Um homem terno

 

TRIBUTO AO PROF. GALOPIM DE CARVALHO


EDITORIAL
Por Maria Estela Guedes

Não é habitual ultimamente eu assinar editoriais, pois as personalidades a quem o Triplov presta homenagem, nesta série da Revista, não precisam de mim para as tutelar. Ainda menos o Prof. Galopim de Carvalho, que foi meu diretor no Museu Nacional de História Natural da Universidade de Lisboa (hoje o nome é algo diferente). Acontece entretanto que a amizade criada então, entre dissabores e rebeldias, exige de mim esse preito público. Sirva ele então para revelar quão versátil é este espírito, situado na confluência de Humanidades e Ciências, campos hoje em pé de hostilidade, com as ciências a querem despojar o Ensino daquilo que entendem não ser necessário para o futuro dos jovens. Se algo demonstra este tributo, é a figura de A.M. Galopim de Carvalho como aliança entre as duas componentes.

Pintor, escultor – “Se não tive escola na pintura, já não foi assim na escultura – esclarece o Prof. Galopim. Com efeito, estagiei no Arco, com a Graça Costa Cabral  e o meu trabalho  final foi a escultura que mostra na foto” –  analista de arte, ficcionista, memorialista, pensador, mestre cozinheiro, professor, cientista, divulgador científico, esperando que a mostra de documentos da página de índice colmate algum pecado de esquecimento meu, o Prof. Galopim é um prodígio de aptidões incompatíveis com qualquer ideia de especialização. Por consequência, é um homem de antigamente, à maneira dos filósofos naturais, cuja cultura e formação se pretendia universalista, e ao mesmo tempo é um homem do futuro, pois de há anos se vem combatendo a tendência nefasta para a especialização e sobretudo, dentro do Ensino, a vontade de reduzir ao mínimo a presença das Humanidades, ou pelo menos de matérias que a despreparação intelectual das lideranças políticas considera inúteis. Grego e Latim, verbi gratia, para que servem? Ora, se lermos com atenção as crónicas do Prof. Galopim, até nas de culinária, ao anotar a etimologia dos vocábulos, ele demonstra que as línguas ainda se falam, usam e servem para iluminar o espírito, mesmo depois de mortas.

Já viste a minha gravata de galopins?

Todos sabem a história dos galopins, certo? Isso faz parte da costela jurássica do Professor, e refiro-me mais ao filme do que aos dinos, que tiveram em Portugal um enquadramento museológico digno de uma grande epopeia à Spielberg. Tal aconteceu graças às diligências do Prof. Galopim, enquanto diretor de museu. Tal foi o êxito da exposição «Dinossáurios regressam em Lisboa», que mudaram de nome, passando a ser conhecidos como «galopins».  Vieram mais exposições e ocorrências no terreno com foco nos vestígios geológicos dos animais, porém a primeira exposição representou o acme da ação primeira de A.M. Galopim de Carvalho desenvolvida ao longo da sua vida: a pedagógica. Ensinar, divulgar o que mais sábios conhecem, dar atenção aos mais carentes, em especial crianças e jovens. Posicionamento por vezes radical, dentro das ideias progressistas, que nos tem arrastado para movimentaçóes culturais – haja em vista toda a sua ação em prol da criação de museus de paleontologia, em especial atentos às pegadas de dinossauro, ricas e importantes não só em termos regionais como mundiais – de confrontação com a inércia tantas vezes manifesta pelo Poder.

Um homem terno, diz o meu título, e a tal respeito nada adiantei. Será preciso? Basta observar a fotografia de cabeçalho, que capta um momento de amor entre o homem e o golfinho, entre o naturalista e a Natureza. Basta vê-lo nas escolas de crianças, algumas com o seu nome, basta vê-lo nos museus a falar com os jovens, e alguns museus exibem o seu nome, para documentar esta  circunstância de que o Senhor Professor é um manifesto de relacionamento amistoso com muitos dos que o têm acompanhado vida fora. E depois a figura ajuda, não é verdade? Se os dinos ou galopins metem medo, como certos patrões, é por serem enormes e mostrarem os dentes. Ele é o oposto disso, portanto uma pessoa que naturalmente nos desperta a simpatia.  E este é o elo de ligação mais forte entre o Humanista e o Cientista, ou seja, entre o coração e o cérebro, entre o frio do microscópio e o quente da poesia.

 

 


Revista Triplov

Tributo a A.M. Galopim de Carvalho – Índice

Portugal . Outubro . 2022