MANOEL TAVARES RODRIGUES-LEAL
Tributo
Org.: Luís de Barreiros Tavares
Nota – Apresentam-se nesta edição-dossiê 11 poemas a Pier Paolo Pasolini, por Manoel Tavares Rodrigues-Leal (1941-2016). Seis poemas aqui publicados pertencem ao caderno Teorema — (Homenagem a Pier Paolo Pasolini). Neste caderno constam dezenas de poemas inéditos.
1
(Homenagem a Pier Paolo Pasolini, assassinado em 2–11–75, na praia de Ostia, Roma) — (“O Evangelho segundo São Mateus”)
No olhar em visita se espelha a poesia impossível das nossas perversas vidas (OSTIA).
A água álgida flui e reflui, ao brilho acordado se restitui, e seu exílio e sua promessa são efémeros.
A boca nocturna da praia anunciou-te a morte após a aventura da sedução, da entrega.
Teu perfil perfeito (PASOLINI) é intacto e íntimo: Deus redimiu-te do mundo através da ascese e do crime coincidentes.
E Deus, divinamente, te exalta e consente, grave e solenemente ao paraíso perdido te consagra.
Após antiquíssima promessa.
Lx. 3-11-75 – caderno Limae Labor — poema escrito um dia depois da morte de Pasolini (2-11-75)[1]
2
A grande bloqueio, íntimo desastre, me assisto,
que estes corpos são separados por maldição. Minha alma tece sua teia nocturna,
que eu queria alegria nítida e tão diurna mas não resisto
a vertente amor que é efémera verdade. E amor teu declina, rosa cálida e nua.
Inédito. Lx. 17-7-76 — caderno Teorema — (Homenagem a Pier Paolo Pasolini)[2]
3
Amor se cumpre em declínio, morte de corpo ausente.
Que era bandeira de alegria quando alegre alvejava
meu peito possuído de poeta que se te ama, te consente.
E malícia, maldição nos cercam, amantes de uma praia alva.
E minha alma cúmplice como se cumpre em rosa oblíqua, em puro poente.
Inédito. Lx. 18-7-76 — caderno Teorema — (Homenagem a Pier Paolo Pasolini)
4
“Assassinato de Pier Paolo Pasolini”
Teorema ou trama de verve e vida dividida,
na fronte pendente, como aflora a unidade primitiva
do poema e seu poeta, como o acompanhar no desastre, no alibi.
Beleza e eternidade povoam o poema, e o poeta aspira a Deus.
Mas quando amor desama, estro não basta, é dor bebida
em taças de prata. Mas poeta é esta atenção pura a todas as coisas,
e suicídio, movimento de loucura, escamas de lábios, morte,
o orvalho de seus desejos, desiderato de todo o teorema ou chama.
Lx. 21–7–76 — caderno Teorema — (Homenagem a Pier Paolo Pasolini)[3]
5
Edificar a mítica solidão e saudade.
Em vez de mulher amante, domingos de praia e prosaicos amigos.
Esse teorema tem alma e acolhida verdade,
que verticais ou horizontais são estes dias humildes,
redimidos pela mão de Deus, expiados, convertidos em nostálgica humanidade.
Só o verbo ameno mo consente, ofício de poeta.
Cujo gesto suicida se engrandece em um poente pungente,
e eu, poeta maldito, não tenho gente, nem meta:
a literatura que é uma espécie de doçura quando não se é amado nem amante,
e flutua à flor das páginas exangues, Literatura ou Evangelho.
Literatura, que eu queria vida transcendente e pura, e não velho viver errante.
Inédito – Lx. 21-7-76 – caderno Teorema — (Homenagem a Pier Paolo Pasolini)[4]
6
Quando me quedo e só sabor a desastre
me povoa já nem ledo jardim me ocorre
quão grave astro de melancolia me percorre
o corpo e não sou casto. Pergunto: Deus por que te distanciaste de mim?
É o teorema da mão nua que ninguém socorre…
Inédito. Lx. 21-7-76 – caderno Teorema — (Homenagem a Pier Paolo Pasolini)[5]
7
Já me ofusca o fogo de esta manhã, interdita.
Minha vida é mero intervalo
entre o mundo e o que é Outono eterno.
