-nos o usufruto do que nos deixou dito

Sófocles,

a ignorância é um mal invencível

 

Talvez seja isso a eternidade,

um criador morrer e pararem-se as guerras

para que a celebração do poema seja vital,

e todas as lanças ardam,

e todos os escudos,

e se incendeie o poema como nenhuma vez ardeu,

e o descanso dos poetas seja eterno,

e não se dê descanso ao que quer que seja,

haja sensualidade em tudo o que fazemos

e o desejo redime-nos de tanto torvo olhar,

tantos Goebbels consuetudinários,

tanta desonra

 

Não sei quem venha a ser rapariga de que falo,

com a caixa de tintas

que provavelmente comprou numa loja chinesa do centro da cidade,

mas vejo-a a acalentar o desejo de que dos papéis e das telas

se soltem  as figuras que giza,

a contrapor o indomável à insânia,

a arte à abominação,

a alegria à inércia

 

Tão pouco sei de mim neste ofício fúnebre

onde estou eu, o Nuno e o José Saramago em câmara ardente,

como, afinal, há tanto tempo estamos,

a ver o povo a contorcer-se de dores

por vuvuzelas e facas

– nisto não progredi, apenas sei que nada sei,

enquanto bebo a cicuta

e Asclépio, o deus da saúde,

recebe o capão prometido,

o galo que três vezes cantou no meu ouvido

e eu não soube, ou não quis, ou não pude ouvir

porque do templo não ficará pedra sobre pedra

e eu, do Baptista, só a cabeça tenho,

e um ventrículo esquerdo atormentado

 

Cacilda, numa noite de finais de cinquenta

veio uma sombra ao pomar, ela estava

a arrumar uns caixotes, dizem, não deu pelo estranho

na loja, não se sabe se aquilo foi roubo

ou crime passional, de manhã só lá estava um corpo estraçalhado,

havia sangue por todos os lados, a medida dos alqueires,

a balança de pratos, o mostrador do relógio com os ponteiros

fosforescentes, as hortaliças, a cabeça a pender

sobre o colo, como a de uma pomba derrubada

–  depois foi só silêncio inarticulado, eu ia pela mão

de alguém quando passámos por lá,

crescia o burburinho, havia o estrupido atroz de uma ambulância,

passou uma maca a levitar sobre nós,

e desatei a chorar, foi ali mesmo que perdi a inocência,

amava secretamente aquela mulher de olhos verdes

e era o meu amor infantil, para que me calasse

deram-me uma gaiola de vime onde um grilo pontuava,

estava a folha de alface ensanguentada,

jamais cantou, o grilo,

mas permanece comigo como uma carga de contrabando

 

Ah, perdoe-me, Nuno, tê-lo morto tão cedo,

não deve morrer um poeta sem que outros o acompanhem,

e nós ainda viveremos uns instantes mais do que as doze e quarenta e cinco

deste dia de Junho –  era eu criança e procurava em vão

a tumba de um irmão,

e uma pedra bastou para me serenar a angústia,

ainda que do meu irmão nunca mais soubesse,

nem de minha mãe,

a quem beijei pela última vez a notar-lhe um ferimento no rosto,

um ferimento que só a terra cicatrizará,

uma terra compacta para tantos cães,

uma cicatriz igual à que tenho na alma,

se alma é o que na minha cicatriz se incrustou

 

Não, não se desfloram capões no sânscrito do dia,

se a questão é de pombos, tudo está mal, agora,

povoou-se a cidade dessa rataria

e custa a um poeta ver isso e nisso se transcender,

sabendo-se que são as palavras arpões exíguos

para os polvos vigentes,

venham eles da Europa, da América, de Singapura, da China,

das centrais financeiras que falam a língua incomum do domínio e do opróbrio,

de Bruxelas, de Berlim, de Wall Street, quem sabe se de Moscovo,

da globalização emergente,

como se não fosse global a humanidade desde o paleolítico,

nem global a dor,

nem a cada cinco segundos não morresse de fome

uma criança

 

Vi-me na infância,

a infância é um comboio de janelas largas onde tudo se vê,

vi o povo em terceira classe vestido de negro

no tempo do fascismo a partir para França,

a partir para as Áfricas,

vejo-o agora nas estações

e nos centros comerciais,

taciturno,

sem remédio,

a desesperar por um rebuçado da Régua,

uma fatia de doce da Teixeira,

um copo de vinho,

uma solução de sol,

ao menos

 

E a mesma imagem persiste

– governa-nos uma desolação de alta finança,

rouba-nos à falsa fé a parte íntegra de nós,

fomos só trabalho

e cegamos, de repente,

e estávamos perpetuamente cegos,

e são já poucos os que possam inscrever no nosso memorial

a pedra com que tudo isto se faz,

o suor dispendido,

o denodo

 

Vamos a subir escadas e um grande património está perdido,

e os legumes apodrecem,

e a Cacilda não canta,

morreu a Micas Bombas há já alguns anos,

a nossa indecisa alma vacila como barcas ao vento,

como acossado voo de dakotas sem possibilidade de evasão,

sem subterfúgios de bunker,

sem K3 de que se avistem estrelas,

tanto mal se tem feito nesta terra que não há como saber

o que sejam as gárgulas profanas das nossas igrejas sacrossantas

 

A desagregação está a marcar-nos como povo, Nuno,

o povo acabará por resistir,

mas o povo faz coisas iníquas,

pode queimar-nos a casa num espavento de ódios,

pode escolher a sarjeta contra todas as expectativas,

pode acorrentar-se ao jugo da insipiência

e deixar por isso que se fechem escolas às centenas

e que se não trate de dirimir a injustiça de sempre

no campo,

nas cidades,

na pátria,

no planeta,

enquanto a feira dos capões está viva e se recomenda

e os Impérios aproveitam o sono dos vulcões que tanto tardam

a explodir

 

Pombos, pombas, alcachofras, acelgas, nabos, tomates, vagens,

de tudo há na feira de antiguidades,

o mal é esse, não se ter dado baixa nos armazéns dos legumes

de tudo quanto está podre,

continuando o baile a primazia da música alienante,

alienígena,

aqui,

onde todos ralham e todos têm razão,

e a fome, sub-repticiamente, alastra,

e a morte continua a matar,

por mais que se emocione,

como o Saramago quis,

por mais que deixe de nos escrever cartas de cor violeta,

por mais que escute connosco sonatas para violoncelo

e primavera,

por mais que se lancem passarolas no espaço para que a pátria se veja

num arremedo de esperança

–  está morto Bartolomeu Lourenço de Gusmão,

está morto César Marques dos Santos, o Menino de Oiro

sumido na barquilha do balão Lusitano

com José António Almeida e Belchior da Fonseca

no desconforme horizonte do cabedelo de 1903,

foram-se os três no ar quente pelo céu,

juntou-se uma multidão para a partida inequívoca,

eles não a olhavam, viam, apenas, o espaço

em frente, o céu, o mar, a agitação perpétua do mar,

e a nada acenavam, ainda hoje lá estão no espaço

a sorver a grandes haustos a imensidão,

presume-se que nus no epicentro do mar,

nem sequer mortos, nem sequer vivos,

apenas eternos veladores de um cabo do mundo,

está morta a Cacilda,

está morta a Micas Bombas com os seus prodígios capilares,

está o Saramago morto,

estamos todos mortos neste infame globo,

quanto mais mortos estivermos melhor nos escravizam

 

Ah, dancemos,

dancemos, ainda, irrevogavelmente,

soltemos uma gargalhada visceral sobre tudo isto,

registemos a infância como padrão do dia em que começamos a esperar,

porque quem espera, desespera,

e em todas as vielas há um anjo que espera

 

Eu era menino

e o de que melhor me lembro é da viela do Anjo,

onde o mundo é intacto,

se mundo é o que por lá se vê

– os anjos são a única metafísica em que acredito,

comam ou não comam chocolates,

ajudem, ou não, Caim na heresia benéfica,

tratem, ou não, de contrapor à espada de fogo

o fogo dos vaticínios

 

Os anjos somos nós no espavento de sermos,

isto sei eu que não sou um vencedor,

mas qualquer insignificância é valiosa,

qualquer migalha,

e se alguma transcendência há que seja essa,

a que dos anjos vem,

incorrigíveis

 

Viela do Anjo, rua Escura, Sé, Guindais, Miragaia, Monchique,

Boa Morte, Cantareira, Passeio Alegre, Lordelo, Foz Velha,

faço eu o trajecto para lá, vem o Nuno ao meu encontro,

e acabamos o percurso de cento e vinte e cinco quilómetros de exílio

– eu venho ao Porto, com passagem por Mateus e Almada,

onde, por esta mesma ordem, a aristocracia azul

e a aristocracia vermelha me feriram de morte,

nenhuma nobreza lhes entrevi, mas só sordidez e imbecilidade,

o Saramago vem de Lisboa, com passagem por Lanzarote e o Almonda,

com as suas campinas alagadas,

o Nuno vem de Viseu, onde tão bem notou que é o crucifixo

um punhal que se usa à cintura,

e fazemos uma grande fogueira disto tudo,

lume puxado a tudo o que seja comburente,

com excepção, talvez, de L’Osservatore Romano

que no Inferno arderá com maior jurisdição

 

Não tarda e é noite de São João,

celebremos o solstício,

vamos com Sófocles a caminho de Elêusis

a exaltar o poema,

a poesia,

a menina nua da avenida dos Aliados,

aquela que secretamente amamos

desde a mais tenra infância,

e todos os que como nós morreram

e são soldados desconhecidos

nesta batalha sem tréguas

em que só há fogueiras para saltar

e cinzas, depois,

a espalhar pelo vento

profícuo do universo.

O Ano da Morte de José Saramago, 2010


NOTAÇÕES PARA UM CALENDÁRIO PERPÉTUO

 

(para Pedro Casteleiro)

o que abala o vapor que passa, a sulcar as águas?

aquele que vai sonhando com a escuridão, como li em pavese (sognando il buio)?

outra dor mortal, que se fixou entre a décima e a décima-primeira vértebra?

alguma coisa que se perdeu nos confins da infância,

ou nos confins da infância dos nossos filhos?

este rumor que oscila no forro da casa e não sabemos

de onde veio, quem é e para onde vai?

a cor que nunca saberemos definir muito bem, a cor

que domina, entre o esmeralda e o negro asa-de-corvo?

o fim do mundo, sempre tão próximo e temido, ó contemporâneos?

o juízo final?

a certeza de não haver qualquer certeza, de djerba a padron?

o óbito que o médico há anos assinou no hospital de santa maria, de um homem

que jazia a meus pés quando se pensou que a minha nevrite era um ataque cardíaco?

a sábia mulher das castanhas, tão magra, que um dia me ofereceu num cartucho

a recordação do outono de 89 para toda a vida?

a fotografia da casa de espinho, com o cemitério em frente, que ángeles afirmou

ter visitado certa noite de luar?

a brigada da polícia que a mulher chamou certa vez porque num acesso de cólera

o homem partiu a sala toda?

outra dor mental, entre o hemisfério direito e o hemisfério esquerdo?

o flagelo dos mais pobres?

a morte da avó, a instalar em mim, definitivamente,

a vacilação, o medo, o fascínio?

o segredo inviolável da carta lacrada (lacre azul) poisada na base do vaso (vaso vermelho) de avenca?

o pássaro imóvel, que canta, circunstancialmente?

o sorriso de cândida, quando me pergunta se quero dançar?

certas rochas magmáticas, que a aliança com o vento solidifica?

o som do corne inglês, a ressonância do cravo, o sortilégio da anta?

a vigília do estore, que ninguém quer ver fechado?

a esconsa janela da taberna, através da qual se observa a claridade embriagada?

todas as sombras de santo stefano belbo?

a fita de cetim que com estrondo esvoaça na rua, quando não passa ninguém?

o ciclista que vai em último lugar na classificação geral mas irá envergar a camisola amarela antes do final da etapa?

o feitiço que o anúncio da rádio afirma ser irreversível ?

a feiticeira de que me falou alfredo na corunha  (se tu falas galaico-português

a minha pátria é a língua galaico-portuguesa, embora portuguesmente me sinta irlandês,

de dublin ou de belfast) e que por ser galega dá pelo nome de meiga?

a informação de capital importância a que ninguém prestou a mínima atenção

e  não é, afinal, de capital importância?

o papel de parede do primeiro andar do número setenta e oito

da rua do monte de judeus no dia 6 de maio de mil novecentos e cinquenta e três

como apontamento  autobiográfico?

teotihuacan, silves ou florença, em finais da década de setenta?

a memória fotográfica de verónica?

determinadas somas e outras subtracções que se fizeram num guardanapo de papel

como quem escreve um poema (uma arte poética?)?

o último bilhete de eléctrico do ruy belo guardado entre um livro de carlos de oliveira?

a mulher da noite de madrid?

a outra mulher de madrid que observei a comer batatas fritas

perto do museu do prado (goya)?

conímbriga, que sempre visitei quando ia com os meninos a riachos,

chamando-lhes o olhar para determinadas ossadas que lá estão e tenho a certeza

de que são as minhas?

a noite que acaba de cair no marão e abraça a montanha com a hesitação

de um primeiro nevão?

o tâmega, de que amadeo pintou certo recôndito lugar?

o guarda florestal que acabou agora de acender o cachimbo para poder ter

um incêndio – embora pequeno – para vigiar?

o ar circunspecto com que ele puxa a primeira fumaça e acompanha no livro

o mais obscuro herói de emílio salgari?

o quase imperceptível assobio da brisa nas conchas espalhadas no areal da tarde?

a sereníssima república de veneza, que para surpresa minha nunca visitei

(murano fica perto?)?

esta dupla interrogação supracitada?

o flagelo dos mais pobres?

a crónica falta de cigarros (três da manhã!), obviamente a desoras?

os alazões que me cavalgaram a ansiedade, a pretexto de uma ideia que não quero

agora explorar, e são vermelhos (gauguin) e vão à desfilada pela praia?

a palmeira de tânger, que não tendo visto nunca estou a ver aqui?

dois triângulos escalenos desenhados a giz por um dos heterónimos de pessoa

(ricardo reis, no ano da morte?) no cais das colunas

e que alguma chuva e muito anonimato deixaram esquecidos sob a luz das gaivotas?

o oráculo de delfos, que estabeleceu o choro de uma mulher muçulmana

em alcácer do sal,

em dois mil e doze da nossa era (ano da minha morte?)?

esta segunda dupla interrogação supracitada?

o pingo de cera que derreteu no braço beneficiando a imagem impressa sob a pele?

o volkswagen branco matrícula hg-63-24 que estacionou numa página de pedro tamen

e a intertextualidade mandou parar aqui?

o omisso incidente entre a rapariga cigana, núria, e zé manel,

carpinteiro-de-limpos,

que a ponta de uma faca sujou para a eternidade?

um dos barcos que atravessa o rio e transporta um vulto para a outra margem

(um lacrau?) (uma predestinação?)?

esta terceira dupla interrogação supracitada?

a eternidade ela-mesma, diáfana e irreal?

o poço onde ela cai?

o rosto perplexo que lá em baixo brilha?

o coração cansado que nesse brilho mora?

o fluxo do vapor que passa e abala as águas,

encerrando assim o círculo, escarlate?

Revista Inútil, nº. 2, Lisboa, 2010


SEQUÊNCIAS DA TERRA

 

Ele ofereceu-lhe um pedaço de terra

quando se conheceram.

 

Quando deram o primeiro beijo

ela engoliu uma parte desse pedaço

de terra

 

e quando se casaram ela engoliu

a parte restante.

 

Nove meses depois, quando ela

pariu o primeiro filho

 

saiu-lhe pela vulva a terra

que ele lhe tinha dado

e que ela tinha comido,

 

por duas vezes,

em duas partes iguais.

 

E assim foi que,

quando o filho de ambos

chorou pela primeira vez,

 

se levantou da terra

uma labareda infinita.

Revista Saudade, nº.10, Amarante, 2010


SEQUÊNCIA DE MACHICO

 

PRAIA DE SÃO ROQUE

Praias há de cristal, em que a noite

nunca ensombrece os vultos. O mar

alcança-se por transes de topázio

e são azuis os barcos em que vamos

quando o sol faz de nós antigos atlantes.

As ondas revoluteiam a luz no areal

e transitam segredos pelas redes

em que peixes magníficos se incendeiam,

vibrando-nos as mãos como se fôssemos

amantes arrojados, com os olhos

a arder sobre a ilha, ora verde,

ora branca na distância.

 

ALAMEDA DOS PLÁTANOS

Acedemos depois a uma rua

em que há plátanos centenários

e todas as sombras se reúnem

para fazer de nós seres perplexos.

O mistério da ilha está contido

sob a espessura das pedras e podemos

aqui sentar-nos para rejuvenescer.

Tu passas e o ar amadurece

com aromas de flores fosforescentes,

que usas no cabelo e nos ombros

para que seja a índole do amor

o sinal pelo qual nos reconhecem.

 

CAPELA DAS PRECES

É numa casa alva que deixamos

as nossas preces, para que nunca

deixemos de nos ver. Tremula

a vela na limpidez dos olhos

e o fascínio alcança-se no silêncio

com que os corações se deslumbram

pelo que há de divino neste sítio.

Tu és o meu mistério e o que digo

vem de rumores de naves sobre as águas

e de volutas de vento onde tudo

nos lembra quem somos e a que deuses

prestamos culto, mesmo quando

a tempestade irrompe e tudo vibra

no desassombro de aqui termos chegado.

 

PRAIA DE SÃO ROQUE, II

Vem esta terra ao caso de haver luz

que nas pedras se esconde. A descoberta

levou-nos aos segredos que no céu

fizeram desta praia um sortilégio

de gente que em silêncio está a cantar

as duras penas que a vida trouxe.

As mãos de quem habita este lugar

são como astros que no oceano avultam

por um enigma maior que nos revele

o que cai das estrelas e se transforma

em pão, sempre que saem

os barcos para a vastidão.

 

MACHICO

Das mulheres que aqui vivem falo agora,

já que as vi sob um silêncio austero

e um vestido negro de aflições. Olhando-as

nos olhos estou a ver sacerdotisas

que há muito os seus braços levantaram

ao céu, para que fosse um prodígio a neblina

e o açoite do mar não mais do que uma fonte.

O negro azul do mar lembra-nos como

é por elas que devemos tudo

à vida que vivemos, esta luz, estas árvores,

este caminho que dá voltas pelos montes

e nos conduz à primitiva paz de que nascemos.

 

AQUEDUTO DE MACHICO

Os vultos, digo. Nenhuma sombra têm

neste areal que à noite se ilumina

para que tu e eu possamos alcançar

o aqueduto que a lua transformou

em ponto de esconjuros para o medo

que o tempo à nossa volta levantou.

Sob um manto de nuvens sei que dançam

quando algum cansaço se amontoa

na nossa vigilância e o fulgor

sobre as nossas cabeças se dissipa.

Protegem os amantes como nós

e não é por acaso que no peito

têm um coração selvagem a palpitar.

 

CAPELA DOS MILAGRES

Nesta capela buscamos o milagre,

ou o que isso seja na redenção que procuramos.

Numa coluna inscrevemos a oração

que esperamos que venha entregar-nos

a eternidade de nos amarmos sempre

com os poderes telúricos que na terra há

e o mar nos mostra sempre que aqui vimos

murmurar os nomes com que a música

na música se tece, num rastro de flautas

e violas em harmonia

com a luz que lá fora se derrama sobre as casas.

É dessa luz que as almas se alimentam

e os pomares em volta frutificam

na incandescência pura dos mistérios.

 

FESTA DO SENHOR

Não temos já memória da Atlântida?

Nem pórfiro nem tavertino há nestas colunas

de água que nos cercam e, além da praia,

poucos palácios se podem entrever

nos cruzados caminhos da nossa mágoa,

náufragos que fomos, e somos, ainda hoje.

Mas quando os deuses se soltam pelas praças

e há um rumor festivo pelas ruas,

esses panos que brilham nas varandas

são de uma imensidão, diria, mediterrânica

que lembra Santorini, Ítaca e Salamina,

onde os velhos patriarcas celebravam,

tal como aqui agora se celebra,

os dons do espírito e os seus ditosos frutos.

 

IGREJA PAROQUIAL DE MACHICO

Nesta igreja os capitéis coríntios

guardam os anjos que nos enaltecem.

Preciso é que os anjos se protejam

de quem chega inalcançado à geometria

que no céu há-de ver-se quando a morte

vier chamar-nos para o último estipêndio.

Uma mulher os mandou erguer,

para que num templo pudesse porfiar-se

o advento da aurora e o rumor

que há na eternidade. Porque é isso o amor,

um arcano em que os signos se elevam

a um projecto de anjos buliçosos

que só alguns de nós poderão reconhecer.

 

PRAIA DA BANDA ALÉM

De novo a praia, com a areia amarela

a reluzir perante o dédalo das ondas.

De súbito, um grupo de rapazes

abre as camisas e mergulha nas profundidades

subterrâneas, a voar sob

as alturas das águas, os labirintos

cor de anémona dos recifes. Há um tesouro

neste encantamento, que urge pôr

à vista, porque a todos pertencem

os segredos que há no mar.  E eis que os rapazes

voltam ao areal e mostram, entre os dedos,

a alvura dos seus dentes a contrastar

com uma ânfora crestada pelo tempo

de muitas marés obscuras sobre a costa.

 

ANTIGA FÁBRICA DE CONSERVAS

Vãos emoldurados por barras cor de cinza

e uma chaminé soberba, eis o que é a fábrica à nossa frente,

agora que a arqueologia industrial já não consente

senão memória do que foi engenho, nos tempos

em que os peixes eram sustento

de indizíveis fornalhas e cargueiros

e se compunha a vida de outras sombras,

não muito díspares das que hoje temos.

A arte de viver torna urgente

o que a intransigência dos ímpetos escorou

em coisas obsoletas, mas que, antes disso,

foi a festa diária de ter à mesa

o que possa abençoar-se para ter-se.

Fechada a fábrica, o povo dispersou-se

e irrompeu em crise sobre a terra

à espera de uma mudança cega e muda

às altercações de quem foi para a cama

com o estômago vazio e a alento apavorado.

Desejo que, ao menos, a transparência

aqui abra janelas e nela haja

alguns pássaros desabridos a respirar.

 

MIRADOURO DO PICO DO FACHO

Poucos abismos há neste lugar, em que só

a luminosidade é abismal, além desse aroma

longínquo que chega do inhame e insufla o voo das aves.

Por isso, subirei à colina neste fim de tarde

e abrirei as mãos ao mundo, para que a parte da ilha

que daqui alcanço me ensine a ver. E assim será

que no abismo dos teus olhos cairei.

 

FORTE DO AMPARO

Os lampejos uivantes das pedras,

com os cafés em volta, os seus cronómetros

meticulosos. Depois a loa extravasa

o tecto pintado, as mãos sob os tampos

das mesas, o homem que cospe no couro

para o suavizar. Nada vacila, então.

Sequer os corpos que fazem dos obstáculos

pequenos púlpitos, pequenos pódios.

A não ser, talvez, a chama que daqui se vê,

sobre o túmulo de Agamémnon.

 

MACHICO, VISTA GERAL

Um vinho denso, quase sólido

por tanto espessamento. E a cidade

ao alcance da mão, com os telhados

das casas a brilhar, como cerejas

num vaso de cerâmica negra.

 

PENHA D’ÁGUA

Um transe de heresiarcas em que todos os mistérios se reúnem

para que nada se salve: o trabalho das mãos, o caminho que os pés

construíram, a paisagem que se abriu à frente dos olhos, a neblina

que se adensou sobre a nuca. E no fim de tudo a vara de oiro,

apenas a vara de oiro cravada no areal.

 

CHÃO DAS FEITEIRAS

Espero uma chuva súbita de poalhas

de estrelas. Escrever não é um fim,

mas um meio para encontrar as colunas

de Corinto, a avassaladora imensurabilidade

de um caminho sem fim. Estou aqui,

onde a terra é ocre e verde, e todos os oceanos

derramam espumas violetas e azuis

sobre as praias, e nada quero senão

ver desfazer-se a nuvem branca

perante os meus olhos, que sei

que ali está, que ali esteve, que sei

ali estará quando eu morrer. Sei

que se destacará na escuridão absoluta

e há-de cair no mundo como um brilho

inesperado.

 

CARAMANCHÃO

A música dos montes, o homem

que toca flauta arrebatadoramente.

E o bode que, no Caramanchão,

me olha de frente, a improvisar

o desafio anelante, que escondo

nas minhas obsessões. Essa música

chega de Dionisos, e é o bode

uma advertência divina,

enquanto eu, roxo de frio,

perscruto o horizonte.

 

CAMINHO DAS VOLTINHAS

A maior alegria é a que se recebe

na estrada que vai dar ao Machico.

Descemos ao poço e deslumbramo-nos

por o vermos cheio de um líquido

sorvado e quente, branco como o sangue,

enquanto escorregamos para o fundo

da estrada. Uma estrada de degraus reluzentes,

que vai dar ao céu.

 

UM DOMINGO, PERTO DO MUSEU DA BALEIA

É o domingo tema de acessibilidade e refrigério.

No entanto, a paz é o que for a paz do coração,

por mais perus que estejam presos aos puxadores das portas,

como Miller viu em Halicarnaso. Neste domingo, os anjos são de cor anil,

mas têm asas vermelhas e pretas, embora mal se distingam

na escuridão que sobre nós desaba: vai-se por essa floresta

e são só espectros o que se avista, frutos abertos ao meio,

a absorver o negrume da dominical rasura. Por isso, é ainda aturdidos

que estamos, com as mãos em concha, enquanto atravessamos

as praças, as ruas, as vielas, e nada nos salva do que for terreno calivoso

ou sangue espesso. A nossa acção de graças é esse abalo,

estando o domingo escalvado e a praia

completamente deserta, revigorando-nos o banho lustral,

o silêncio desconforme, a brisa sobre as árvores, além dos gritos

das raparigas indemnes, que forçam o mergulho e confessam

ter medo da profundidade avulsa da corrente.  Domingo, digo.

Coisa sem arte, talvez, mas com a calamitosa ocorrência de um relâmpago

sobre as nossas cabeças, que a pouco mais almeja do que à remissão

do cansaço, uma fraga, uma chispa, uma toalha branca.

 

RIBEIRA DE MACHICO

Não se sabe para que azul avançam os aurigas

os carros de combate, finda a corrida. À sua frente,

o mundo eleva-se milhões de anos e só o murmúrio da fonte

se escuta, a absorver toda a luz e todos os ruídos.

E depois há o mar, esse esplendor de cerros

magníficos e vibráteis, onde todos nós estamos,

não se sabe se a esbracejar ou a acenar.

A roda gira. Giram as pás dos moinhos.

E os ventos rodopiam sobre as cabeças dos áugures,

a fazer graves os deuses e os veados ligeiros

no orla do abismo.

 

LEVADA DO ENGENHO

O que aqui vai é um cheiro a vinha

e a mel, que corre na encosta da colina.

Talvez agora o presente restitua ao presente

a sua aurora, e o que é alcatrão

se refunda num caminho

de canas, que os homens, num tempo sem fim,

cortaram para que fossem mascavados os beijos

e sumptuosas as pausas que a terra dá,

ou a côdea de pão que se come devagar.

O horizonte exacerba-se por essas falas antigas,

que os homens atiram de campo em campo

e chegam ao mar como sulcos de arado

que dão às ondas um breve alvoroço de pássaros a voar

nas arribas. Este é o ponto de fogo

onde posso dizer que estou a imobilizar instantes

e um odor a cidra me inebria.

 

MEMÓRIA DE UMA MULHER CHAMADA ANA D’ARFET

Ela bordava incessantemente.

Um dia começou a bordar a sua própria pele.

As linhas entrecruzavam-se umas nas outras

de tal forma que lhe era impossível dizer

se era um poço e que estrelas caíam na água que bebia,

embora uma sombra branca lhe cingisse as mãos

com os ruídos raros e exuberantes

de uma paixão infinita.

 

FALA DE UM HOMEM CHAMADO MACHIN

Quando partiu para outro lugar

deixou este lugar num estado de sítio.

 

Tinha partido, mas neste lugar

tinha deixado demasiadas coisas

para que reconhecêssemos que tinha

partido para outro lugar.

 

Estava noutro lugar, mas neste lugar

tudo se ressentia da sua presença.

 

Um coração batia noutro lugar

mas era como se batesse neste lugar.

 

Neste lugar ainda há indícios

da sua partida para outro lugar.

 

A cabeça estoura-se-me por ter partido

para outro lugar, mas é neste lugar

que tudo ficou num estado de sítio.

 

Um estado de sítio como não há em outro lugar.

 

Ah, como pode ser espessa a separação

e o mar a bombordo explodir.

 

Ah, não posso senão dizer que a tarde não termina

e que o teu rosto prevalece sobre o vasto

oceano.

 

Meu amor,

deixo-te estas palavras que a rebentação

deixou.

 

A morte é uma fossa marítima

onde ecoam os rostos

e a terra,

 

a terna eternidade.

 

Colectânea de Poemas dos Vencedores do V Concurso Literário Francisco Álvares de Nóbrega “Camões Pequeno”, Sequência de Machico, Machico, 2011

 


MIL NOVECENTOS E CINQUENTA E TRÊS

 

Logo no primeiro ano

estou só

e não me consigo manter de pé.

 

Se suspeitasse sequer

que iria ser assim para toda a vida

não me riria

 

com estas gargalhadas

cristalinas.

Açougue, 2012


MIL NOVECENTOS E SETENTA E QUATRO

 

Cai o silêncio sobre o alinhamento

hostil das casernas.

 

A guerra está no fim,

já só alguns de nós irão morrer.

 

No torpor absurdo da paz da parada,

há uma bala tracejante que passa,

um trovão.

 

Matou-se o mancebo da 2.ª companhia

que recusava a farda.

 

O crânio estilhaçado,

impossível de ver,

está ali, bem à nossa frente.

 

Noite, mais noite, é todo o dia assim.

 

O arame farpado que nos limita

a escolha

chora pequenas lágrimas perfiladas no fio

da nossa inocência ofendida. 

Açougue, 2012


 DOIS MIL E OITO 

(para Baptista-Bastos)

 

Sou um homem do norte e um homem do norte

continuarei a ser até que a morte me separe.

As minhas circunstâncias são exactamente

as mesmas circunstâncias daqueles de que sou

vizinho, a gente das vielas e das ruas empedradas

a granito, os vociferadores sem mais ânimo

que o da sorte, os rapazes que peroram o descaso

de não haver árvores a que possam

subir para começar uma aventura

que não tenha fim. Na minha memória

o que está mais marcadamente aceso

tem a ver com o mistério irredutível da infância,

e desse tempo guardo choques inimagináveis,

com homens no trabalho a poder de fome e de cansaço

e mulheres em angústia permanente por não haver

o que dar de comer a velhos e crianças.

Cedo me foi dado partir para os braços de alguém

que me atenuou as faltas, com pão branco e um resto de toucinho,

pelo qual chorei, vim a saber mais tarde,

como um garoto sem saber de maior evidência do que ter, enfim,

um pequeno manjar para celebrar.

A vida era dura nesse tempo,

que eu fui vigiando quase por instinto,

fazendo o que fazem os que ampliam a vida pela experiência

e, de erro em erro, consolidam, sem mais,

o que passaram a saber, porque o sofreram.

A vida era dura nesse tempo, sobretudo

para quem me estava próximo

e eu via viver sem mais remédio do que ir transfigurando

a fome irrespondível em estoicismo feroz,

capaz, se necessário, de abalar montanhas.

Em volta, quem estava, pouco ou nenhum exemplo

seria do fascínio, mas era gente que, ainda assim,

andava de cara levantada pelas ruas, a mourejar o sustento,

fosse a lavar escadas ou contratado nas docas,

como vi acontecer aos meus progenitores.

Quem me criou foi disto que adoptou ao receber-me,

sendo que minha mãe me entregou para me livrar da miséria comum

–  por assim ter sido, eu sei que ela

levou para a sepultura uma dor excruciante sob o peito,

e lágrimas perpétuas nos olhos. Fosse o que fosse o mundo,

ali estava a minha predisposição para o saber, menino e moço

levado de casa de meus pais para uma outra enxertia no meu tronco.

A casa para onde fui era um mistério, e foi nesse mistério

que dei por mim a interrogar fosse o que fosse, a luz, a treva, a sombra,

sempre a olhar em volta e a assinalar nas coisas

o rudimento de uma linguagem que me pudesse dizer tal como sou.

É certo que o que somos nunca é o que pensamos ser,

porque nós somos o que somos e o que os outros de nós fazem,

além de que também somos o que vimos, as coisas que ouvimos,

as coisas que esquecemos, os sonhos que em nós se enraízam,

sem outro modo de prevalecermos senão por outros sonhos,

no que dizemos, ao que nos aproximamos, do que nos afastamos,

inexoravelmente, pela intensidade do nosso regozijo

ou o alento que alcançamos reunir.

Eis que, portanto, a infância, a minha infância,

me entregou ao duro acaso que há nas coisas,

a confrontar-me, ainda inocente, com a morte.

E tive que cuidar de uma mulher que, não sendo minha avó,

me chamava neto, e eu amava sem saber porquê.

Ela estava entrevada, e disputávamos pelas tardes coisas sem valia,

a luz de uma planta, uma bolacha que era só farinha,

uma moeda que a sua bolsa negra resguardava das minhas investidas,

porque eu queria rebuçados, figurinhas-de-passar, amêndoas, uma bola,

e ela pouco tinha para me dar,

além da sua eterna progressão em direcção à morte.

Tínhamos uma infinita paciência um para o outro, e ela animava-se

a contar-me histórias, sendo que por essas histórias é que compus

o meu imaginário, o meu encantamento.

Não havia professor de que eu gostasse mais do que gostava dela,

pela sua pele mirrada e a sua perna inchada, gorda, de elefantíase,

que um enfermeiro mortiço tratava com afinco, com nitrato

de prata vertido sobre a chaga que, por tanta escuridão, abria em carne viva.

Falava-me da raposa e do milhafre, falava-me do lobo e do coelho,

da águia e do veado, falava-me das flores –  as brancas, as vermelhas –,

falava-me da praia e da floresta, falava-me das pedras, dos cristais,

dos reis e das princesas, do gelo e da resina, das bruxas e das fadas,

e tudo o que dizia estava vivo, mexia e respirava, porque eu,

ouvindo o que dizia, o via à minha frente, a entender

como há uma tenacidade absoluta que habita na palavra,

e que só pela palavra existe o que nós vemos,

salve-se disso, ou não, a nossa esperança.

Hoje, quando escrevo, pressinto que vem dessa mulher

o uso obstinado de comparações violentas nos poemas,

sendo que entendo que as metáforas se vivem para que haja

um termo irretorquível de eficácia na dimensão da escrita.

Certa noite, esta mulher morreu

e, nessa agonia, eu vi que há,

entre os vários planos em que existimos,

outros planos cruéis que nos ficam cravados na memória

para sempre e que nunca mais nos abandonam.

Morria ela enquanto ia comendo a camisa branca que vestia,

levando-a à boca em catadupas, numa luta incessante com a morte

pela qual eu, pela surpresa de a ver lutar com ela assim, fiquei estuporado.

Anos mais tarde, morreu a minha mãe, e tive novo confronto com a vida,

acareando a morte,

porque a fui velar a uma pequena capela de uma rua íngreme,

onde todos os tráficos existiam, da música argentina ao comércio do sexo,

da emulação pelo vinho ao desacato

das meninas que perto voejavam, a angariar clientes,

enquanto minha mãe ali jazia, morta, finalmente,

mas ainda viva, viva pela vida circundante.

Não traumatizemos as crianças, diz-se, hoje em dia,

mas a verdade é que a consciência do que me vai acontecendo

sempre me pareceu soberba e exaltante,

tanto mais que sempre quis ser poeta,

e para se ser poeta é sempre necessário estar no fio da navalha,

é necessário sentir o fio da navalha sobre a carne,

é necessário saber como se abre a ferida e o sangue corre,

e como a dor alastra sobre tudo, sem que haja esquecimento ou redenção,

mesmo se a redenção vier e a deslembrança

tiver que ser a última recompensa.

Assim cresci, assim empreendi a aprendizagem,

a constatar como na alma os passos se abismam

se a pura incandescência nos confronta com a violência que há em tudo,

sendo que quanto maior for a violência maior é o tirocínio do poeta:

a empreender o abalroamento do real para que resulte frontal a colisão

– derrapa, um dia, num troço da auto-estrada, a fazer

do ligeiro um monte de sucata e, do passageiro, lama,

não mais restando do que somos na energia cósmica, que ao pó regressa.

E assim cresci, e vi que a enxertia resultava

em algo mais sensível do que alguma vez supus,

sem que soubesse por que herói optar, Aquiles ou Heitor,

se pela força indómita e bravia,

se pela razão que toca o coração para que seja cada morte uma vitória,

ainda que os mortos, em multidões inúmeras,

com as suas botas grossas e os seus bibes verdes,

com as suas túnicas púrpura e os seus coadores de prata,

com o seu orvalho negro e o seu odor a incenso,

terrivelmente aguardem que a justiça venha, e dure, e seja feita.

Foi primavera, veio o verão, depois; é já outono, agora.

Tive dois filhos, os quais eu vi nascer com estes olhos que a terra

há-de conter, e vê-los a chegar, a suscitar ternura, fez-me querer

ser um guerreiro a combater o efémero, desarmado, embora,

mas pronto para a luta e a conquista dessa muralha inerme

com que a realidade arma ciladas sem nunca nos dar tréguas.

Fiz, então, da escrita o meu sonho maior,

e das palavras tomei o que podia para encontrar

o ardor e a harmonia, sendo que o desenlace da harmonia,

aqui, onde vivemos,

seja só inconsonância e incerteza,

perversas dúvidas,

amálgama de ferros,

trechos de música densa e obscura,

que sabemos e não sabemos como existe,

mas sentimos na alma e no espírito,

e nos enche o olhar como um bosque cintilante.

Se sou poeta, ou não, interessa pouco.

O que escrevo é só um tempo breve,

em que os mortos e os vivos se procuram

para que haja testemunho e não seja longa a espera

do fim que há em tudo. Ah, que quem venha

a seguir se não esqueça o que é o norte,

e onde fica. 

Açougue, 2012


 NO DESAPARECIMENTO DE VASCO GRAÇA MOURA

 

os que nos vierem fazer o elogio fúnebre

jamais saberão do que estão a falar

quando de nós falarem, nem quais as brumas

 

que sobre nós pairaram na resiliência

que nos fez viver, escrever, amar e aturarmos

tudo o que nos coube ter que confrontar nos mais íntimos

 

duelos que mantivemos connosco e com os outros.

do mesmo modo com que nos desprezaram

mais nos desprezarão pela laudatória fácil

 

a que nos vão submeter  aquando das exéquias,

a olhar-nos como sempre nos olharam, com os olhos

trocados sobre nós, por sermos, ainda que mortos,

 

melhores do que eles são, que há muito

estão mortos sem que o saibam. a terra saberá, talvez,

como tratar-nos, na primazia de nos receber

 

como cadáveres carregados de responsos

que não mais do que nos desfeiteiam e apoucam,

por nunca expressarem quanto fomos no despique

 

que mantivemos com a vida, a pátria e a língua dela,

sempre a achar que mais bela não teríamos

noutro qualquer lugar, tornando-a ainda mais bela,

 

se possível em cada dia de labuta incansável e dor extrema.

o esquecimento aguarda-nos, nenhum equívoco

irá tirar o andaime à verdade nua e crua que nos vela

 

depois de mortos, venham, ou não, discursos e fotógrafos

relembrar quem fomos no imbróglio que foi termo-nos visto

sitiados pela inveja e a hipocrisia. correligionários que sejam,

 

companheiros da mesma comandita partidária que durante

a vida mantivemos, gente da boa–fé que não lhes vimos

antes, podem dar-nos missas, sermões salmodiados e capas

 

de revistas, que sempre ficarão aquém de entender-nos

as ânsias mais secretas, as paixões inconfessáveis, as perdas que tivemos,

as gratas alegrias que fruímos ao olhar o mar esmeralda

 

da foz velha, a felicidade de ter sempre razão

sem a ter nunca, o prazer que tivemos no senhor de matosinhos

a comprar louça, farturas e enchidos, quando éramos

 

dados a esses tráfegos de adultos vulneráveis,

ensimesmados poetas de um destino em que nos fomos matando

para aproveitar o agridoce odor da brisa sobre as praias.

 

querem de nós é que apodreçamos, que nos leve

a arruada do cortejo lúgubre com os gatos-pingados atrás de nós,

que se feche a urna e o fogo nos esturre o corpo

 

para que os dividendos do nosso óbito lhes dê algum lucro,

notoriedade, aplauso, sem que a tarefa dê muito trabalho,

no âmbito das empreitadas a que pertencem.