Como cantá-lo, se o sonho naufraga
em terno, cativo beijo. Beleza que em meu sonho sonhado acaba…
Inédito. Lx. 22-7-76 – caderno Teorema — (Homenagem a Pier Paolo Pasolini)
8
O Evangelho segundo São Mateus
(Homenagem a Pier Paolo Pasolini)
Senhor expio meus pecados eu pecador
profanei vossa sabedoria e humildade
vossos templos de silêncio e oração
mas Senhor tem piedade de esta inocência em a alma
que já não sobrevivo a tão cruel expiação
e grito grito Senhor por que me abandonaste em este deserto sem oásis
que não compreendo vossa misericórdia e vosso abandono
e em verdade vos digo (como Jesus dizia) que vossa luz se apaga
em esta vida verdadeira Paixão como a de Cristo inscrita.
Senhor desejava vosso jugo suave e só solidão loucura
morte nos assistem e eu grito grito choro em este nu deserto
tão atraiçoado Senhor que Deus não me visita e eu poeta
esperando vossa eterna poesia — malogra-se gesto tudo turvo
e eu aguardando a palavra primitiva essa que nos omite mas redime
Senhor não me deixeis naufragar pecados são múltiplos mas muita
vontade de amar-vos que morte em vós não é suplício é salvação
no além da alma que grito grita em este ermo teorema.
Lx. 31–8–76 — caderno No Reino de Eros[6]
9
Quase Pasolini
Cada face
tem seu traço imperfeito
sua flor putrefacta…
na manhã intacta
abstraio do corcel cruel que talvez trace
a morte perene e vária
quem o ignora?
Lx. 30/9/84 — caderno Setembro Breve[7]
10
(Pier Paolo Pasolini — I)
o sémen na boca
escolhe a sua fuga
áspera tenaz
de uma paz
que se morde e aluga…
Lx. 1/10/84 — caderno Setembro Breve[8]
11
(Pier Paolo Pasolini — II)
É o sémen
ou a visitação ao invés
acaba a boca
no que jaz
se há pénis no cerne do que és
ou apenas a iniciação
ao verbo ___ a paz
verdadeira lisura de perdição
na morte solene
paixão do que se vive
aqui na turva terra
Pasolini
Lx. 1/10/84 — caderno Setembro Breve[9]
Filme: Pier Paolo Pasolini – Qual é o sentido de escrever?
[1] Publicado na revista online Caliban, dirigida por Maria João Cantinho: https://revistacaliban.net/2-poemas-in%C3%A9ditos-a-pier-paolo-pasolini-por-manoel-tavares-rodrigues-leal-9095354e9c3
Há seguinte data no manuscrito Lx. 25-10-73. Mas o poema na sua versão original indica já a morte de Pasolini (2-11-75).
[2] Este e o seguinte poema e o sétimo pertencem ao caderno Teorema — (Homenagem a Pier Paolo Pasolini). Embora nem todos os poemas deste caderno evoquem Pasolini, estes três expressam a morte trágica do cineasta e poeta italiano. Por exemplo, no primeiro poema, o primeiro e segundo versos são evidentes; também a alusão à noite (quando foi assassinado) e ao dia (quando o corpo foi encontrado de manhã). No segundo poema: “Amor se cumpre em declínio, morte de corpo ausente” e “E malícia, maldição nos cercam, amantes de uma praia alva [praia de Óstia].” No sétimo, por exemplo: “Já me ofusca o fogo de esta manhã, interdita.”; entre o mundo e o que é Outono eterno [estação do ano em que o poeta foi assassinado].”
[3] Publicado na revista online Caliban, dirigida por Maria João Cantinho: https://revistacaliban.net/2-poemas-in%C3%A9ditos-a-pier-paolo-pasolini-por-manoel-tavares-rodrigues-leal-9095354e9c3
[4] Este poema alude aos filmes “Teorema” (1968) e “O Evangelho segundo São Mateus” (1964).
[5] Poema que também alude a “Teorema”.
[6] Este poema é de teor religioso e mais confessional, como tantos poetas já escreveram, mas inspirado em Pasolini e no seu filme “O Evangelho segundo São Mateus” (ver também poema 5). Trailer do filme: https://www.youtube.com/watch?v=ku8anKRF838&t=7s
[7] Publicado na Caliban: https://revistacaliban.net/4-poemas-a-pier-paolo-pasolini-in%C3%A9ditos-ii-79e52a458d56
[8] Publicado na Caliban: https://revistacaliban.net/4-poemas-a-pier-paolo-pasolini-in%C3%A9ditos-ii-79e52a458d56
[9] Publicado na Caliban: https://revistacaliban.net/4-poemas-a-pier-paolo-pasolini-in%C3%A9ditos-ii-79e52a458d56
MANOEL TAVARES RODRIGUES-LEAL