 

não nos perdoam o bem da iconóstase, a infância em gouvães

ou em miragaia, a foda imaginária com a florista

que num dado fim de tarde acinzentado se entreviu

 

no enquadramento de uma montra em campo de ourique,

o gosto pela pintura e pelos livros, a música erudita,

as múltiplas viagens pelo mundo, o desmedido amor a musas várias,

 

de meia preta e cabelos soltos no descapotável que não nos pertenceu,

mas permanece ainda em descorçoados poemas rigorosos

sobre o que é andar a descobrir no mundo amenas dádivas,

 

hipóteses magnânimas de sobrevivência.

não os tolero e aos seus falsos lutos, as gravatas malsãs

que entre si reeditam como um palimpsesto de mau alfarrabista,

 

o seu decoro fanático, as suas lágrimas secas, conspurcadas

do pó dos ministérios, das redações dos jornais, para as quais

escrevemos sem que isso tenha a mínima importância

 

para o que seja o supremo mistério da poesia, sorrindo-lhes embora

pelo desagravo. odeia-nos, essa gente, a fátua gente que vai

aos crematórios ver-nos em faúlhas dispersas pelos ares,

 

a julgar-nos o método e a inteligência, as opções políticas,

a subestimar tudo o que somos no desregramento geral

da sociedade, onde a fome é cada vez mais um atropelo

 

aos que precisam mas não têm nunca quem os ampare.

há também os que põem chama no que presumem o que nós possamos ser,

nem sei se adeleiros, se alfaiates das nossas proporções,

 

com a misantropia a calhar-lhes na veneta para que melhor se safem,

a dar-nos pelas costas palmadinhas e a girandolar nos nossos passos com os velhos pecados da má fé e da idolatria, por um gesto, um dito, um eco que ressoe

 

do desaguisado feitio com que nos vêem calmos mas perturbados pelos desafios

do futuro, a saber de que europa se construiu a europa e de que ruínas

os povos tiveram que erguer-se quando não podiam mais viver de joelhos.

 

odeia-nos, essa gente, porque não sabe que, além do mais,

a um poeta cabe ser vaidoso dos deuses que escolheu, mesmo que esteja

errado, mesmo se vier a dialéctica desmenti-lo de tudo quanto disse, jurou

 

ou abjurou, ou pôs acima de seus próprios interesses, carreira,

profissão, livros publicados, ou o que seja. falam de nós

e ignoram que nunca temos nome, ou que o nome

 

que na terra carregamos não nos pertence, ou só pertence a uma certa musa

inexistente, a quem, no último sopro, pedimos a mão para atravessar

a estrada que vai do coração ao firmamento e não é mais

 

que o nosso pesar, a nossa humanidade, o nosso desalento

por tanto já ter sido o nosso alento mas ter chegado o fim terrível.

vasculham-nos o espírito e o que dizem não faz qualquer sentido,

 

não tem que ver com o canavial da nossa adolescência,

ou com a intraduzível dificuldade com que nos confrontamos

na tradução de dante ou de villon, o modo impertinente

 

com que perscrutamos as aves da nossa solidão, o renque

de árvores que em mateus foi connosco circundar o palácio

e ver o lago. tal como eu me calo, quero que se calem para sempre.

 

que nos deixem em paz neste momento em que não passamos

de uma oliveira que num monte aguarda a transmigração da alma,

como se estivesse num desenho enigmático que escher assinasse,

 

ou um verso de um soneto de camões que na eternidade

buscasse a perfeição, sabendo como a podemos encontrar

em qualquer parte se é com o coração que a buscamos

 

e dela seus escravos nos tornamos. que nada mais

digam acerca do que sabem e não sabem sobre nós,

do bric-à-brac com que cometemos a nossa intemperança,

 

actos falhados, emparelhadas rimas, referências ao real e às meninas, a que borda,

a que toca violino na sala ao lado, a que connosco visitou o porto amado, a torre,

as pontes, as clarabóias, a que se viu da janela de um comboio

 

em emilia-romagna quando em trânsito entre roma e florença

acordamos estremunhados e olhamos para fora

a tentar perceber onde estaríamos. que não chateiem o poeta morto,

 

que não abusem mais da paciência e da impaciência de quem ousou

tentar cifrar o real e a realidade em outra coisa que não fosse

o banal elevado à circunstância e a mediocridade ao único ascetismo

 

de que nos nossos tempos se é capaz. que não perturbem

quem mais não quis do que levar as coisas a um lugar mais alto,

com severas injunções, dignos reparos sobre o quotidiano

 

que numa toalha branca se estendesse e fosse, por uma vez,

um soneto, uma canção ou uma sextina na lição complexa

com que cada poema amplia no universo

 

a nossa redenção e o castigo de vivermos para morrermos

com excessivas perguntas sem resposta sobre o que

a morte e a existência representam. para trás os idiotas, os obscenos,

 

os misóginos, os ministros, os canalhas, os literatos, os pulhas,

os demagogos, os prosélitos que são como matracas

que discorrem no orgulho da sua ignorância

 

que os faz reproduzir até à exaustão

lengalengas de almanaque culto,

requebros diplomáticos de gente do poder acobertada,

 

que do poder só sabe ser seu semelhante e desonrar os outros.

chegada a hora, que o sossego venha.

que na nossa despedida a paz se escute.

 

amadeubaptistablogspot.pt, 2014


SUPOSTA NOTA DE DESPEDIDA DE GELI RAUBAL DIRIGIDA A SEU TIO ADOLF HITLER

 

Não estou descrente, tio, dos nossos jogos

de guerra, mas não me sei comportar

como um adversário aguerrido quando me apontam

uma arma ao coração para que obedeça

– para além dos limites, só eu hei-de saber

do alvoroço da minha submissão e a coragem

necessária para que a mim mesma possa conferir

o veredicto do desassossego. Assim, serei eu

a apontar a arma ao meu peito e a disparar,

a saber que o relatório do Instituto de Medicina

Legal confirmará o meu suicídio, embora só quisesse

escapar ao terror que me provocas.

Um Pouco Acima da Miséria, 2014


MURMURAÇÃO DE LEÓN TROTSKY NO SEU LEITO DE MORTE

(para Adelino Rosa)

 

Natália Sedova, olha-me, peço-te que me olhes fixamente

– de mim não escutarás um único gemido, mas dir-te-ei

que a última flor do terrífico é a beleza, como te disse há muito,

como repetidas vezes te disse e agora repito neste meu último fôlego:

o terrífico é a beleza, tal como tudo é neve em nós,

de vitória em vitória, ou derrota em derrota,

ou um verso aterrador de Pushkin ou Maiakovski.

 

Não vês a revolução permanente neste trapo vermelho

enrolado à volta da minha cabeça, enquanto ponho

os olhos num infinito não muito distante?

 

Que te parece este exílio, estes dias luminosos de tequila e mezcal,

estes encontros com Frida, que de tudo fala como se pintasse,

enquanto tu cozinhas e eu escrevo sem parar

como se não haja em nós senão comoção?

 

Nesta cama, onde já só aguardo a morte,

porque é de morte que estou ferido,

não te parece que tudo em mim potencia a neve e o degelo

em contraponto à dor, esse axioma de múltiplos postulados

que a dialéctica acabará por resolver,

tal como resolverá a luta de classes?

 

Não te parece que, desde que o mundo é mundo, o mundo

é só mudança e que para a revolução revertem

todos os sacrifícios e todos os sonhos?

 

Não me viste a conduzir

os exércitos entre a Kazan e a Ucrânia

e como, de acordo com Lenine, o encadeamento

das batalhas faz todo o sentido?

 

Deixa que olhe o tecto desta casa estranha e que veja o que vejo:

com certeza é mágoa o que diviso, mas, ainda assim, deixa

que veja um exército alucinado sempre em marcha, um exército

em busca de futuro, mesmo que não haja futuro, ou não haja

soldados quando a guerra terminar.

 

Deixa que sinta este arrepio a percorrer-me o corpo

como uma ventania poderosa que varresse a estepe

e nunca mais parasse,

e fizesse de mim um homem retemperado e livre.

 

Inquieta-te ou não o esgar

que me modela o rosto, agora que a morte

penetrou o meu crânio e nada mais poderei fazer

do que sentir estas dores intratáveis e a ligadura

a encher-se de sangue, enquanto tu, Natália Sedova,

pões os olhos em mim e ouves comigo o riso longínquo de Estaline

a celebrar, não a morte de um inimigo de classe,

mas a classe de um inimigo – eu mesmo neste leito,

sem temor, sem pavor pelo fim, apaziguado

pela benignidade revolucionária de quem está a morrer?

 

Digo que é preciso acautelar as coisas, cada clarão, cada

gesto suspeito, e que não devemos confiar se alguém

se apresentar em nossa casa como sendo um amigo,

um amigo belga que não é belga, mas alguém insidioso

que quer ter uma história para contar, uma história

tremenda, a história do meu assassinato,

e quer frequentar a nossa intimidade para nos matar,

porque no Kremlin governa Estaline e, com ele, está a neve,

a neve implacável que sem tréguas nos persegue

e é um curso sangrento, entre sátrapas e sequazes,

um curso de brancura que nos quer eliminar.

 

Creio na fuga, no exílio permanente.

Talvez a revolução seja isso, ter um inimigo

às costas e nunca lhe ver os olhos,

e ter de dormir com a eficácia de um fugitivo,

juntando as botas a um canto, e os filhos,

e toda a parafernália de pensamentos

que aliviem, ainda que por instantes,

o medo e o paroxismo de ser acossado

por uma mão invisível e omnipotente, uma mão

mais poderosa que a mão do acaso, ou a mão de Deus.

 

Abro a cigarreira e é neve o que encontro,

a caneta que uso é com neve que a encho,

e, quando escrevo, é neve o que alastra

no papel, neve a expandir-se sobre a terra,

enquanto a minha boca é neve que cospe,

a neve da proscrição, a neve da Sibéria,

da Turquia e da França, neve infinita

como a única amargura de quem não pode permanecer

em qualquer lugar que esteja e, em cada sombra,

apreende uma ameaça, em cada ruído, em cada

estalido das juntas de madeira da cama em que dorme.

 

O que digo é que uma sombra pode soterrar um homem,

uma sombra entre as sombras pode envenenar

a alma de um homem, e que as sombras são como a neve,

estendem-se à frente dos olhos e é como se a luz

favorecesse a ameaça, e fosse a revolução a própria ameaça,

e nada mais houvesse que essa ameaça a perseguir-nos a cada instante

e em todos os lugares, de Kronstadt à Cidade do México,

de todos os lugares em que estive até todos os papéis que escrevi,

do mais simples panfleto até à sentença de morte de um desertor

ou de um burguês contra-revolucionário.

 

Creio na fuga, digo. Na fuga há uma tensão que favorece

o improviso, e a vida é isso mesmo, um improviso perpétuo

para sobreviver: junta-se um fio a outro, e outro a outro,

até que fica pronta a bagagem que essa corda

há-de prender –  nessa mala depomos tudo o que é nosso,

os livros que escrevemos, as mulheres que amamos,

as sombras que a nossa intimidade reconheceu

e a corda do improviso ata a esse passo decisivo,

a fuga que é preciso empreender porque as sombras, tal como a neve,

podem adquirir qualquer forma para quem é ameaçado,

a forma de um punhal, de uma pistola, de um copo

de veneno, de uma picareta de alpinista, de pontas aguçadas,

pronta a ser desferida sobre a nossa cabeça.

 

Digo que o exílio é como a neve, sempre e sempre

a adensar-se sobre nós, por mais que o fogo abrase,

ou nos incendeiem a casa, ou, no ímpeto da fuga,

passemos de um país a outro, e no novo país a que aportemos

tudo seja mais cálido, mais confiável, mais acolhedor.

 

Ah, mas o certo é que pomos um pedaço de neve no samovar,

preparamos o chá e a água fervente, o infusor de prata,

e é sempre neve o que bebemos, a neve perpétua

de nos querermos aquecer por dentro, a conhecer

o frio permanente de quem é acossado

e atrás de si pressente a perseguição implacável.

 

E os nevões sucederam-se, nevava em Alma Ata,

nevava nos contra-fortes dos montes Tien-Shan,

nevava em Prinkipo, a ilha predilecta da minha afeição,

onde ficou perdido o melhor cão que já tive,

nevava na Noruega – assim como nevou em todas

as casas do precário asilo que me foi permitido,

até mesmo aqui em Coyoacán, sobre a minha mesa de trabalho,

nestes lençóis, sobre a colecção de cactos que iniciei

para aquietar a fadiga da perseguição, da angústia, do desgosto.

 

Ah, Natália Sedova, está a nevar nesta cama e eu sei

que é o sangue que neva da minha cabeça que alaga as almofadas

e inunda o soalho e as tuas mãos, e que Ramon Mercader, a mando de Estaline, conseguiu o queria, dar-me o golpe que a todos recompensa, por esta neve

infalível que sempre me acompanhou e me há-de levar

ao sepulcro e ao tempo futuro.

Um Pouco Acima da Miséria, 2014


IRENE PAPAS ENTOA VERSOS DESCONHECIDOS NO EPIDAURO AQUANDO DA INVASÃO ALEMÃ DA GRÉCIA

 

Venho com figuras de deuses no meu corpo

e estou a cantar. Na mão esquerda trago

uma camisa de linho e, na direita, uma bandeira

azul e a proa de um navio. Invoco os talismãs

propícios e sobre o promontório procuro a luz

de outrora e a que há-de vir. Eu e o meu povo

sabemos que desígnios transparecem

nos golpes que sofremos. 

Um Pouco Acima da Miséria, 2014


  NÂZIM HIKMET, EM FRENTE, DE NOVO, AO MONTE ULUDAG

(para Vitor Silva Tavares)

 

Aquela que traz a lua maravilha-me,

venha ela de Salónica, de Esmirna, ou de Ankara

– fico-me a olhar-lhe a boca, aquela falha

clara que no fio dos dentes lhe ilumina o sorriso,

e sei que não há carcereiros que me tolham o passo,

nem prisioneiros que não possam libertar-se.

A ronda cinge o cárcere, o meu povo, no seu intenso

turco, tenta erguer-se da infrene dominação que o subjuga,

mas, entre os muros, o meu sonho vem dessa lua

que esta mulher me entrega quando ponho

os meus olhos nos seus e escuto o que me diz

como se estivesse a ouvir o coração.

 

Escuto-a e uma peça de prata toca a minha cabeça,

e assim ando a monte, assim a noite

é um vasto vidro despolido onde transito

quando o silêncio cresce nas masmorras de Bursa

e embranquece cada um dos meus cabelos por esta sedição

inominável. Não, não sou um fugitivo a correr as sete partidas do mundo

– quem me vigia sabe que sou um poeta

e que todas as palavras me pertencem, da Anatólia a Hatay,

de Istambul a Adana.

 

Ah, em Adana vi o cavaleiro turco

em busca dos mortos, de espada desembainhada, erguia

a bandeira vermelha e perguntava pelos gregos,

os gregos que dormem na terra da Anatólia,

a acusá-los sardonicamente,

porque se deitaram

ao lado dos turcos que morreram

na terra onde as magnólias florescem

sobre os telhados das casas.

 

Ali recitei o Corão, balouçando-me nos joelhos, para a frente

e para trás, depois do muezim entoar o azan

– que os meus pés descalços, a sua planta calosa,

mostrem por onde andei e como, em menino, ouvi

canções de embalar, poemas mevlevis, e deixei de ser crente

na esperança divina, porque tudo o que faço está para além

de qualquer recompensa, para além do temor do castigo,

e trago comigo um revólver carregado na algibeira das calças,

de que sou incapaz  de me servir, enquanto canto.

 

Pela causa posso cegar, ficar coxo, estropiado,

submergir pelos piores pesadelos, aguentar os nevões e o frio

da avenida Tverskoi, discutir com o amigo Maiakovski a envergadura dos versos,

ir de Tiflis a Kars, depois a Gálata e Pera, depois a Ankara, a enfrentar

o Tribunal Especial, e ser condenado ao segredo,

essa cúpula de alvenaria no meio da prisão com grades de ferro na janela,

mas sem vidraça, onde o chão é de cimento e neva dentro da cela,

e onde, a qualquer momento, posso voltar ao grande exílio,

posso voltar à avenida Srasnoi, onde bato

os pés sobre a neve e Fédia Seis Dedos, da bacia do Volga,

regateia comigo o tamanho dos peixes como se regateasse

o tamanho da fome dos seus doze anos sujos e esfarrapados,

a quem, com um sorriso, ofereço o meu último cigarro,

a lembrar-me da nudez das coisas, da raiva,

das mulheres de Alepo e de Salónica,

para, por fim, trocar com ele o pequeno peixe

que lhe dei em sigilo por outro um pouco maior.

 

Vá, agora, pergunta-me quem sou, afirma comigo

que há anjos incaptáveis e que nas estrelas arde o surdo

movimento do mundo, diz que nelas arde o implausível, e aos camaradas

de Esmirna nada mais resta do que a corda em que os enforcaram e os ossos

brancos pelo flagelo da amargura, enquanto eu me pergunto

como se enlaçam os destinos, que rumor magnético das pedras

nos une às platibandas que crescem sobre o mar – dentro das pedras

há pulsações, entranhas vivas, sedimentações de sangue, de humores,

tal como nos homens há alegria e tristeza, e nostalgia,

mas nenhum tirano há que me pacifique,

nenhum déspota com o seu gorro escarlate,

a sua cara estúpida,

as suas 800 concubinas.

 

Silencioso e concreto, o cavaleiro vermelho avança,

venha ele de Salónica, de Esmirna, ou de Ankara,

e eu, tal como ele, estou em toda a parte, a abrir buracos nas rochas,

a abrir buracos nos buracos, a abrir o peito

à afeição peculiar que me adensa o sangue

e mantenho em favor de quem vai comigo,

e olha a lua,

e sofre da fome universal

dos que nada mais têm que um desconcertante sonho de pão

na aridez implacável do deserto,

o pão que pertence à maioria, mas a maioria não tem

– digo que estamos de costas, que disparam sobre nós quando estamos

de costas, que o tapete está deitado de costas quando dorme,

que a casa, adormecida, está deitada de costas sobre o mundo,

digo que o mundo está adormecido de costas,

tal como as acácias estão adormecidas de costas na calçada,

tal como os olhos das janelas, dos telhados, da luz oblíqua que os toca,

tal como aquela que traz a lua e me maravilha,

venha ela de onde venha, com a falha clara

na fieira dos dentes a iluminar-lhe o sorriso.

 

Não nascera ainda e já a miséria me era insuportável, a vaidade asinina

seguia os carreiros de gravilha da Europa, ia Abdul Aziz,

senhor do Império Otomano, ao lado de Napoleão III, em Paris,

e eu via tudo, Abdul Aziz cevava-se

ao passar revista aos vinte e cinco milhares de tropas

no Arc d’Étoile, com as roupas europeias verde-escuras e o fez rubro

na cabeça, com a sua fraqueza, a sua idiotice, a sua ignorância, filho

de uma mãe prepotente, mas chefe de uma grande realeza,

bastando-lhe mover um dedo para mover marinhas e exércitos,

com o poder de vida e de morte sobre milhões, a comer, a dormir

e a espreguiçar-se, enquanto um exército de cobradores de impostos espoliava

o povo, a esborrachar-lhes as caras contra as barras, porque aqui é assim,

um homem rouba um pão e cortam-lhe a mão direita e a perna esquerda,

e pregam-no na praça para servir de exemplo.

 

Agarro-me ao concreto, estou a nascer,

os meus ossos estão, ainda, em formação,

quando tiver dentes porventura alguém mos partirá,

esta viagem é extravagante, não se sabe

o que decide a sorte de um poeta, serei um cão, uma raposa, uma cegonha,

nunca se sabe o que será um poeta quando alguma coisa falta ao mundo,

e, entretanto, passam uns anos na minha juventude e morre-se,

morre-se de verdade em Gallipoli,

entre os cadáveres dos turcos só há o ar pestilento,

só há as moscas grossas e verdes num enxame terrífico

a sobrevoar os corpos contorcidos, apodrecidos,

enquanto o que resta é só a ignorância dos poderosos,

a sua ganância, a sua sede incomensurável de domínio,

a acomodarem-se em sedas, a encomendar gráceis iluminuras

de minaretes e príncipes, de palmares e princesas,

enquanto a artilharia sobe de tom, sobe sempre de tom,

com os francos e os ingleses a morrerem-nos à frente dos olhos,

embora a nossa derrota pareça iminente e todos acabemos a tirar piolhos

das costuras das fardas e, para os cadáveres que se amontoam,

haja e não haja setenta e duas virgens para nos dar prazer.

 

Assim aconteceu mais tarde, aquando da invasão dos gregos,

que tudo querem de nós, querem, afinal, Bizâncio, o seu antigo mundo,

querem negócios estes negociadores implacáveis

que são capazes de negociar com quem lhes assassinou a mãe,

querem terras, um nunca acabar de terras que dizem pertencer-lhes,

o incêndio a alastrar em 1922, a fuzilar-nos:

a dominação fará de nós não mais que estrangeiros

na terra onde nascemos, uma terra de sultões e de paxás,

uma terra de linces desapossados de tudo, enquanto, nas trincheiras,

cheira a cadáveres, cheira a cordite, cheira a merda, cheira a mijo e a suor,

e chega ao auge o desejo de matar, nas granadas de estilhaços, no zunido

das balas, no baque das bombas, no seu ronco mortífero, enquanto a realeza,

longe da planície de Divrin, longe dos soldados sem rosto que só o cavaleiro

de gorro vermelho sabe quem sejam, se banqueteia com as escravas

circassianas, georgianas, eslovacas, núbias, e fumam o nagrilé,

e mandam que lhes preparem o banho, o chá de maçã, o café preto,

enquanto Salónica está perdida, e está perdida Esmirna, e Creta, e o mar,

e o mais que nos roubarem.

 

Eu ardo, afirmo-vos que ardo, pressenti que só se ardêssemos

a treva se dissiparia,

de cabo de guerra a paxá Musfatá Kamal será Atatürk,

herói dos Dardanelos, pai dos turcos, genocida dos arménios,

envio-lhe uma carta para que seja revogada a injustiça que sobre mim recaiu

enquanto homem e cantor resistente, mas não me sento à sua mesa redonda,

serei poeta continuadamente,

a cela é um vasto território de quatro metros quadrados de betão,

um universo para o meu poema e, por isso, todas as noites invento

um sopro para a noite, um sopro ardente,

e nunca há noite,

e sei que não há carcereiros que me tolham o passo, nem prisioneiros

que não possam libertar-se, ainda que me queiram enforcar,

quem sabe se numa árvore igual à de Guernica, calcinada

pelos bombardeiros alemães, ou algum arbusto

rasteiro de Adis Abeba imolado pelos italianos – se escravo sou,

digo que todos os escravos são virtuosos, pedintes, pregoeiros que sejam,

cavaleiros marcados pela guerra e pela morte sob todas as formas,

embiocados na máscara mortuária que a todos consome

e que nenhum dervixe rodopiante pode harmonizar, um poeta,

pese embora a malária e a disenteria, cantará para sempre.

 

Ah, o negrume da minha cela é luminoso,

os mortos mordem-me os pés, vejo-lhes o coração a bater

nos peitos destroçados, vejo as feras que os consomem e tomo partido,

estudei na universidade comunista e vou na grande onda

que ulula, e berra, e vocifera, e canta – levanto-me pelos mortos,

invectivo as forças obscuras, castigo a infâmia para além do inimaginável,

e o impensável é a queimadura da violência, o rufo das granadas, a rajada

das armas, o estrondo dos tanques, os esquadrões em linha como arganazes

domesticados a degolar à baioneta, a amontoar cabeças em cestos de vime,

a lançar gasolina sobre uns quantos camponeses capturados,

uns quantos deserdados,

a tocar-lhes o lume, a violentar-me,

a mim, que nunca estive na guerra,

mas nela estive todos os dias da minha vida.

 

Vá, afirma comigo o que ambos sabemos,

diz que és a nuvem que eu sou, que o comboio nos leva,

que batemos às portas consecutivas do mundo,

que depende de nós repartir o pão que não temos,

que os melhores dias são os que ainda não chegaram,

que é fácil esperar pela morte, assim como é fácil

abrir as grades pelo lado de dentro, ainda que pelo lado de dentro,

tal como pelo lado de fora, se possa erguer

um arrazoado de pistolas automáticas e haja carrascos

por toda a parte –  até dentro de ti, montanha.

 

Ah, aquela que traz a lua maravilha-me,

venha ela de Salónica, de Esmirna, ou de Ankara

– fico-me a olhar-lhe a boca, aquela falha

clara que no fio dos dentes lhe ilumina o sorriso:

e estou em greve de fome, a modelar na prisão

as estacas que se plantarão no globo, e sei que as crianças

levantarão os estores para que a luz circule à superfície da terra,

e com o luar chegue a luz da humanidade;

os estores, tal como as estacas, são negros, tal como a luz que aqui há,

mas em Bursa aguardo como um cargueiro ancorado,

virão as crianças e entregar-lhes-ei o coração,

este pobre coração talvez derrotado pela aterosclerose,

a nicotina, as dores de fígado, o infortúnio,

mas sempre vermelho como uma maçã, sempre vermelho

nas mãos das crianças que me sorriem do mundo,

crianças já nascidas e crianças por nascer,

enquanto eu morro em Moscovo,

com o luar no rosto, essa luz

que entretece a manhã e vem de ti, amada.

 

Um Pouco Acima da Miséria, 2014

 


TILIA PLATYPHYLLOS

 

As tílias, esse manancial de odores,

Com as suas sombras devolutas e acesas,

Chamam por mim, para que me lembre

Que tu, ainda que distante, estás aqui.

 

Eu abençoo as tílias, esta harmonia excelsa

Que a cidade alimenta à custa do erário

Dos sonhos que ainda restam, olhando-as

Como manancial ininterrupto de cintilações,

Irmãs dos mais íntimos brilhos dos teus olhos.

 

Quem inventou as tílias está doravante perdoado

De tanta coisa correr mal nas alamedas,

Crimes de sangue, estupros, o brutal drama

De uma criança desaparecida há meses,

A tua ausência, a cada dia mais insuportável.

 

O nevoeiro faz com que a paisagem

Seja um prolongamento do mistério se há tílias

Por perto, sombras que se adensam de luz,

Fulgurações que carregam de fogo a arte escura

De haver árvores assim, frágeis mas robustas

Na circum-navegação do mundo.

 

Por este renque de tílias acedo ao que de ti

Existe no universo paralelo em que eu existo

E sei que o teu cabelo tem este cheiro ameno

A árvores altas que, mesmo longe do mar,

É maresia que entregam, a extensa maresia

Em que mergulhas as mãos, este perfume

Que as tílias soltam, a estabelecer connosco

Um pacto divino.

 

Tal como tu, as tílias são divinas. Passei demasiado

Tempo sem saber o que seria o teu mistério,

Que sortilégio te habita, até que soube

Que ias pela noite recolher o fascinante aroma destas árvores

E o colocavas no mais recôndito lugar do teu coração.

 

Só alguém divino pode decifrar o enigma

Que nas tílias arde, só alguém como tu

Pode conhecer a substância pagã que em ti persigo,

Sempre que ando em volta das tílias dos meus sonhos.

 

Só alguém como tu pode estabelecer um tal pacto

Com a realidade e com a irrealidade, talvez porque,

Apesar da tua silhueta de corça ou de gazela,

És como as tílias, estas árvores frondosas

Que a natureza acolhe como princípio

E fundamento de tudo quanto existe.

 

Não sei se és tu quem vai pelo caminho das tílias

Ou se são as tílias que construíram o caminho onde passas

Para que tudo tenha algum sentido. Não sei

O que serei sem o benefício da sombra destas árvores

Que fazem da luz a amenidade do teu corpo

E a bênção procurada desde que me conheço

E não sei de mim, pelo devastador silêncio que me cerca.

 

Não sei que nome tem esta casa de bálsamos e sementes,

Onde cada fragrância corresponde a uma porção de ti,

O tronco o teu peito, as folhas os teus lábios, as raízes

Tudo o que cresce além de ti no teu espírito,

O espírito das florestas e dos bosques, o espírito

 

Que habita a secreta densidade do teu sexo,

O jardim das delícias a que acedo quando enlaço

Cada um dos teus ramos, cada um dos enigmas

Que te descrevem. Sei que agora falo com as tílias,

Este deslumbramento de árvores que responde pelo teu nome.

 

Sei que agora não mais falarei só, que tu e as tílias

Respondem ao que pergunto e que há um odor poderoso

E inebriante na claridade que entregas,

Igual ao destas árvores que nos amam.

Livro colectivo Terra, Fundación Vicente Risco, A Coruña, 2015


SONETO EXPOSTO

 

Os desengonçados trânsitos cavernícolas.

A eterna crise com os dentes afiados.

Um país de paisagens marítimas e vinícolas,

em que uns são filhos e outros enteados.

 

O recorte da serra na distância.

Os pardais semoventes sobre as praças.

Alguns homens sombrios com a ânsia

de não serem roídos pelas traças.

 

O redil organizado como um caos.

Uns quantos menos bons e outros muito maus.

Uma planície, uma cidade, um chaparral.

 

E em volta disto o mar, sempre indiferente

do que queira ou não queira a sua gente.

E fica no soneto exposto Portugal.

Livro colectivo Voo Rasante, Lisboa, 2015


Ver-te dormir, esta última noite:

tens o mesmo sorriso de sempre,

o sorriso de quem está acordado.

 

*

 

A praça de S. Marcos recebe-te com o aplauso

de um ligeiro aguaceiro. Na esplanada

do Gran Caffè fica o timbre da tua voz

a invectivar a praga de turistas japoneses

que chegaram no Mediterranean Princess

esta manhã e que, como tu dizes, não desarmam.

 

*

 

Vivaldi veio aqui com as suas noventas

órfãs tocar violino. Nos teus olhos

a música instala-se e sorris

como se estivesses adormecida.

 

*

 

O vento despenteia-te ou és tu

que despenteias o vento? Na tua mala

guardas todos os utensílios necessários

à logística da brisa.

 

*

 

Só mesmo tu podes comer uma fatia

de pizza com donaire. A tua língua

miúda é o adorno que falta a qualquer boca.

 

*

 

Ao fim da tarde só existes tu

e um infindável acervo de jornais.

A lídima Europa não sabe o que fazer

a tanta população desempregada e transformas

a pergunta de Montale em afirmação veemente:

Credi che il pessimismo sia davvero esistito!

 

*

 

Na água podre do canal ocultam-se

reflexos de ouro: os teus cabelos soltos.

 

*

 

Aqui vamos, com as mãos desirmanadas

e o coração gasto por escolásticas e afins.

Sabíamos como todas as paixões são peripatéticas

e que o amor acabaria um dia, embora não aqui,

entre a ponte de Rialto e o Museu da Ca’d’Oro.

Agora, sigo atrás de ti, como um gato sem sombra

num beco sem saída enquanto a tristeza ilumina Veneza

e a púrpura se transforma em cinza.

Fragmentos de Veneza, 2016


DEPOSIÇÃO DAS CINZAS DE LUÍSA DACOSTA
NAS ÁGUAS DE A-VER-O-MAR

 

Não sei, querida, se de onde estás agora

consegues ver o mar.

 

Não sei se nesse lugar os teus amigos

te visitam e entregam finalmente

a faca que aos gritos reclamaste

na casa onde estavas para morrer.

 

Não sei se o céu te recebeu e agora tudo

não é mais do que uma letra

que falta contornar.

 

Onde estás escuta-se o Nocturno

para Orquestra, op.70, de Martucci?

 

As aves são as mesmas que tu viste

a progredir no azul da praia?

 

Há aí crianças?

 

No termo dos teus dias pedias aos amigos

uma faca para te matares.

 

Uma razão benigna cobria-te o espírito

porque o que tinhas era insuportável

e não há o que tenha gumes mais desesperados

do que a lucidez.

 

Quem morre há-de saber o que encontrar.

 

Após a luz uma outra luz existe,

que é mais profunda e chega de mais longe,

o oculto brilho que habita a faca que pediste.

 

Com muito poucas sombras à tua porta,

tu cerzias a escrita, enquanto os pássaros

te tocavam a cabeça

e um esbracejo de mulheres se afadigava

a estender a migalha de sargaço

que a nortada trouxe.

 

Sabias bem como atravessar os campos da noite

e que, algures no tempo, deixaremos

de cá estar para registar a perda.

 

Sabias bem, querida,

que na polpa do corpo só o desejo resta

e que a sede permanece e não se extingue.

 

Subiste às árvores durante toda a vida.

 

Por ti subiu o fogo e às águas vens,

para que o tudo e o nada se consumam

e de ti façam uma árvore de vento.

 

A tua escrita, querida, ficará

cerzida a essa árvore, com a bênção

das marés que hão-de vir,

onda após onda sobre o areal

de tudo quanto amaste.

 

A palavra é sagrada,

escreveste, um dia.

 

E assim há-de ser para todo o sempre,

até que nunca mais haja partida.

Revista Eufeme, nº. 0, s/l, 2016


LUDWIG VAN BEETHOVEN, ÚLTIMA FUGA

 

Vejo-me ao espelho, o mundo não é esta

multidão de objectos à minha frente, a maçã

pousada no peitoril da janela, as cascas

de ovos espalhadas pelo chão, este rosto

que a rebeldia vai envelhecendo

enquanto a voz de Deus me atinge

para que tudo seja música e silêncio.

O que vejo não é mais do que uma selva,

o meu cérebro fervilha e sei como me apraz a solidão,

estes passos pelo quarto medidos em fusas

e colcheias, que me levam para além

da surdez, para além do enigma

que cada coisa tem no indizível plano

a que pertenço. Viena a esta hora

é só desolação, abro a janela e o espelho da noite

dá-me a ver os cães e os lobos que me cercam,

uma brancura a perder de vista em cada árvore,

em cada rua, em cada cripta. Por mim

componho o que é possível pressentir

da alegria, a ferros é que arranco do universo

esplêndidas sinfonias, incêndios

formidáveis, um rastro de luz que me arrebata

o coração para que tudo o que faça

seja mais divino. Gela-me e aquece o meu sangue

o desassombro, enregela e escalda a música de que vivo,

certo de que a morte não me apavorará,

nem por ela serei colhido de surpresa, assim que venha.

Se há coisa que é imortal, se entendo

o que seja a imortalidade, direi que não mais será

do que quanto se amplia no rastro das orquestras

e eu ajusto nas intermitências que chegam

ao meu ouvido pelos sinuosos arrebatamentos

que desafio. Sei que sou uma ponte, o que

a treva procura, o que não reza nunca

mas prolonga as orações para que a beleza irradie

e intensifique o espírito dos que erram

e possa haver um sentido em tudo à minha volta,

não mais do que o sentido de estar perante Deus

a ouvir sortilégios e a entregá-los

a quem mais nada pode que sofrer.

O tempo é um equívoco, o mais próximo

que encontro de um espelho, no peitoril

da janela e no chão, maçãs e cascas

de ovos que lá estejam, mais não são

do que as minhas obsessões, a procura

de uma vizinhança com as coisas

que derrubem as fronteiras, me aproximem

dos outros, por áridos que os veja,

por  mais ou menos valia que possuam.

Sobre o silêncio sei que tudo escuto, velas que ardem,

buganvílias brancas, pedras que se levantam

como se estrelas fossem, anjos que parecem

camponeses, mulheres de branco que mais não são

que anjos, homens que dançam à roda das fogueiras

para que o louvor seja um triunfo e o coral

não mais do que a força que reprime a dor

e a vence para sempre. Alegria, alegria,

alegria – repito para mim mesmo.

E os meus tímpanos faíscam, estou surdo

e ouço o ar que atravessa os ossos,

enquanto leio nos lábios de Anne Holtz

a formidável transformação do mundo

e os sons circulam pela pauta, pelo meu

crânio, pelos confins de mim mesmo,

pela erva segada que a meus pés se amontoa,

pelo pouco que me vale a corneta acústica

que me assiste. Alegria, alegria, alegria –

exalto-te como quem exalta a liberdade,

como quem sabe o que dói em cada transe,

cada achaque, cada depressão, cada exílio

de que usufruo no desespero de não ouvir

o canto do pastor, o longínquo som da flauta,

o ramalhar das árvores, o ruído dos passos

na neve que a cada instante cai, em Bona,

em Viena, no universo. Ao longe passa

um bando de cavalos, a catedral destaca-se

no infinito azul, a tremulina recorta

os bons e os maus, esses que Schiller

canta e são meus irmãos de graça

e de desgraça. A alegria expande-se,

crepita nas alegadas doenças que me matam,

cirrose hepática, sífilis, congestão

dos centros auditivos, o que seja

que lentamente me envenena, os desgostos

que a vida conglomera, as venais ilusões

de um homem como eu, genial e indómito,

sozinho para sempre e para sempre

acompanhado de lieds, de sonatas, de concertos.

Vejo-me ao espelho, o mundo não é senão

essa transfiguração que reproduzo, sou leal

a mim mesmo e a mim mesmo traio,

o pesadelo é, apesar de tudo, poder compor

o sonho –  a maçã, de vermelha que foi,

volta a reverdecer, as dispersas

cascas reúnem-se para que voltem a ser

o ovo que já foram, mas sempre diferente,

sempre discrepante da antiga ressonância

que revigora o passado, o presente e o futuro,

o poder da música que ainda não está escrita

e há-de pôr este quarto a arder de novo.

Amanhece, entre a janela e o espelho

não tenho escolha, os gatos ronronam

na proximidade do lume, lambem as crias,

perseguem-me as dívidas e busco o infinito,

os habitantes de Viena são figuras pungentes,

quanto mais o föhn sopra mais os põe resignados,

o arquiduque, os clérigos, a aristocracia

deslavada, o povo que mais não pode ser mais

do que povo, defectivo, risível, irrisório,

o estalajadeiro Krenski que serve carpa

sempre com espinhas, o senhorio preocupado

com o barulho, as vivandeiras que aguardam

o lucro da guerra, esta vida de fel

e de doçura que faz de mim quem sou,

não sei bem se renegado, se implacável

na dissolução que nunca acaba.

Abro a janela, sinto-me bem a abri-la

e a ser tocado pelo frio, aspiro a um mundo

em que só haja janelas para abrir

e para fechar, acurado por elas

talvez os meus ouvidos se abram e possa

Deus entrar em mim ainda com mais força,

a empolgar-me o espírito até à exaustão.

A nada me sujeito, mas à música e ao divino

devo tudo, as oportunas fendas do sagrado

a que acedo para o êxtase, as vértebras

dos dias, o rosto das crianças, a luz,

a memória, a imponência. Abro a janela

e vejo Anne Holtz a atravessar o pátio,

o chão fumega, a claridade vem com ela,

não é fácil encontrar a magnificência

entre os meus semelhantes, mas esta mulher

tem um puro temor nos olhos, apazigua-me

o seu sorriso embaraçado, como que a medo

progride pela névoa, lembra-me Elise, Julieta,

Teresa, Bettina, os amores que me tresmalhou

a vida, talvez por ser irascível e agreste

pela paixão de compor com as entranhas,

todas elas distantes desta mulher cândida

e singular, esta estrela de Deus que me ilumina.

Sinto a vibração dos seus passos na escada,

chegou para acender o fogão, despejar o bacio,

fazer cópias das minhas partituras e, sem que o saiba,

velar o meu sono e a minha morte, humilde

amante a quem jamais me declararei. A alba já se foi,

ignoro o que me trará esta manhã sombria,

permaneço entre a janela e o espelho,

alguém segura a minha mão, a beleza, Deus,

o que seja, a música a que tenho que voltar,

a morte que pressinto e que me ronda

e eu enfrentarei com os olhos bem abertos.

Alegria, alegria, alegria. Nenhuma tonalidade,

molto adagio, sotto voce, primeiro violino,

semi-mínimas, do dó central até ao lá.

Compasso. Manhã inicial e derradeira

manhã – acção de graças!

Revista Eufeme nº. 2, s/l, 2017


RIMBAUD

 

A cada um de nós cabe um mistério,

ainda que esse mistério seja o da Abissínia

e na Abissínia nunca haja nada,

terra, montanhas, pedras, abandono.

 

A vida em frente é uma faca de aço,

um ângulo que se compra ou que se vende.

Não mais que o impossível impossível,

o espírito e o corpo estilhaçados.

 

Na escuridão só a febre resta

e o mistério que nunca se alcança,

um brado ou uma voz que se não ouve.

 

Tudo se turva, armas, escravos, sonhos

e vertigens, versos de poemas nunca escritos.

O infinito que arde na Abissínia.

Lógos Biblioteca do Tempo, Nº 3, s/l, Setembro, 2018


LEONARDO DA VINCI: RETRATO DE GINEVRA DE’BENCI 1478-1480 

 

Eis a música e eis a poesia.

 

São representações

do invisível e a ambas podemos aceder pelo mistério.

 

Dedilho a lira, pinto o junípero,

e sei que o enigma se funde

aos meus sentidos, tornando-o físico

e tocável, pela nitidez da imagem do arbusto

ou pela vibração da corda que o meu ouvido

capta como erupção da beleza e da virtude,

tornando-as incomensuravelmente visíveis.

 

E assim é com o rosto de Ginevra e o seu olhar,

que do quadro nos chega, a prolongar-se, abstracto,

invisível, no espaço e a fazer, dos olhos fixos,

prenúncio de alguma coisa tão inexpugnável

como avassaladora, tal como a beleza é e a virtude.

 

Construo pontes, leves

e fortes, tenho métodos silenciosos

de escavar túneis, esboço máquinas de guerra

e naves voadoras, mas, neste retrato,

mostro o intervalo do silêncio,

a rosa fluente e aérea que habita o invisível

em sortilégios de astros, próprios da vida

e da morte, sendo a invariável destas forças

o amor, a sombra de aço escuro que nos une.

 

O rosto é pálido, redondo, melancólico,

as pálpebras pesadas, e o cabelo, ruivo,

desenha-se em pequenos caracóis, a contrastar

com o olhar felino a sondar a distância

em denso alheamento, como se nada mais

houvesse que essa extensão ou esse alheamento,

igual à do amor, igual ao da afeição,

igual ao que é secreto e obstina.

 

Sentimos pelos sentidos e é pelos sentidos

que conhecemos,

ainda que invisíveis

sejam sempre algumas pontes

e haja sempre a solidão perante nós

e, por ela, terríveis e ingénuos juramentos,

feridas que não fecham, paixões inusitadas,

experiências sumamente dolorosas,

se é de amantes separados que falamos,

de desgostos profundos, de música, de poesia.

 

Eis as fibras sensíveis

do poema, a lira que se tange, a sortílega

folhagem que recorta na luz esta mulher

assim muito invisível, assim muito visível,

como um tigre.

Poemas de Leonardo, 2018


  TESTAMENTO DE LEONARDO DA VINCI 

(para António Ferra e Armandina Maia)

 

Eu, Leonardo, nesta tarde de Abril,

perante Guillaume de Borian, notário real,

e sete testemunhas,

Melzi, Battista, dois sacerdotes franceses

e três frades franciscanos,

no desforço do exílio,

a aprender a vida, ainda, e a morte,

com os meus óculos azuis de metalúrgico,

sentado a uma mesa, absorto

como um problema geométrico,

com os cadernos à mão e no pleno uso

do que me foi facultado mentalmente,

digo uma vez mais que os pensamentos se voltam para a esperança

e peço que se anote o que aqui determino para quando o grande mar,

ou o sono derradeiro,

chamar por mim em Amboise,

esteja ou não esteja sua majestade,

Francisco I, de França,

a amparar-me a cabeça quando eu adormecer,

depois de ter comido a sopa de vegetais de Mathurine

e entendido por que razão um vento que passa pelos tubos

produz um som agudo.

 

Registai isto:

 

o mal da morte é que não há como retroceder,

sendo que nesse retrocesso poderia

o espírito ganhar alguma coisa no porvir,

servindo ao corpo e às suas destilações subtis de pensamentos,

pelo que peroro não ter a minha perfeição

contentado a Deus como devia, já que eu,

a observar a chama que há na vela

e depois não há para que outra chama haja,

perdi tempo demais e não pintei o que podia ter pintado,

havendo alguns que afirmam que, como Apelles,

só pintei o que não podia ser pintado,

do que me não arrependo agudamente,

pelas forças invisíveis da tempestade,

os seus tumultos,

as suas cordas de água,

sendo que nada mais há para lamentar,

uma vez que só me alimentei de arroz, leite

e outras vitualhas inanimadas.

 

Não parecendo, sublinho que sempre estive a favor de Deus,

e procurei, no segredo dos meus sonhos e dos meus voos,

encontrá-Lo,

pondo-lhe uns feijões brancos algumas vezes

e, outras, pretos,

tendo-O procurado em lugares estranhos,

juntas de músculos,

voltas de intestinos,

raízes de cabelos,

órgãos genitais,

pedaços de unhas,

fetos,

clarões extraordinários

nos visores das fornalhas de metal.

 

Se O ofendi, e à humanidade,

peço perdão,

por não ter trabalhado mais na minha arte.

 

Deseja a minha alma permanecer com o seu corpo,

pois sem os instrumentos físicos do corpo a alma nada pode

e o meu instinto diz,

desassombradamente,

que tudo deve ser verificado e posto em causa

antes de ser considerado verdadeiro.

 

Dormir, esquecer, nada sentir,

eis o que a morte é e o sentido

aristotélico do meu tempo rememora,

sendo que bem preferia um renascimento,

talvez com o mesmo corpo,

sem dúvida com o mesmo espírito,

podendo a alma derivar em outros sismos luminosos,

outra brisa a sacudir as árvores no meu corpo,

que tanto me ajudou e de que me orgulho.

 

O que possuo é o pouco que não posso levar

e não vendi.

 

Todos os livros que são propriedade do testador vão

para Messer Francesco da Melzo, cavalheiro de Milão,

e os instrumentos e os retratos que fazem da minha arte e dom de pintor,

bem como o que sobrar da pensão e todas as quantias

em dinheiro que lhe são devidas desde o passado até à minha morte,

e todas as roupas que possuo no lugar de Cloux.

 

Para Battista de Vilanis, meu criado,

deixo metade do jardim que possuo às portas de Milão, e o direito à água

que o rei Luís XII, de piedosa memória, me concedeu,

ou seja o troço do Naviglio di Santo Cristoforo,

e todos os meus móveis e utensílios da casa que agora ocupo.

 

Para Salai, a outra metade do mesmo terreno,

no qual já construiu uma casa

que deve continuar a ser sua propriedade.

 

Para Mathurine,

sempre fiel e afável,

além de excelente cozinheira,

lego uma capa de bom tecido debruada a pele

e uma outra peça, singela, também de tecido,

e dois ducados, num único pagamento.

 

Para os meus irmãos fica o depósito que está em Santa Maria Nuova,

em Florença,

bem como todos os seus juros e usufrutos,

declarando que não tenho dívidas senão aquelas que são inconfessáveis,

mas que eles desconhecem,

tal como eu.

 

Se a Zoroastro omito

é porque Roma transtorna qualquer um,

se bem que ele tolere com aferro o solar brilho

e D. Miguel Silva, o cardeal português,

árbitro de toda a elegância no precinto vaticano,

em casa o agasalhe, sendo preciso,

e a ele, Tomasso de Giovanni Masini,

aliás Gallozzolo, Alabastro, Indovino, Zoroastro, et al,

há muito já deixei o coração e a amizade,

bem como porções de rosalgar,

meimendro branco e acónito,

para as suas retortas.

 

No mais, não quero pompas.

 

Que o meu cadáver repouse na igreja de St. Florentin,

mas, ao fim de algum tempo, peço que percam os meus ossos,

e a robustez do meu crânio com outro crânio seja confundida,

para que maior enigma haja, maior mistério,

e a chusma de néscios não discorra outra beleza

senão aquela que o meu legado artístico constitui,

se for o meu legado de permanecer.

 

Comprem sessenta círios e distribuam-nos

por sessenta pobres,

que receberão dinheiro para os levar a acompanhar o féretro,

e mandem celebrar três missas ordinárias e três solenes.

 

Queimai, em velas grossas,

40 libras de cera

nas igrejas onde as missas forem celebradas

e nada mais.

 

Sendo possível,

quero ficar junto a uma parede,

mas onde haja luz e nenhuma protecção para a ventania,

mesmo a malsã,

porque senti nos ventos auspiciosa indústria

e deles é, provavelmente, o clarão das coisas,

o movimento fecundo que é a vida.

 

A tudo e a todos perdoo tudo,

mesmo a meu pai perdoo a distância prudente,

sendo que os meus litígios e os meus ódios

se acertaram em corpos juntos,

rações de expectativa,

feridas insones,

e há-de sempre haver um momento em que o mais

já não importa.

 

Há a bondade,

os regatos

e a música,

e só os autómatos não perdoam nunca.

 

Ao exalar o último suspiro

lembrar-me-ei de Vinci

– o ar é lá bastante –

e de minha mãe,

que presumo há-de sonhar,

quando eu morrer,

que lhe nasceu um filho

e, frágil como a erva,

despontará no paraíso se eu não souber

onde estou na escuridão da morte e a chamar.

 

Peço que me lavem e perfumem

com âmbar e flor de laranjeira,

que me penteiem a barba,

e protejam as mãos porque ignoro

se o eterno permanece ainda incriado

e umas mãos valiosas,

como as minhas,

podem servir para alguma coisa à eternidade.

 

Aos mais pobres entre os pobres

se distribua o meu gibão e a minha capa,

mas não os meus cavalos,

que, como é sabido, ‘cavalos são cavalos,

não podem ser distribuídos’*,

e guardem os meus escritos bem guardados,

para que me não roubem o estro depois de morto

e venham a voar antes de mim

ou, inclementes

com as minhas invenções,

façam o mal o que por mim foi feito apenas porque quis,

no tremendo universo,

perdurar.

 

Haja o que haja de meritório no que fiz,

a ser possível,

não o esqueçais, jamais.

 

Crepita a lenha velha,

mas em poucos cânticos ouvi

que fosse louvada a carne ou a cegueira

de quem viu demais.

 

Eu vejo.

 

Eu não vejo.

 

O que é que vejo?

 

* Cf. Robert Bringhurst: ‘Horses/ are horses. They cannot be given away.’ (in A Beleza das Armas, Teorema, Lisboa, 1994).

Poemas de Leonardo, 2018


NO ANIVERSÁRIO DA MORTE DO RUY BELO

 

faz hoje anos que o ruy belo morreu.

nem imagino o que seja morrer um homem

a despenhar-se na cama, recém-chegado do mar

 

com o seu fato de mergulhador e os olhos cheios de peixes.

não imagino o que seja deixar de respirar um poeta,

ainda que saiba que sofrerei a mesma paragem

 

cardio-respiratória e também cairei de bruços sobre a cama.

faz hoje anos que o ruy belo morreu.

nunca o vi, nunca lhe ouvi a voz, nunca observei

 

a caprichosa sinuosidade da sua caligrafia, mas

amei este homem muito mais que amei meu pai

e minha mãe, digo-o tal como o sinto, sempre o senti

 

assim e assim o escrevo para que ressoe através de mim

como uma palavra sussurrada no capacete de um escafandrista

ou num coração. faz hoje anos que o ruy belo

 

morreu. deve ter sido num dia de muito calor, igual a este.

a coberta em que repousou a cabeça seria como esta,

verde-esmeralda, espessa e clara na exiguidade da cama

 

em que caiu. amei este homem, amo este homem

como a um irmão. presto homenagem

às suas dores mais dilacerantes, iguais às minhas, talvez,

 

ainda que um tudo nada mais graves, um tudo nada

mais agudas as que manteve, enquanto a pátria,

a serôdia pátria que tudo amesquinha,

 

lhe fazia o ninho atrás da orelha

e lhe espetava a faca nas costas com a habitual

agilidade com que a pátria mata os seus poetas,

 

o ruy belo e uns outros tantos, inumeráveis,

que o rol é demasiado grande para tão pequena pátria.

faz hoje anos que o ruy belo morreu. presumo

 

que uma nuvem lhe subiu à boca e lhe turvou o olhar,

uma nuvem de mar, ou de peixes, uma nuvem

verde-esmeralda. tudo foi instantâneo e quieto,

 

um alvoroço parado, uma tranquila vertigem.

essa nuvem inundou-lhe o quarto, a cama, a carne, a boca, os olhos,

enquanto pensava que deveria escrever algumas cartas

 

que esperava o não levassem à desonra de ter que roubar para comer,

num país que desde sempre mata à fome os seus poetas.

faz hoje anos que o ruy belo morreu. todo o silêncio é pouco para assinalar

 

esta perda, por mais que uns poucos a venham alardear

na configuração da noite que aqui se pôs, sem qualquer esperança

de manhã. eis o que digo tal e qual como sinto esta morte, ainda que

 

não seja escafandrista e tenha visto a consolação ao longe,

suspensa de um nevoeiro de abismos, demasiadamente perto

da nau dos corvos da nossa existência, uma praia cheia do nosso esterco,

 

cheia da nossa solidão, onde sempre nos caberá mergulhar

na morte para que a cabeça penda sobre o peito, sobre

a cobertura da cama verde-esmeralda, enquanto tudo em volta

 

não é mais que uma noite que nos fecha os olhos e a interrogação

inapelável nos confirma que de tudo morremos, vencidos

mas não convencidos de que o último inimigo seja a morte,

 

porque há ainda o que se não concilia, o que nos confronta na barbárie,

o que redime das sombras e põe um enunciado de estrelas

no que se escreve. faz hoje anos que o ruy belo morreu,

 

entra agosto nos seus inícios como um mês comum à nossa morte,

não mais que uma circunstância para forçar a guarda, levantar

as mãos acima da cabeça e, por uma vez, objurgar

 

quem lança um olhar estranho sobre nós sem que saiba

que os poetas não morrem, por mais que o lixo se amontoe

à nossa volta e o que é ignóbil nos magoe.

Revista Eufeme nº 7, s/l, 2018


FELATIO

 

Uma bela noite. E eu sem saber

Se tenho alguma coisa para te dar.

Mas tu insistes com a tua boca ardente,

A branca escadaria dos teus dentes,

A língua túmida, a esperar que possa

Vir de dentro de mim uma resposta

Ao que tu nem sequer sabes se existe.

E tu persistes, a abrir as ondas infinitas

Dos teus lábios, a agitar o mar

Que guardei algures no coração,

Mas não sei se possuo ou ofereço.

Mas tu porfias e à noite juntas

Os teus humores, essa saliva espessa,

A fecunda manada dos teus cabelos

Que, como um céu, se desata

Sobre mim, a fazer-me abrir

Todos os ferros que os meus segredos

Guardam. E tu perduras e gemes

Enquanto procuras os brilhos

Que nos meus rins se expandem,

Sem que saiba se os tenho ou os entrego.

E instas para que um jorro de estrelas

Te alcance e te atinja no deleite

De assim entregar até o que não tenho.

Revista Piolho, nº. 27, s/l, 2019


CUNILINGUS

 

Aqui encontro uma causa particular

Do universo, um modo de te perguntar

Quem és e a que temperatura ferve

O teu sangue. É um terraço onde pôr

A boca quando procuro o teu nome,

Alguma coisa que expluda sob a neve

Que a madrugada trouxe. Um terraço

E um pátio, eis o que aqui encontro.

Um lugar húmido onde a viagem

Se inicia e sobe e desce pelo teu corpo

Como um pássaro que voa no orvalho

Para encontrar a praia, a estrada, a árvore

Onde o mistério se acumula e o sortilégio

É um licor sedoso que amacia a língua.

Aqui encontro a gruta e a clareira,

O golpe fulgurante, o vulcão adormecido

Que de súbito desperta e entrega ao dia

As inúmeras razões de que a vida é feita.

Um pátio, um corredor e uma lura.

Uma rosa de aromas a desfrutar

Como se de um vínculo se tratasse.

Eis o que aqui encontro, um rio

A acariciar, um vento que me afaga,

O vaticínio com que posso aceder

Ao teu coração luminescente.

Revista  Piolho, nº. 27, s/l, 2019


NA MORTE DE ALEXANDRE VARGAS

 

Sabemos o que somos nos nossos corações,

ou não sabemos? Como amamos com tanta

ignorância, como escrevemos versos, como

preparamos os lances da nossa joalharia

para que possamos fazer do esterco um rastro

que ainda assim desconhecemos se é

algo pior do que nós ou somente um fugaz brilho

da beleza ou da alegria? Como deixamos

que dentro de nós circule o sangue dos que amamos

para depois ficarmos impotentes pelos que partem,

esses que ainda agora estavam connosco e já não estão

para ouvir esta noite Pablo Sarasate? A que venenos somos

imunes, a que antídotos? Nem deus nem nós bebemos

as sombras das galáxias, os utensílios da nossa cozinha

são escassos, uma malga de esmalte, uma colher

de prata, uma faca a que o tempo foi tirando o gume

e nós quisemos que permanecesse romba

para que alguma coisa ilesa fosse entregue por nós

como herança e como testemunho aos que depois

vierem comer à cósmica solidão em que morremos.

 

Sabemos o que somos nos nossos corações,

ou não sabemos? O que fazemos do estupor

que nos doaram, a maldição e a bênção

de estarmos acordados quando é o sonho

que queremos, o sonho de dormimos sossegados

de mão dada com alguém desconhecido,

esse ópio benevolente e casto? Como entendemos

o rumo da elegia, o fragor dos clarões no horizonte,

a face que perdemos e encontramos?

A que fascínio de súbito nos rendemos

e de que mar levamos para casa o abismo,

as suas águas densas, as águas negras

da nossa aflição sublime? A praia estava perto,

havia cães que uivavam entre as dunas,

desconhecíamos que servidão vinha

aos nossos dedos, essa navalha que nos abria

as veias e nos cegava para que víssemos

mais perto o que era longe, as pedras

e as portas que nunca se abriam à extensão

dos dedos, ao azul de exílio e medo.

 

Sabemos o que somos nos nossos corações,

ou não sabemos? Como reconhecer o tempo

que em tudo nos transforma, instante, eternidade,

esquecimento, as sublevações do início

do mundo, estes papéis em que inscrevemos

o que nos comove  e emociona incompreensivelmente

e não sabemos muito bem onde guardar,

na mochila, na carteira, na cabeça, no olhar?

Como transigir perante o manso e o bravo,

o monólogo com o anjo, o solilóquio com as atribulações,

a paixão, o amor, a crença e a descrença, a arma

de fogo que apontamos ao peito para nos

conhecermos? Sobre os baixos ruídos do areal

as pedras erguem-se rodeadas de dálias

e filodendros, as palavras retêm a distância

mais curta entre nós, à nossa frente vai

um distúrbio de cavalos, segue com eles

o nosso espírito, somos seres precários, raros

como só os poetas podem ser quando vigiam

o estrépito da vida, essa fragilidade.

 

Foi aqui que a cabeça tombou,

que nos apanhou a morte em flagrante.

Foi assim que o estertor incidiu sobre a respiração,

para que tudo acabasse e a garganta escurecesse.

A morte é omnívora, nem um urro lhe ouvimos,

um movimento fugidio, em espiral, assinala-lhe

as sombras invisíveis, nem sequer pressentimos

o seu excruciante arrepio sobre as nossas

vacilações, enquanto olhamos as estrelas

cadentes, as estrelas que calcamos aos pés

na grande estrada da vida, as estrelas

que acumulamos nas têmporas, nas nossas

florestas. Foi assim que se desfez a luz

e consumiu o que foi expectante e palpável,

o que em crianças não conjecturávamos,

árvore presa da noite, tigre, ruína vertiginosa,

lenta, a cerzir o derradeiro frio à nossa volta,

essa corrente branca, esse baldio omnipresente,

essa infância. Sabemos o que somos

nos nossos corações, ou não sabemos?

 

Sabemos o que somos nos nossos corações,

ou não sabemos? Como podemos reconhecer

que seja este o caminho, com os pássaros em fogo

e os pés ensanguentados, a pretender que a fuga

se inicie, ou se mantenha, ou que por uma vez se encerre

porque a vida é uma desvantagem quando a poesia

que nela encontramos é uma dor, um silêncio, uma queda,

um castigo a que não resistimos? Como admitir

que as rosas murchem, que nada mais se escuta

quando a morte sobrevém, que nada se aguarda

e nada se demanda no que nos distingue

como frágeis animais que a música circunscreve

ao que o deserto confina com o céu? Ah, a doçura,

o musgo, os líquenes, o húmus, os ímpetos

que nos proclamam a vulnerabilidade perpétua,

os quartos fecham-se, fecham-se os lençóis

sobre os nossos rostos e o breu é total,

esta pulsão nocturna, esta noite que brilha,

esta despedida de quem foi tomado pela peste

e por essa inocência há-de lembrar-se.

Revista A Ideia, nº. 587/88/89, Évora, 2019


PIETÀ, DE MIGUEL ÂNGELO BUONARROTI

(para Ruy Ventura)

A virgem cinge no colo o corpo

morto acabado de descer da cruz.

É nesse instante que o tempo pára

e tudo fica suspenso para sempre,

o manto, a graça, a boca amarga.

Tudo o que era claro nesses olhos

é agora um desassossego negro

a pairar sobre as pedras das falésias

e a prender-se às nuvens sobre os montes.

Acreditou na criatura de luz

das aparições, nas desarvoradas

palavras que lhe foram ditas, nos ecos

que, longínquos, prenunciavam

a salvação do mundo. Agora sente

que não pode sentir o que suporta,

um nó no corpo, uma aflição

sem fim, um torpe desacato

sob o peito, um soluço violento

na garganta, os pulmões sem ar,

a cabeça presa de um remorso

que não acredita poder ser seu.

Está no escuro e quer saber

o que o escuro seja, em que ardis

se enredou, com que logros

a si mesma alimentou quando quis

acalentar a alma do menino

e admitir o que pressentia.

A dor trespassa-a e não pode suster

nos lábios qualquer som, a transparência

deixou de existir, não tem sangue nas veias,

tudo são horas perdidas, passos perdidos,

apreensões e ânsias pelo que disse

ser a verdade, o caminho, a vida.

O mais fundo do fundo que há em nós

não se alcança nunca, a carne

é erva, como está escrito, no universo

os nomes são em vão, e as súplicas,

e o senso das coisas que o poder transcende

para submeter, sem que apazigue

nunca. A partir daqui nenhum

outro caminho pode esta mulher,

nenhuma alegria, mais nada pode

fazer do que seguir pela estranheza

de tudo estar em ruínas e não haver

salvação na salvação esperada.

Há um momento em que a verdade

deixa de importar, um momento

em que tudo em que se acredita

deixa de ser laço e é só silêncio,

vazio, mágoa –  a serpente

vence-nos, derrota-nos, expurga-nos

dos vínculos e dos compromissos,

apedreja-nos como a uma esposa adúltera,

agride-nos o rosto, as entranhas, a dor.

A luz que outrora viu não a ilumina agora.

Cinge no colo o corpo do filho

acabado de descer da cruz,

o filho amado, o filho em que depôs

todo o alento, o filho que no sinédrio

arguiu com os doutores,

o que aprendeu a arte de aparelhar

as tábuas e de dar uso aos pregos,

o que empregou o maço e a garlopa,

e as redes da pesca, e as ínvias veredas

dos milagres, o que desatou os olhos

dos que estavam cegos e as pernas

de quem não podia andar, o que expurgou

os outros dos espíritos malignos,

levantando a mão e cuspindo-lhes na boca,

o que fez a multiplicação dos peixes e dos pães,

o que invectivou os vendilhões do templo,

o que disse ter vindo à terra pela paz

e ser essa a sua guerra, eficaz, intratável,

o que tratava a todos por irmãos,

ainda que o maior milagre fosse ser pedra

que ficasse viva, este cálice, este pão,

este sol, este vinho, esta pedra angular,

esta promessa, este resgate infindo.

Um homem é um homem e é um deus.

E deuses somos todos na nossa humanidade

corrupta e incorruptível, a nossa humanidade

de leves estremecimentos e profundas

dúvidas, para que a transparência brilhe

e nenhuma condenação possa marcar

a luz que nos é própria e advém dos céus.

A dor excruciante desta mulher está patente

nas sombras que lhe delimitam o rosto,

as espessas sombras que são como um rumor

a assinalar a angústia. Viu como escarneceram

do filho, como o chicotearam, como lhe

cravaram os pregos, como o levantaram

no madeiro, como lhe deram a beber vinagre,

como lhe perfuraram o lado com a lança,

como o abandono é o último reduto

da esperança. Viu o filho clamar

como se fosse por piedade que clamasse,

com as têmporas maculadas de sangue

seco e uma infinita aflição, sem que nada

nem ninguém lhe respondesse,

ou só lhe respondesse a amargura

e a treva que a morte nos entrega.

Esta mulher está parada

e o seu amor é cada vez mais forte,

o filho disse que uns aos outros

nos amássemos e ela sabe como,

entre os mundos, entre o que é visível

e invisível, só o amor pode

redimir, embora abomine agora

o demorado silêncio que tomou

o seu espírito e a desmesurada

opressão que a domina. Somos o nosso

espírito, mas não nos pertence nunca

o nosso espírito, é mau o caminho

que nos faz desembocar no nada e no vazio,

é má a interpelação a que nos reduz a dor,

o que nos fere, e mata, e é inexplicável.

Não sabe esta mulher o que se cumpriu.

Ele disse que entregava a vida

para que a retomasse e ela cinge no colo

o filho como se cingisse o universo

e todas as coisas escuras que nele habitam,

o manto da noite em que pequenas

estrelas mortas se despenham, a cabeça

da víbora que com o calcanhar esmaga,

o deserto, o abismo, a morte

e o inferno a que descemos.

Esta mulher pergunta a si mesma

por que não é ela o filho e o filho

ela, e de si para si repete, estarrecida:

«ah, sei tão pouco, ah, sei tão pouco»,

e nós vamos continuar a ouvi-la para sempre,

e nunca saberemos nada do que somos.

Revista Devir, nº. 6, s/l, 2019


LUZ POSSÍVEL

Se é o sonho que cria o homem, vou criar o sonho que me cria.
Maria Gabriela Llansol

 

Sinto a falta da tua cona quente,

Da tua boca sábia, dos teus mamilos duros.

Sinto a falta da luxúria dos teus braços,

Da volúpia ardente dos teus dedos.

 

Da luz que tens contigo, sinto a falta.

Sinto a falta do poço do teu ventre,

Da febre alta que tens nos teus quadris,

Do galope que voa nos teus rins.

 

Sinto a falta dos teus ombros, dos teus lábios.

Do particular exercício do teu corpo

Com que te entregas para que me venças.

 

Sinto a falta das tuas mãos de fogo,

Da doçura envolvente, da ternura

Com que de orgasmo em orgasmo me dás nome.

 

*

De orgasmo em orgasmo dás-me nome

E sou quem sou e quem nunca fui.

Derreto-me pelas carícias que me dás

E amplio o meu deslumbramento

 

Pelos teus seios, os teus lábios, os teus joelhos.

Nunca saiu daqui a cama que nos toma,

Mas contigo empreendo viagens e descubro

Como o poder do amor nos reconstrói

 

Com pedaços de carne e muita luz.

Ilumina-se de sortilégios o teu cabelo

E os teus dentes são fosforescentes

 

Nesta lava que queima e apazigua.

Neste vulcão que juntos empreendemos.

Um bem que vem unir-nos quando amamos.

 

*

Um bem que vem unir-nos quando amamos

E ao escuro não sabemos o que retorquir.

Tanto nos falta nesta vida intensa

Que só na doação nos pertencemos.

 

A tarde é nossa, sentimos a escassez

E vamos pela rendição que nos devemos,

No luxo dos lençóis, nas almofadas

Que sob o corpo queremos empilhadas

 

Para que se consubstancie a acuidade

E nos favoreça o ânimo contra o vício

Que lentamente sitia o que vivemos,

 

A sua usura, a sua faca, o nosso aviltamento.

Sinto-te a falta quando não te fodo.

Sentes-me a falta se não me apaziguas.

 

*

Sentes-me a falta se não me apaziguas

E não vai dar ao mar esta corrente

De estupendas carícias, de murmúrios

A vibrar-nos por dentro, estes sussurros

 

Que trocamos perdidos um do outro

Porque assim docemente nos encontramos.

Apoio-me nos teus ombros, meu amor.

Estreitas o abraço para que o corpo

 

Amacie o que duro possa encontrar-se

Para que se expanda a ternura com que tomas

O que enrijece e apresa e apreende

 

A húmida delícia do teu sexo.

Sinto-te a falta mesmo se conquisto

O avassalador domínio dos teus sonhos.

 

*

O avassalador domínio dos meus sonhos.

O teu perfume nocturno, a tua pele

Onde um mantra de seda desliza e passa.

Onde uma luz se ergue e me alimenta.

 

Sitiam o teu sorriso borboletas

E voas entre a candura e a malícia

Enquanto vivo e morro pelo deleite

E volto aos teus quadris e me renovo.

 

É doce e é estranho estar aqui

De mãos dadas contigo no abismo

Em que uma fonte se abre e uma torrente

 

Alcança o que de mais divino há em nós.

Este gemido em que não sofremos.

Este irreversível queixume que liberta.

 

*

Este irreversível queixume que liberta

Ensina-me como devo morrer para que vivas.

Avalio assim a tua anca, as tuas mãos,

O montante de linhas que se cruzam

 

Na extensão magnífica das tuas costas,

Na maciez abrupta do teu colo, nas tuas

Nádegas sólidas e mornas, nesse lume

Que alcança os lençóis e incendeia

 

A cama, a cabeceira, a languidez.

Para que tu possas viver eu não evito

Fazer de mim mesmo o inimigo

 

Que entre o céu e a terra não sabe que limite

Há na ignorância e tudo quer saber de ti.

Consolo, desconsolo, avidez gentil.

 

*

Consolo, desconsolo, avidez gentil,

Tudo o que nos obriga e desobriga

De ouvirmos em nós uma canção de vento,

A melodia dos corpos que o silêncio diz.

 

De tudo por amor nos instigamos,

O que há e o que é o seu contrário.

O olhar no olhar, o espírito na alma,

As irresistíveis contas dos teus dentes,

 

As unhas e o que sulcam sobre a pele,

A hegemonia do sobrenatural.

Assim é que o que é físico estabelece

 

A ponte entre tigre e tigresa e macho e fêmea.

Faz-se o amor destes encantos

Que adoçam e adensam os mistérios.

 

*

A adoçar, a adensar os mistérios,

Eis como tu te despes e eu me dispo.

Que nos valha a nudez e a transcendência

Com que o negrume se dissipa

 

E um no outro de súbito mergulhamos

E de beijos cobrimos o universo.

Sussurro ao teu ouvido o meu amor por ti.

E é como se te estivesse a explicar

 

Como no teu coração há mil cavalos

Que igualam os meus neste poder

De prestarmos tributo ao que o instinto

 

Formula e, de tão exíguo, nos amplia.

Esta é a suave energia que mantemos

Quando somos do amor o aconchego.

 

*

Quando somos do amor o aconchego

Não divergimos. A gruta está ali,

Faz-nos tremer, mas sem vacilações,

Só com um arrepio primitivo, um furor

 

De sobrevivência e de brio que acrescenta

O pudor e o engrandece. Na gruta

Há uma harpa, um caminho guarnecido

De abetos e uma catarata que inunda

 

A boca com refrigérios vários, fogos

Líquidos, requebros de gazela e de lírios,

As quatro estações do ano num só dia.

 

Doce, amargo, ácido e salgado

Escorrem pela língua, pelos lábios

Como beleza feroz e consistente.

 

*

Com beleza feroz e consistente

A glande arde. A tua cona é

O marco do início, ainda que tudo

Venha demasiado tarde, ainda que

 

Tudo pertença ao que demorou

Demasiado tempo a encontrar,

Tantas foram as pedras no caminho,

Os obstáculos. É aqui que entro.

 

É aqui que a tua boca encontra

A minha, ainda que não haja

Uma gota de céu e de terra à nossa volta.

 

Somos a praia que ainda resta.

Submetemo-nos às ondas e à tempestade

Que sobre nós recai, favorecendo-nos.

 

*

O que sobre nós recai, favorecendo-nos,

É o que entre a vida e a morte acaricia

O frio com que nos debatemos

Para que possamos ser um pouco mais felizes.

 

A chuva é esta orgia de sémen e de paz

Que sexo a sexo sabemos trocar, com o gozo

Do que toca, e lambe, e enlanguesce

Como se mais não fôssemos que infinito.

 

É a esse infinito que respondo

Olhando-te nos olhos, a descobrir

Nesse poço de sombra e de luz

 

O que pesa sem peso e entrelaça

O que de Eros abrange o que queremos.

O puro amor, a pura evanescência.

 

*

O puro amor, a pura evanescência.

Só queremos que ao corpo suba e desça

O que em nós houver de permanência,

Esta pedra, este grito, este barco

 

Em que embriagados de êxtase navegamos.

Nos meus e nos teus rins o que alastra

Vem do sentido cósmico que sentimos,

Esse assíduo zunido que estonteia

 

Os meus e os teus dedos, por sermos

Transgressores, amantes em segredo,

Poemas que um no outro se inscreveram

 

Para que fosse possível respirar, abrir

A porta, entrar de novo, ejacular

Ao mesmo tempo que tens os teus orgasmos.

 

*

O tempo em que tens os teus orgasmos.

O tempo em que és imperativa.

O tempo em que estremeces, em que esparges

À nossa volta o mel e a brandura.

 

Adoro-te, minha deusa e meu anjo

Do refúgio e do abrigo, minha

Natureza benigna que consente

Que eu seja homem de uma vez por todas.

 

Um homem à deriva que te viu

E nos braços te levou para casa

Para que ficasse habitado o abandono

 

E a tristeza lassa. Adoro-te minha deusa

E meu anjo, minha sulfurosa taça de versos.

Meu poema escrito várias vezes.

 

*

Meu poema escrito várias vezes.

Fodemos a ouvir Schubert e Brahms

Porque somos seres de música incessante

E sabemos como a incandescência nos isenta

 

Do que seja o infortúnio e a desavença.

Fodemos, escrevemos, respiramos

E nenhum sono nos toca, nenhum golpe

De adversidade, porque nos une

 

O que pertence à beleza e à beleza

Serve para que a beleza reiteremos.

Nos lances do amor vencemos sempre

 

Porque nos envolvemos em nós próprios,

Eu em ti, tu em mim, num movimento

Que nos agarra os flancos e não cessa.

 

*

O que nos agarra os flancos e não cessa

Não nos cansa. O que nos põe exaustos

É de outros arrestos e outras cobardias.

Haja amor e corporize-se a luz

 

Que dele advém e dele chega,

Até que os nossos ossos se revelem

E sejamos transparentes entre nós

E a circunstância de vivermos a alegria.

 

Há-de o amor ser feito com o júbilo

De quem é livre e prisioneiro apenas

De compor o amor com a loucura

 

Que se põe ao fazer a obra de arte

Que não se apague na memória ou se destrua

Por desforras, vilipêndios, ignomínias.

 

*

Por desforras, vilipêndios, ignomínias

Pretendemos proteger-nos, as cabeças,

Os sexos, o apreço que tantas vezes nos devemos.

Dessa ilusão construímos o delírio

 

Que nada nos consente, é de perder a vida

Esse pecúlio de bálsamos inúteis

Que nos condenam, esses confortos

Que nada arriscam e abastecem o mundo

 

De equívocos, desesperos, deformidades.

Sou adepto dos idólatras do sexo,

Das blandícias que ao amor incumbem,

 

Desse desassossego que é amar alguém.

De todos os delírios que só esse exceda

Quem somos, o que queremos, como amamos.

 

*

Quem somos, o que queremos, como amamos

É que é a aventura, o essencial. Sinto a falta

Da suavidade lúbrica com que me sorris,

Da premissa sensual com que conformas

 

A tua vulva ao meu caralho, o teu

Cuidado. E a questão é que não há

Próxima paragem, nem descanso

Para o que faísca. Podemos é perder

 

O que nos pertence por idiotia ou cretinice

E, ao que se sabe, não há segunda volta

Para a vida. Sinto a falta da tua queimadura,

 

Do relâmpago que se forma no abdómen

Quando a limpidez do amor nos acontece.

Esse milagre que nos põe em chamas.

 

*

Esse milagre que nos põe em chamas.

Abres as pernas e logo se destaca

A lingerie Dior, essa penumbra preta

Que termina em renda, ignoro se de pólen,

 

Se de pó de rosas, uma coluna grega

Posta em folhos. E fico a salivar.

E ponho-me a observar esse cinema,

A gradação da cútis, a dimensão

 

Do púbis, um filme de acção

Em que tudo vai parado, mas frenético

De subtis movimentos que acompanham

 

A respiração ofegante em que te encontro.

Sinto a falta desse veludo ardente,

Da grande sala escura em que nos temos.

 

*

Da grande sala escura em que nos temos

Pouco resta, um cortinado, uma cadeira,

A reprodução de um quadro de Chagall,

Um castiçal sem vela com resquícios

 

De cera derretida, uma coberta

Que está quase no fio. Ainda mais triste

É saber que o plátano cujos ramos batiam

Na janela foi derrubado e que um arranha-céus

 

Tapa a vista do rio que nós tínhamos.

Tantos encontros clandestinos aqui usufruímos,

Tantas trocas de corpo aqui fizemos,

 

Que fico estarrecido por saber

Que só o antigo afecto sobrevive

E a lembrança de nos termos tido.

 

*

A lembrança de nos termos tido

Entre lagos, camélias, praias rasas.

A torrente de esperma e os teus seios,

Essa praia morena cercada de nervuras

 

Que são ruas de uma cidade intensa

Onde os anjos nos acenam dos pináculos

E a avassaladora presença de quem passa

Vai carregada de crença e regozijo. A lembrança

 

Do Verão, do alto mar, contigo a fazer tranças

E a recolher o lenço onde ficou inscrita

A mancha, a imaculada mancha do fim

 

E do princípio. A lembrança da boca,

A lembrança do beijo, a lembrança

De um fio de saliva cintilante.

 

*

Unidos por um fio de saliva cintilante

Algumas vezes e, outras vezes, ausentes

Em parte incerta a cada curva do caminho.

Não sabemos o que o destino nos reserva,

 

O que se pode vir a atravessar à nossa frente,

Se uma pedra iluminada pelo sol, se o sol

Tocado por uma pedra. Mas amo-te. Quer dizer,

Sinto a tua falta neste vendaval, nesta manhã

 

Marítima, neste sal, neste pousar as minhas mãos

Na ausência, a saber que te toco as espáduas

E que cheiro a luminescência do teu cheiro.

 

É verdade que estou subitamente triste,

Mas também é verdade que acredito

Que a extensão da minha fome de ti é infinita.

 

*

A extensão da minha fome de ti é infinita.

Pequena é a vida para tão grande êxtase

E grande a idolatria em que te guardo.

Nada e tudo se altera neste sem-fim

 

De tanto te querer, arrebatadamente.

Coração que procura e te quer a seu lado

Para que a errante eternidade acrescente

Alguma desta fúria de acoitar-te

 

No que foi convocado pelos deuses

Para que acontecesse, entrelaçando

Os meus dedos nos teus e forçando-te

 

A boca para que cresça a minha impetuosidade.

Esgota em mim o que não se esgota.

Exaure a imperfeição com que te amo.

 

*

Exaure a imperfeição com que te amo.

Faz com que me atravesse esse relâmpago

Que na tua língua intuo, no enérgico

Modo como lambes, chupas, sorves.

 

Levanta o arrepio que pressinto

Subir dos meus e dos teus joelhos,

A furiosa brandura, o arrebatamento

A que o livro que escrevemos nos dispõe.

 

Tu sabes que um cometa vai comigo

Quando a tua boca cinge o meu sexo,

Quando tomas as virilhas, os testículos.

 

Tu sabes como correspondo ao teu ardor.

Como a minha língua te responde

Ao turbilhão que no teu centro explode.

 

*

O turbilhão que no teu centro explode

Vem de dentro de ti, de debaixo da terra,

Do universo todo. E coroa-te de estrelas

E galáxias, de buracos negros, de venturas.

 

Vamos de mão na mão nesta subida,

Neste lugar inóspito, neste deserto.

E contudo ainda esperamos a bonança,

A paz do frémito que o corpo entende.

 

Falo-te de longe e é perto que me escutas.

Tu dizes-me as sílabas, eu crio as palavras.

Digo a palavra fósforo e tu dizes incêndio,

 

Digo a palavra pedra para que digas praia.

Sinto-te a falta quando estamos juntos

Na alta vibração em que existimos.

 

*

Na alta vibração em que existimos

Estamos prontos para tudo. A partida

Intempestiva, os lençóis desertos, a solidão

Veemente, as mãos vazias, a sinuosidade

 

Que, entre ganhar e perder, se oculta

Nos meandros do que nos transfigura,

A ponto de ainda resistirmos a golpes

De ternura e tumultos desmedidos.

 

Nunca acordamos um com o outro.

Não partilhamos a varanda, o crepúsculo,

O rastro que os passos deixam no areal,

 

A canção e os barcos que o horizonte guarda.

Mas sabemos da boca um do outro

E o poder das carícias que trocamos.

 

*

O poder das carícias que trocamos

Assegura que és a bilha de água

Da qual posso beber. A cada ruína

A sua sombra e para cada pedra

 

A fracção de lua que o tempo

Há-de trazer, clarão lanceolado

E animal suspenso no poema

Em que levantamos os braços

 

E somos por instantes afortunados.

Também do meu corpo hás-de beber

Se aceitares que o milagre reproduza

 

O que só em miragem é visível.

Assim distribuímos pelo corpo focos

De tempestade para que nos salvemos.

 

*

Focos de tempestade. Para que nos salvemos

Precisamos de instrumentos variados, cabrestantes,

Anzóis, algumas redes, o fluxo das marés,

Duzentos mil espelhos, uma draga,

 

A pá e o balde de quando éramos crianças

E a areia que os nossos pés amontoaram.

Precisamos de indómitas fogueiras,

Do que dói e nos apazigua, desse lenço

 

Aberto sobre a cama, do coração obstinado.

Precisamos da grandeza da noite, do brilho

Dos carris, do sucessivo odor a jasmim

 

Que nos invade. Precisamos do que palpita

Sobre as mãos abertas, das folhas que estremecem

E da névoa que a nitidez difunde.

*

A nitidez que a névoa difunde

Acontece quando te penetro

Ou me penetras tu com esse gume

De trevo escuro e planta aérea.

 

O ardente coincide com o maduro

E o silêncio abrange-nos o desejo

Quando cada lampejo nos restitui

À imanência de que somos feitos,

 

Deuses que amam deuses singulares.

Tu és a violeta violenta, eu sou

Aquele que é e nada mais quer ser

 

Que o teu altar e a tua inocência.

Penetro-te e penetras-me e é azul

A criação que acabamos por fazer.

 

*

A criação que acabamos por fazer

Demonstra como só na viagem do amor

Não há recurso à imobilidade.

No mais vamos parados para sempre

 

A observar a paisagem que se movimenta

Perante os nossos olhos, as árvores

A correr, as águas do ribeiro a fluir,

As casas e as montanhas a transitar

 

Entre os sucessivos planos da distância.

Só no amor há desmedido movimento.

Só no amor há precisas convulsões

 

Que laminam a ânsia e o desejo

E fazem com que o sangue circule

Ainda mais depressa e mais fundo.

 

*

Ainda mais fundo e mais depressa

Inspiro e expiro junto à tua nuca.

Não há melhor maneira para arborescer,

Coadjuvado pelo que em ti é morno

 

E parece que escalda, e parece que gela.

É de tanto gemeres que me instigas

A habitar o que é inabitável, esse bálsamo

Que espero, essas colinas que o amor

 

Carnal faz recrudescer, estes eflúvios

Que no teu sexo transparecem

E não há nunca modo de aplacar.

 

Somos irmãos a partir deste momento.

Responsáveis pela desordem desta cama

Sabemos bem que vamos morrer.

 

*

Sabemos bem que vamos morrer,

Tudo está certo e tudo é incerto.

Quanto mais me debruço para ti

O que parece errado mais parece certo.

 

A terra cheira a terra, o Outono

Confirma a verdade que sabíamos de cor

Desde o início, as marés e as ondas

Cumprem os ciclos e mantêm-se

 

As verdades eternas e as suas crispações.

Hoje viemos à falésia, amanhã

Voltaremos à busca incessante do norte

 

Magnético que nos aproxima. Pouco importa

Quem somos ou se vamos morrer.

O amor que existiu perdura para sempre.

 

*

O amor que existiu perdura para sempre.

Escolho para ti a primeira luz, ponho

Um dedo na ferida, tudo e nada muda

Na manhã, a contínua frescura dos teus

 

Lábios, o fruto que me abres, o suco

Que me apraz, o calor que acalenta

E nos diz vivos. Na luz possível somos

Os que assinalam no mar a vaga forte,

 

A transumância das algas, a espuma

Que nos cobre, aquece e alivia, o amor

Que arde até à eternidade. Sinto-te

 

A falta como se um cataclismo viesse

Visitar-me. Eis o poder que exerces,

O interminável fascínio que me prende.

 

*

O interminável fascínio que me prende

É uma fogueira ao longe, da qual

Me aproximo. Já houve aqui geada,

Árvores derrubadas pelo vento, algum

 

Desânimo, tormentas e desordens,

Avalanches, gritaria de medo e dilapidação.

Mas saber que existias e esperavas

Fez-me acreditar que a treva se dissiparia

 

E as linhas de dor do meu destino

Se iriam transfigurar, mais dia, menos dia.

Talvez o amor não seja mais que uma mão vazia,

 

Um eco a que nenhum eco dá resposta.

Mas sentir ainda assim a tua falta

É talvez uma porta entreaberta.

 

*

É talvez uma porta entreaberta

O que espero para entrar na noite

Inaugural. É essa noite escura e terrível,

Mas a tua candura há-de valer-me

 

No trânsito que empreendo até ti,

Confiado na seda dessa sede

Com que te irás apresentar perante mim.

Dois animais sequiosos vão entregar-se

 

De braços e de olhos bem abertos

Ao que, mais do que sedução, é desempenho,

Arte de dar e de receber. Respondemos

 

A estímulos, a brutais suavidades, a astúcias

Mansas, a arrepios que nos fazem íntegros

Na violenta malícia em que nos damos.

 

*

Na violenta malícia em que nos damos

Afirmamos que nos queremos corromper.

Vivemos suprimidos, almejamos

Ao regresso para conhecer o que há

 

De insondável em redor, o que limita

O mundo, o universo. O coração

Reclama por um coração análogo

E diferente, quer continuar humano

 

E selvagem ao mesmo tempo,

Para que se possam reconhecer

Os detalhes com que a insubmissão

 

Se manifesta, seja na pena ou na festa.

Queremos o regresso à veemência

Que havia antes de existir o paraíso.

 

*

O que havia antes de existir o paraíso

Não carecia de porta, chave, fechadura.

Mostrava-se o que é limpo e excessivo

Sem a rasura de nos querermos mal

 

E sem que a ameaça pairasse sobre nós.

Pagã era a nossa raça, a nossa fé.

Por mais díspares que fôssemos

Mais a semelhança nos aproximava.

 

Abraçávamos as árvores e as árvores

Abraçavam-nos, os nossos mortos

Reconheciam-nos e nós reconhecíamos

 

O seu poder benigno, faziam-nos crescer.

Uma campainha ouvia-se ao longe e o sol

Deitava-se connosco na nossa cama.

 

*

Deita-se connosco na nossa cama

O amor. E também nas ruas e nas praças,

E nos átrios dos templos, nas estradas,

Nos campos semeados, nos lameiros,

 

Nos túneis, nos açudes, nos terraços.

Foder é bom se não há míngua

Na refrega e se sabe como tudo

Está mal ainda que bem esteja.

 

Pressinta-se o silêncio e o sentido

Dos corpos que se entredevoram

E saber-se-á de cor toda a paixão,

 

Todo o nervo da entrega, todo o abrigo

Que um corpo dá quando exulta

De tanto céu e tanta terra haver.

 

*

De tanto céu e tanta terra haver

É que sabemos que o coração é uma floresta.

Doamos às raízes uma parte

E outra parte fica para os ramos

 

Com que repartimos o amor e o desamor.

Não é possível viver sem exorcismos.

Não é possível existir sem que o fascínio

Nos invada e invada o coração

 

De quem amamos. É uma floresta

Que arde por amor, a fazer de cada instante

A eternidade e da eternidade um comprido

 

Labirinto a percorrer. Dessa altura

Caímos ou não caímos, exactamente

Como aos pássaros sucede.

 

*

Como aos animais sucede é lícito

Esperarmos que a vida inteira seja

Um sopro quente que nos vem à boca

E queremos conceder a quem connosco

 

Quer recolher o ímpeto do cio e o vigor

Que o ânimo concede. As mãos

Capturam o azul-escuro que o alento

Gera quando o peso da leveza amplifica

 

Os beijos que se trocam e conciliam

O que irreconciliavelmente é indizível.

Um corpo estranho a um outro corpo deve

 

Essa estranheza que une e que aparta

Para que o amor estabeleça

Com que doçura dói o que lancina.

 

*

Com que doçura dói o que lancina.

Os dedos sobre a pele, a língua

Que procura, o sexo túmido, as mãos

Em busca de poder entrar num pulso,

 

Ou numa clavícula. Com que música

Inaudível os corpos se sustentam.

Com que rumores de deltas e campinas.

Com que brilhos de frinchas, com que pasmo

 

Se confrontam, com que lúcida

Antecipação da morte se comparam

Para que possa redimir-se o mundo

 

Desta teia de brisa que alucina,

Desta esquina onde estamos sós

A aguardar o tempo que nos resta.

 

*

A aguardar o tempo que nos resta

Fazemos sempre o mesmo itinerário

Entre os desertos, esta noite, este dia,

Esta lâmina que nos consome a inocência.

 

Do amor pouco ou nada se há-de saber,

Esse lugar inóspito onde nada reverdece

Mas tudo é como uma promessa,

Uma faúlha em vez da labareda.

 

Sinto-te a falta. A falta do teu sal,

Do teu tempero, do que pica

No meu sangue quando te penso

 

Rendida aos meus afagos, às carícias

Que trocamos em segredo

Porque é opaca a nossa transparência.

 

*

Porque é opaca a nossa transparência

E clandestina a observação do espanto

Faço de ti íntima da vertigem

De que o meu coração quis rodear-se

 

Assim que a solidão me abateu.

Quando acordo de noite já não temo,

A meditar no que de ti transborda

E te guarnece de asas e irrompe

 

Da magia recorrente do teu nome.

Desse sossego crio o meu sossego,

Ainda que a solidão de tudo permaneça

 

No estrondo das sombras, na algazarra

Com que o silêncio me diz que não existes.

Ou, pior que isso, que não és minha.

 

*

Não és minha. Ninguém é de ninguém.

Por este vaticínio houve quem morresse

Por sentir em vida a sem-razão

Desta evidência. Mas pensando melhor,

 

Não só és minha como somos todos

Uns dos outros, sob pena de estarmos

Desde o início derrotados, órfãos prováveis

Da nossa humanidade. Eu sou teu

 

E pouco importa se fica turva a água,

Se ferve nos canais, se é escassa

A luz que leva às taças, se nos afoga

 

Porque um beijo tarda. Eu sou teu

E, indubitavelmente, tu és minha,

Tal como é nosso o mar sem que nos pertença.

 

*

Tal como é nosso o mar sem que nos pertença

Se faltar a luz hei-de voltar à infância.

A cada nova noite hei-de pensar em ti,

Hei-de dizer que a noite não me dá descanso

 

E que a minha fadiga é muito antiga,

Que tem raízes nas árvores mais altas.

Pergunto onde estás e se nada me responde

A cada instante a minha luz se esvai

 

E pouco tempo resta, pouco tempo

Falta na falta que me fazes. Agora quero

Que o tempo seja branco, tal como foi

 

Na infância, e que as tuas mãos regressem.

E que a nossa praia tenha a mesma exuberância

Que no fogo do mar já entrevimos.

 

*

No fogo do mar já entrevimos

Os corpos do silêncio e as suas crispações.

Uns ficam sobre a água abandonados

E outros permanecem no mistério

 

De continuar o mundo a ser criado.

Crio-te um tornozelo, uma omoplata,

Crio-te uma clavícula e duas coxas

Para me lembrar de ti e me render

 

Ao que a tua doçura possa ser

No que em mim te imagino, crista

De onda e bosque transparente.

 

És o meu espaço de lembrança.

E sinto a falta da paz do teu regaço,

Da tua boca sábia, da tua cona húmida.

 

*

Na tua boca sábia, na tua cona quente

Procuro o que oscila e surpreende

A placidez e o cio de estar vivo.

Ainda que não haja encontro que nos valha

 

Neste forro de solidão que nos perpassa

Alguma coisa fica e replica

Ao grito que deixamos neste quarto

Em que eu e tu nos desatamos

 

Em clarões de puro desatino.

Dás-me o lume de que eu preciso

Para entregar ao teu e assistirmos

 

Juntos à construção da fogueira

Que nos protege do frio e nos incita

A tudo o que no amor é indeclinável.

 

*

Tudo o que do amor é indeclinável

Aceito sem qualquer hesitação.

Entre o gozo e a amargura não há como

Deixar de preferir o que empolga

 

O espírito e as línguas do seu corpo.

Ainda bem que somos dois estranhos

E que amanhã teremos que voltar

A descobrir-nos, sob a ténue realidade

 

Que nos une e o real que de nós se afasta.

É desta crueldade que vivemos. Conheço-te

Há poucas horas e agora desconheço-te

 

Para que possas assim reconhecer-me

Quando voltar a entrar em ti e tu me abrigues

No que restar do nosso desamparo.

 

*

No que restar do nosso desamparo

Vestígios haverá dos teus orgasmos

E da alegria que foi admitirmos

Que não é possível que a viagem

 

Se suspenda assim que nos decidimos

À existência. A vida impõe-se

Quando ajo a teu favor e inclino

A cabeça para o teu sexo, quando tu

 

Me afagas os testículos. Pela nossa

Nudez concedemo-nos a graça

Do que é cúmplice e íntimo,

 

A frescura que a minha e a tua pele

Criaram juntas para que a luz seja

E seja a eternidade o nosso nome.

 

*

Que seja a eternidade o nosso nome,

Simples mortais que somos, com a veloz

Fugacidade do tempo a perseguir-nos

E o golpe da morte anunciado sobre cada

 

Degrau que nos levamos a transpor.

Que seja pela chama da nossa incandescência

Que façamos a aliança entre o visível

E o invisível, o corpo, a alma, o espírito

 

E os seus ardores. Que entre o sujo

E o limpo a diferença desmedida

Ajuste o ponto da justiça e do sagrado.

 

Que a luz se envolva de luz e se refracte

No rosto que tivermos no futuro,

Assim que eu e tu tivermos outro rosto.

 

*

Assim que eu e tu tivermos outro rosto

Iremos procurar na abundância de destroços

As nossas sombras carregadas de desejo.

Entre as ruínas, nada tomaremos como certo,

 

Excepto a clara fieira dos teus dentes,

A minha prerrogativa de em silêncio

Deixar escorregar um dedo nos teus lábios

Para que me entregues o teu sorriso casto.

 

Voltaremos a foder um dia destes.

Olhar-nos-emos nos olhos quantas vezes

Acharmos que irá ser necessário

 

Para que o horizonte em chamas

Nos pertença. Depois voltaremos a morrer,

Eu nos teus e tu nos meus abraços.

Luz Possível, 2021


 BORIS PASTERNAK ESCREVE OS POEMAS DE JIVAGO

(para Luís Aguiar)

Escolho a neve. E, no entanto, poderia optar

Pela transcendência, ou pelo caminho que vai dar

À floresta, ou até mesmo pelo alvoroço que agita

O coração quando, ao longe, se vê alguém que olha

Para trás, que olha insistentemente para trás.

Poderia optar pela discórdia, pela desmesurada narrativa

Da evolução do silêncio e os seus percursos, a sanha

Com que as altercações se expandem e esmagam a esperança,

Estas marcas no chão que preconizam a avalancha e o frémito

Com que os elementos se insurgem contra o que desdiz

O primitivo e o ícone a que lançamos as nossas orações,

Este recolhimento que nos designa e nós designamos

Em todas as tempestades, todas as aflições. Escolho

A neve, esta voz literal a perder de vista, este suporte

Onde é possível escrever e redarguir à angústia, porque estamos

Sozinhos na extensão da tundra e as árvores invectivam

O lento, o desmesurado, a carência, a solidão, o prazo a que fomos

Confinados na sucessiva derisão de estarmos vivos. O homem

Está aqui, parece que foge embora não fuja, está aqui

E espera a dimensão do que é excessivo, a caleche

Que o há-de levar deste ponto a outro ponto inverosímil,

A esse ponto a que é impossível aceder, o ponto

Onde o coração se divide e o amor se decide entre dois

Corações. O homem está aqui, onde a estrela marca

O caminho e a dissolução, está aqui e escreve poemas,

Pequenos novelos negros que repetem na página sempre o mesmo

Sobreaviso pelo perigo de sempre, a mesma cautela,

Porque não ignora que no chão gelado se pode abrir uma cratera

Para cair, para capitular nas águas subterrâneas da invernia

Que as sombras brancas dos rios dissimulam. O desastre

Está atento aos erros mais insignificantes e mais íntimos,

À chegada provável do inaudito e do arrebatador, sem que se saiba

O espírito carrega os múltiplos ecos do mundo, a obstinada

Trama que o destino trabalha, os fios do desencontro, da impostura, do medo,

A estrada onde todos os vazios se reúnem entre o desavindo sossego

Do desassossego inflexível que mantemos. Ah, por assim ser,

Nada mais resta do que guardar tudo e tudo registar na luz que houver,

No que de luminoso ainda mantemos, no que os olhos retêm da paisagem

Para que tudo se amplie, tudo reviva e exulte. Escolho a neve, a beleza.

O que daqui se avista aquece a manhã fria, é delicado como um gorjeio

De pássaro, por mais cansaço que haja sobre os ombros

É a esse indulto que devemos recorrer, a sede não se estanca,

Mas um poema é como o sussurro que os amantes trocam entre si,

O reconforto que os vem tanger, a música que escutam quando a cama

Range sob o frágil e poderoso vigor dos seus corpos

E o entretecido júbilo das suas almas gratas e extenuadas pelo ardor

Da entrega. Escolho a neve e alegro-me, escrevo por Jivago

O que é irrepetível, crio-lhe um espírito decidido a tudo,

Decidido ao milagre e à apostasia, à altura das aves, ao precipício

Onde as vozes se encontram, ao que os astros abrigam, ao que caiu

Ao poço e reluz lá no fundo, uma moeda, um pedaço de brisa

A desvanecer-se, uma faca, uma colher de prata. Digo na estepe

A palavra felicidade e é a fertilidade que anuncio, abro o fogo

E fica reconciliado o amor, escuto o meu silêncio e vejo tudo em flor,

Tudo fica magnífico como um resgate ou uma conquista de mim mesmo,

A abraçar as resplandecentes silhuetas das mulheres que Jivago ama,

Ou eu amo por ele, ou ele por mim ama. Escolho a neve, verso

A verso reconstruo a minha vida, a parte que a revolução quebrou,

A parte que este exílio não refaz, as várias somas

Que a poesia e a penúria pôs nos meus passos, na minha aura,

No meu canto interior, nesta glorificação do homem perseguido,

Crucificado. Não sei se pago o mal com o bem ou se pago o bem

Com o mal, professo o amor como única senda e único talismã,

Assim me animo, assim me alento, revigorado pela vodka,

A memória de Lara, a recordação de Toyna e do seu filho,

O semblante carregado de Jivago, sim, o seu semblante carregado

De nuvens e desgostos. Escolho a neve, esta respiração abrangente,

Os seus quadris côncavos e intensos, as suas manchas azuis

No arvoredo, a sua órbita em redor das casas, branca, fria, quente,

Inúmera, onde as sílabas cintilantes se estendem e a lua se abriga

Dos temporais. Quero sobre os móveis a brancura da neve, que encha

Os copos de cristal, e se deite na cama onde durmo, e que beije os meus lábios

Com a sua frescura de lâmpada e de verbena, de sal e de roseira. Quero-a

Nas grandes salas, dentro das cartas que o lacre encerra, nos tinteiros

De onde chega o fio que dá nome ao que nunca teve nome, no precipício

Que desafio e sobrevoo, esta viagem secreta com o que há

De mais sagrado em mim e nos outros, e na terra, e na melancolia.

Eu obedeço a ordens eternas, atendo ao que me dizem as entranhas,

Ao que paira sobre a minha cabeça, o que pulsa, o que avança

Como soco e patada, como ferida, como murro, como muro, o que me faz

Morrer de solidão abundante, onde tudo avulta, desenfreadamente,

Cinzas, papéis rasgados, flores, um intenso mistério de flores

Amarelas a cobrir os campos a perder de vista. Tenho os entes

Queridos todos dispersos e escolho a neve, viajo através

Da luminescência a saber que a tristeza não é a infelicidade,

Mas o travo que fica na língua quando um homem se perde de si mesmo

E se procura na longa pradaria, rodeado de solidão e de mistério,

De isolamento e de abismos. Escolho a neve e os seus trânsitos simultâneos

De luz, esta fita de luz que me ampara a cabeça e me leva daqui

Para ali, da cama ao pátio, da palavra ao silêncio, da vida à morte,

Deste manuscrito a esta declaração de amor que talvez ninguém vá

Ler, mas alguma coisa há-de acrescentar à beleza, à brancura, à memória

Que restar de mim, no longo hiato que decorreu entre aqui ter permanecido

Sem que alguma vez aqui tivesse estado.

 Revista RUA-L nº. 10, II º. Série, Aveiro, 2021


PETER PAUL RUBENS PROJECTA A PINTURA DO QUADRO O MASSACRE DOS INOCENTES

(para José Miguel Braga)

Por via da matança geral acabamos por chegar

à matança dos inocentes, ou o contrário disso,

como qualquer pessoa de bem pode intuir,

ou, mais que intuir, ter a certeza, porque assim

se mete pelos olhos dentro esta angústia antiga.

Uma só morte seria condenável, mas a descompostura humana

não dá volta à treva, uns que matam e outros que são mortos,

como se uma mão lavasse a outra e estivesse tudo

certo nesta subtracção chamada humanidade,

que nunca há-de estar limpa de si mesma.

Pior ainda é estarmos todos presos deste transe

que nem a raiva explica, esta sem razão sumária

que a todos diz respeito mas a poucos inquieta

por tudo estar demasiado corrompido aos nossos olhos

ainda que seja sempre de inocentes a matança.

Eu pinto. Quer dizer, insurjo-me contra quem

mata, sitiado por esta imensa solidão que me agonia

a vontade e o afinco que nas minhas obras ponho,

a escolher em cada instante o que melhor poderá reproduzir

o meu repudio por assim ser o mundo. Eu pinto, quer dizer,

procuro a luz no que a escuridão me traz, o agasalho

que a mim e aos meus contemporâneos possa proteger

do frio que cada morte entrega, cada crime, cada assassinato,

cada cilada que se impõe aos que querem a vida e amam paz,

e desejam, com um pão macio, resolver a fome que os pune.

Os homens falam torto, ouvem mal, vêem imperfeitamente.

Encalham na loucura que lhes é própria e pouco fazem

para tentar discernir o que é o mal e o que é o bem. Tenho para mim

que pintar é um dom da inteligência, uma aptidão sagrada,

e por isso me obrigo em pôr nos quadros o que advém do meu

talento e da finura com que me ponho a compreender o que está

à minha volta e fere os meus sentidos. Escolho os pigmentos

com critério, a tela ou a madeira para o trabalho, os pincéis

convenientes e as espátulas, o que há de indizível que possa por intuição

aproveitar para o que quero mostrar nas minhas obras,

este contraste claro e obscuro em que a perspectiva se manifesta,

as linhas longas, os seus sinais de adelgaçada ou firme percepção

do que procede do silêncio e tudo pode construir

ou destruir no universo, seja o grito que desemboca

na aflição, seja a minúcia que uma cor faz intuir, seja a parte

infinita de beleza que há em tudo, se a soubermos

buscar e encontrar. Em arte nunca há neutralidade, temos

e não temos a vida, a nossa e a dos outros, nas nossas mãos

e a transparência é o último reduto onde tudo se decide,

o que culmina no nome que usamos, na redenção

de que queremos fruir, a alma limpa ou suja

com que se exerce a nossa heroicidade ou a nossa cobardia.

Há o orvalho da manhã, o bosque claro e a clareira, a torre

compassiva, a magnífica acção de cuidar e de interceder pelos outros,

e há também a matança, os inocentes acossados, a desgraça

que cobre os corações, a desdita da espada que decepa

e nos amputa da alta justiça a que almejamos sempre que vamos

contra a corrente que nos desafia. Nesta pintura mostro o massacre

dos inocentes com que me debato, a presumir que na escolha das figuras

hão-de estar todos os que me pesam no conhecimento de mim mesmo,

para que alguma coisa fique dita do que pressinto dos que o destino

condenou, não sei se arbitrariamente, se marcados pelos ferros do destino.

Matança, mortandade ou massacre? Penso nos detalhes

e dou início aos meus esboços, uso o carvão e a sanguínea

para preencher os espaços devolutos das minhas dúvidas

e da minha memória. Tudo é lento neste ofício de paciência

e relembrança, a verdade é sempre estranha, às vezes

é mais fácil figurar o vento no que crio do que assinalar

o sofrimento dos que estão ferozmente acuados e receiam,

dos que sabem que vão morrer sem qualquer quietude que lhes valha.

Assim preencho o inventário de perdas em que me reconheço,

pinto e pinto um labirinto de mortes com personagens

voluptuosas para que os meus ombros possam suportar

a crudelíssima verdade que se impõe, o que a mim apoquenta

e aos outros deveria atormentar, seja porque Caim matou Abel,

e assim gerou o pecado original, seja porque mandou Herodes

investir contra recém-nascidos, seja porque, poucos anos

antes de eu ter nascido, os católicos franceses dizimaram milhares

de protestantes, os ditos huguenotes, seja porque os crimes

se multiplicam e adensam sem que a nossa vergonha

e a nossa compaixão se revele e explique. Somos

há séculos confrontados com a ignomínia de aqui vivermos coxos,

de sermos o que somos, gente em quem se não pode confiar

porque amplia as nódoas negras e diminui o que poderia ser

a comoção de estarmos vivos e de fazermos um pacto com a alegria.

Envolvo-me fisicamente com as figuras que pinto, não as temo,

induzo-lhes uma prosódia de verosimilhança porque as suas acções

são arrebatadoras, sentindo-lhes as línguas turvas, as mãos

crispadas, as bocas inquietas pelo fardo dos seus dramas,

a terrível tensão entre os que matam e os que vão morrer,

o estremecimento que a cada corpo acode pelo que de pavoroso

se entende da miséria humana. Pinto e pinto com o coração

esmagado, com os olhos rasos de lágrimas, sem esperança

e sem confiança, talvez sem fé, porque crio sobre o que destrói,

esta amálgama de anéis de treva que desvanecem e emporcalham tudo.

Se há um modo de proteger os assassinados dos que os perseguiram

não sei. Apraz-me deitar a rede a tudo o que posso para levar

a bom porto o meu projecto, Antuérpia está calma, há sol

e as ruas pulsam de gente que procura a veemência do que pode acontecer

num bom dia claro, este negócio, esta conversa, esta possibilidade

de concórdia entre os que sobem a praça e os que a descem,

Revista RUA-L nº. 10, II º. Série, Aveiro, 2021


  PARA UMA HOMENAGEM A MÁRIO BOTAS 

 

eu não sou um miúdo. odeio que me chamem

miúdo. tanto mais que sei muito bem como a minha naifa,

sendo igual à dos outros miúdos, não é igual

à dos outros miúdos, porque a uso como só eu sei,

seja a espetar em latas ou seja para me defender

dos recontros da rua. pode um miúdo

descrever a marcha dos pioneiros, partir de manhã cedo

em direcção ao mercado e roubar laranjas para se sustentar?

não pode. por isso eu não sou um miúdo. odeio que me chamem

miúdo e aviso já que sou turbulento, que abomino a escola,

que desprezo quem passa a mão pela minha cabeça

e que não tarda nada o mundo será meu. pode um miúdo

semicerrar os olhos e olhar o infinito para o universo das drogas

e da sexualidade? não pode. eu não sou um miúdo. odeio

que me chamem miúdo. abasteço-me do meu quinhão

de fúria e violência como nenhum miúdo há-de poder,

tanto mais que sei muito bem como a minha naifa

está sempre pronta a desferir um duro golpe na infância perfeita.

Livro colectivo Falar Dele no Céu de uma Paisagem,
Nazaré, Setembro de 2021


FALA DE JOSÉ JORGE DE FIGUEIREDO, ÚLTIMO SENTENCIADO
À MORTE POR ENFORCAMENTO EM BRAGANÇA,
A 19 DE AGOSTO DE1843, POR CRIMES DE QUE, DECLARA O POVO,
ESTAVA INOCENTE

 

Tenho estranhos negócios com o carrasco.

A troco de umas moedas ele passa-me

A corda à volta do pescoço e eu resgato

Não sei bem que pecados ou que faltas.

 

Neste momento ajuda-me pensar no céu

Abençoado, ou num pinhal a perder

De vista, pejado de estevas e madressilva,

Exactamente igual ao da minha infância.

 

Respondo à autoridade por crimes vis,

Mais uns pães que roubei e umas galinhas

Que abati para fazer um caldo certa noite

 

Em que os meus sobrinhos tinham fome.

Depois veio a justiça e já se sabe o pobre

Paga com a riqueza da vida o mal que expia.

 

Livro colectivo110 Anos, 110 Poetas –
Antologia Comemorativa dos Cento e Dez Anos da Universidade do Porto


  ESCRITO NA GRÉCIA

(para Isabel Duarte)

 

ANTÍGONA

 

Somos íntimos de Antígona

em busca da justiça. Somos íntimos

do soldado que capturou Antígona

e assim salvou a sua vida

por a ter entregue ao príncipe Creonte,

lamentando-a. Somos íntimos

de Sófocles e da razão que nos assiste

por ocuparmos um lugar no mundo.

Dos nossos heroísmos e prepotências

somos íntimos. Somos íntimos

da verdade e dos mortos que nos explicam.

Somos íntimos das tragédias que vivemos.

Escrito na Grécia, 2022


ARTEMÍSIO

(ESTÁTUA DE CAVALO COM CRIANÇA)

 

É um cavalo anterior a Zeus,

um cavalo anterior a Cronos,

um cavalo anterior a Caos.

É um cavalo que uma criança monta,

um cavalo aéreo e uma criança aérea,

um par indestrutível que alguém aparelhou

num bloco de bronze. É um cavalo

que voa numa estrada de prata,

um cavalo que dá três voltas à lua,

que dá três voltas à noite,

que dá três voltas à terra.

É um cavalo de bronze e uma criança,

um par indestrutível livre e imortal

que jamais detém o seu voo infinito,

a avançar, sempre a avançar

sobre o mundo.

Escrito na Grécia, 2022


CORINTO

 

No baixo-relevo do acrotério

de Corinto pode ver-se

o rapaz que apregoa uvas

há mais de dois mil anos.

Escrito na Grécia, 2022


ÍOS

 

Campos límpidos, com oliveiras

a perder de vista e aves que com elas voam.

No muro antigo, brunido pela cal, um risco azul

e uma dúzia de maçãs que ardem lentamente,

nítidas lâmpadas a iluminar a tarde.

Além, um velho barco, gémeo da ausência

ou das fragrâncias que flutuam no ar,

odor a figo, a sal, a aloé. E entre o mais

a música festiva e as raparigas

que põem sobre a mesa fulvos pães,

uvas, leite, romãs, azeite puro.

Assim neste chão amanhecemos

até que sobre nós a noite caia.

Escrito na Grécia, 2022


KAZANTZÁKIS

 

Danço com Zorba desde o início do mundo.

A maior das tentações é o meu coração pertencer

ao coração dos homens, uma tentação benigna,

eis o que digo. Se o mundo apodrecer

e tudo ruir à minha volta irão permanecer

os meus braços levantados enquanto danço,

esta pulsação infinita, esta alegria indizível.

E isto sei: os meus pés são de barro

e de pedra o meu espírito, de pedra indestrutível.

Levanto os braços enquanto danço na praia,

acompanhado de Zorba. Depois da dança

iremos beber e comer figos,

entusiasmados pela língua áspera

com que soltamos os nossos gritos ardentes e terríveis,

certos de que iremos marcar o mar

com os nossos passos, a nossa irredutível

dança.

Escrito na Grécia, 2022


RITSOS

 

Importa a tesoura das unhas que está perdida

e iremos encontrar enferrujada

enterrada no quintal. O botão

da camisa, também perdido,

também importa, esse que por descuido

foi parar ao lixo e nunca mais

há-de ser visto. Importa a caneca

partida e a panela furada de que os camaradas

beberam sopa, uma água esverdeada

que três feijões compunham. Importa

a estátua nua e importam as cabeças

duras que uivam aos ventos desviantes

e as ameaças à nossa humanidade.

Importa a erva daninha, o sanatório,

os loucos, os ossos brancos

dos cavalos de Aquiles. Importa

o espinho cravado na garganta

que nos faz abrir muito a boca

para cantar.

Escrito na Grécia, 2022


TILOS

 

Olhas a estibordo e vês a ilha.

Olhas a bombordo e vês a ilha.

Olhas da ré e vês a ilha.

Olhas da quilha e vês a ilha.

 

Para onde quer que olhes vês a ilha

dentro de ti.

Escrito na Grécia, 2022


SOBRE O QUADRO DAMA QUE DESCOBRE OS SEIOS,
ATRIBUÍDO A JACOPO TINTORETTO OU A DOMENICO TINTORETTO
c.1570, óleo sobre tela, 61×55 cm, Museo del Prado

(para Clara van Manen)

 

Já nada sei de ti, agora que a viagem é uma memória

longínqua e envelhecemos separados sob o peso

de transeuntes em fuga e inânimes agravos do que a ausência

ergue, após o regresso de Veneza. Mas se recuar a 1570 posso, ainda,

surpreender-te na oficina de Tintoretto, a descobrir os seios

para que a beleza avulte nesta tela em que te mostras

para que seja maior a magnificência e, por uma vez,

os olhos se encham do poder que a pintura nos transmite

e nos teus olhos vi, há algum tempo. A beleza

nunca se consome e o que parece distante pode vir

vencer as nossas dores mais íntimas, bastando-nos abrir

o coração ao que parece não ser mais do que fugaz,

mas será sempre eterno no desdobrar perpétuo da espiral do tempo.

Entre partir e ficar, tudo nos dói. Dói-nos o mundo em volta,

a despedida, a afeição que tínhamos quando estávamos vigilantes,

mas tudo desabava à nossa frente, por um acaso fútil, uma gota

de chuva, uma pedra perdida, uma palavra rude a separar

os nossos dois destinos, que certa vez progrediram

em Veneza à procura de luz e poesia, sem que soubéssemos

que cais nos poderia receber ou rejeitar. És transgressora

como esta dama que um Tintoretto pintou sabia sê-lo,

numa época intrincada para os costumes, estava Pio V

a ajustar a bula  que havia de extinguir os Humiliati,

acusados de impudor e outros abusos, e talvez seja

por isso que o teu perfil neste retrato

se ajuste à generosidade feminina de revelar

o que de mais grácil e secreto alguém possui, não por enlevo

pelo que é carnal, mas por lisonja e arroubo de uma dama

que deixa que o milagre da luz se estabeleça

para que uma outra  luz alcance a humanidade.

Quem esta dama seja, não se sabe, ignora-se

porque está no retrato e tem o seu colar  só duas voltas,

e estão as suas mãos nuas de anéis, e usa o cabelo

como uma onda larga que uma trança remata sobre a nuca,

ataviada por um artifício de pérolas, que atribui

ao fulcro da cabeça uma nobreza indagadora e esplêndida,

e aguarda a sua boca que o mundo acabe ou tenha início,

enquanto uma fonte de luz perpétua a ilumina.

É de seda o seu vestido em que a turmalina marca

uma leve presença para que uma maior claridade se entenda

nas diáfanas pregas prateadas que ali vemos, enquanto ela

olha para o lado, não para nós, mas para o que de invisível

connosco comunica, seja por algum pressentimento que na alma

tenha, ou porque dali vislumbra alguma peça de água que esteja na Laguna,

algum cristal de névoa,  algum reflexo que tinja a limpidez

dos ocres e azuis que, naquele instante, alcançam o Adriático.

Arrojados e doces, os graciosos dedos empurram o tecido

que lhe contorna o peito  e pode avistar-se o diminuto

detalhe de uma renda afável que alarga o encantamento

pela beleza de uma mulher assim desocultar os seios

para que o sobressalto alastre sobre o tempo,

fazendo-nos imortais porque os fitamos

na loucura  mansa de os vermos, e ser isso de Veneza

o que esperamos. Ah, a luminosidade da beleza que se entrega

ilumina-nos como se nos atingisse um voo o corpo

e ao nosso espírito a redenção chegasse,

e tocassem os sinos a rebate, e um secreto incêndio

se acendesse, e nos cercasse um fogo tranquilo e violento,

e tudo o que já fomos ressurgisse na terrível perspectiva da inocência,

a infância, o mar, o amor, as nossas frágeis ânsias, a dura dor

que preenche os nossos dias quando nada mais

há que inalteráveis sombras e olhos cegos

a tudo o que à nossa volta nos reclama

na insuportável sordidez das coisas.

Já nada sei de ti, mas sei que neste quadro tu

– ou Marietta Robusti, também chamada a Tintoretta,

celebrada filha de Jacopo Tintoretto, também pintora,

ou Verónica Franco, onesta cortesã veneziana, poeta e literata,

que alguém, mais tarde, denunciará à Inquisição por bruxaria,

como sempre acontece a quem pelo fascínio está na vida,

prováveis ou improváveis modelos desta tela –, deixaste dito,

como uma ordem sagrada que deve transmitir-se,

que a beleza basta mas bem maior será

o benefício que encontrarmos nela,

irradiante e nítida quando a descobrirmos.

Veneziana, 2023


OUTRA VEZ A CHUVA

 

Outra vez a chuva, outra vez este

Charco de mágoa que suja o espírito

E esta lâmina cravada nas espáduas,

Esta vicissitude que não cessa

 

E amarga as noites e os dias.

Outra vez esta fantasmagoria

De espectros a perseguir-me,

Esta barbárie que a dor e a nostalgia

 

Ampliam sobre os meus ombros.

Desta vertigem não hei-de sair vivo.

Feneço nesta vida entristecida que a cada

 

Instante se apaga pela tua ausência.

Outra vez chuva, outra vez este

Navio que parte e não regressa.

Os Amantes Separados, 2023


SENTIDO

 

Deixou de fazer sentido voltar

Para casa para comer sozinho,

Para dormir sozinho, para viver

Sozinho. Nenhum cão me espera,

 

Nenhuma jarra onde tenhas posto

Um ramo de rosas amarelas,

Um lenço perfumado, uma almofada

Em que tenham ficado as tuas marcas

 

De sono agitado. Deixou de fazer

Sentido ter em frente este horizonte

De pedras que o mar já não contém,

 

Este tecido de espuma a desfazer-se.

O que aqui ardia já não arde

E a noite é sempre longa e mutilada.

Os Amantes Separados, 2023


1.

É uma mulher de bronze que concentra

A luz dos séculos nas mãos que tem paradas,

Embora as vejamos crescer sobre o espaço.

É grega, com certeza. Ao fogo deve

As pregas do vestido, o ornamento

Que leva no pescoço, a tessitura

Que lhe assenta os pés no chão,

Ainda que se saiba que não seja mais

Que puro voo, rodeada pelo tempo

Em que está. Alguém assim a fixou,

Talvez porque a visse em Delfos

A exercer o oráculo, ou a adivinhasse

Companheira de Leto e de Níobe,

Cúmplices de Safo na extensão

De todos os enigmas do universo.

Pelo bronze se solta, pelo metal

Se faz leveza dúctil, pela harmonia

Que dos ombros lhe escorre e se transforma

Em eternidade, ainda que seja a eternidade

Não mais que o instante em que a vemos

E só a imortalidade lhe pertença.

Por ela a luz alarga-se, pelo maciço

Sortilégio que deslumbra a nossa solidão,

Feita de coisas comezinhas e passivas.

De certa forma podemos dizer dela

Que é o que alguma vez não poderemos ser,

Invencíveis em todo o desapego

Que a uma estátua possa pertencer.

Pousada sobre as sombras está ali

Para que nunca possamos esquecer-nos

Que é da arte que todos somos filhos,

Metalurgia, agricultura ou poesia

Que nos evocam e que nos excedem.

A galeria acolhe-a para sempre,

Exactamente como o clarão de treva

Que possui dentro de si, porque foi

Rasto de um sonho e de uma vontade

Que acolheu o desconhecido

Para que a ignorância se debelasse.

Passou por um forno. Passou pela cabeça

De alguém que lhe soprou a vida

Nas narinas, que lhe pôs um coração

Dentro do peito, esse que não sabemos

Ouvir porque pulsa a um ritmo tão veloz

Que nos ultrapassa, simples mortais

Que somos que não podemos entender

Nunca a luz que toca o interior do que,

A nós ou ao divino, representa.

 

2.

Para ver melhor, esta escultura

Não tem olhos. A transparência

Está para lá de nós e só a estátua

Pode ver o que é antigo, as embarcações

Nas praias de Tróia, o voo

Dos corvos sobre as ilhas, os passos

Do hoptila a carregar a lança,

O sono de Aquiles a sonhar com Briseida

Se não houvesse guerra ou se Pátroclo

Não estivesse morto. A estátua sabe

Que há uma premonição de sombras

Que sitia. Sem olhos vê melhor

A nossa escuridão, a treva com que os séculos

Macularam a alvura, este esplendor que não

Podemos ver porque o nosso olhar

Está imóvel e, de tudo o que há para ver,

Só alguns brilhos vemos, os brilhos

Que nos cegam. Esta escultura

Não tem olhos, mas vê melhor

E mais profundamente. Vê Heitor

A domar os seus cavalos, o sorriso

Obstinado de Helena, o amor

De Páris por Helena, as chamas

Que hão-de progredir pela cidade

Quando for tempo de ver chamas

E a claridade for tão obscura

Que nada devolverá a luz que haja.

Sn + Cu Bronze,2024


SOBRE O QUADRO THE UGLY DUCHESS, C. 1453 DE QUENTIN MATSYS

(para Fernando Correia)

 

Hás-de olhar-me tantas vezes que direi

que és insaciável. Pensa a fealdade

e compara-a com a beleza, ficarei

grata se assim fizeres e responderes

à minha desolação e ao meu delíquio.

Olha-me, se podes, bem fundo nos olhos.

Imagina que me beijas inflamadamente

sem cuidar de saber quem sou e de onde

venho. Beija-me apenas pelo furor

de me beijares, como se eu fosse a mulher

dos teus sonhos, a que em nenhum outro sonho

senão nesse te poderás conter pela afabilidade

ou a falta dela, o meu perfume, o teu deleite, o meu calor.

Há uma ternura louca no que entrego,

Por mais que me recuses ou te assuste

a deformidade com que a vida me dotou,

esta pele coriácea, estes lábios medonhos,

esta ânsia inumana de frustrado desejo.

Olha-me para que, por uma vez,

me saiba inquieta porque me tocas

o coração e me tremem as mãos,

porque sou uma presença absoluta

no teu campo de visão, no teu anelo,

na tua circunstância. Olha-me para que sejas

ávido de me olhares e possas surpreender

os meus sentidos, todo o ardor,

toda a magnanimidade que um homem

pode pôr no amor por uma mulher,

sem que nada lhe pergunte ou lhe responda,

sem que nada o mortifique por amar

quem, mais do que um laço, quer

sobreviver. Ah, não deixes de me olhar.

Não te intimides pelo que de grotesco

eu possa ter, esta deformação dos ossos,

esta postura lânguida, este tosco

arremedo de sorriso, este nariz simiesco,

estas mamas disformes, este pescoço.

Morde-me com um beijo e pensa em mim

sem repugnância, a tomar-me pela coquete

que não sou mas gostava de ser,

este sismo delicado e lento que mais não busca

que a delícia e a entrega, essa íntima sílaba

em que a carne se incendeia com o fulgor

de tudo o que se concretiza sob a luz das sombras.

Ama-me avassaladoramente, com a mesma

espécie de volúpia com que a neve aformoseia

os penhascos, as rochas negras, os vales lúgubres,

o silêncio. Ama-me como se não fosses cego,

com a alegria residual da solidão, pela manhã,

pela tarde, pela noite, por tudo o que de inconfessável

o amor se alimenta, a treva que se amplia

nos meus olhos, a tempestade disforme

que podes encontrar entre os meus braços,

este colapso, esta ruína, este enamoramento

que me compraz de ti porque tu existes

e eu existo para saber quem sou e quem tu és.

Sou um modelo medonho? Alguma coisa mais

encontrarás em mim além da fealdade

com que me mostro ao mundo e com que o mundo

me vê e me atinge, este apogeu de lábios,

estas orelhas informes mas atentas, este colo

que aguarda a tua cabeça para que o repouso

seja a recompensa e a candura, este cânhamo

que pode inebriar-te caso assim o queiras,

esta carne em que tudo transparece se te permitires

gostar do que vês. Ama-me como se eu fosse

uma muralha, a lânguida muralha do arrebatamento

de um sangue que ferve, uma carne que pulsa,

uma ave que voa para o gritado silêncio da beleza,

este corpo em que a treva subsiste para que a claridade

exista e o assombro cante sob o que despreza.

inédito


[1] Cf. Van Gogh: A tristeza durará sempre.


©  Amadeu Baptista


Revista Triplov . Dezembro de 2024

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