CUNHA DE LEIRADELLA
Tributo
Eu não conhecia Vila Nova de Pardais, e muito menos o restaurante do Hotel Casa da Queixada. Mas tínhamos ido ao Theatro Circo ver um concerto, e à saída o marido da minha amiga perguntou-me, ó Mila, você conhece o Restaurante Casa da Queixada? Eu disse-lhe que não, mas ele, a rir-se, disse-me, fica numa vilória aqui perto, e há lá um cabrito assado às sextas-feiras que é divino. A minha amiga riu-se e perguntou-lhe, ó Pitu, tu estás doido, ou quê, hã? A quereres ir agora desabalado por aí abaixo, a estas horas? Tem mas é juízo. O meu marido encolheu os ombros e não disse nada, mas eu disse ao Pitu, ó Pitu, fora de brincadeiras, você está a brincar, ou quê, hã? Estou a falar a sério, disse-me ele. Tenho lá ido, e o cabrito é divino. Não me interessei. Em Braga, o meu restaurante preferido é o Das Infantas, da Pousada das Senhoras Infantas. As minhas amigas dizem que o Das Infantas só é o Das Infantas porque é o restaurante mais caro de Braga, e por isso é o que toda a alta sociedade frequenta. Mas não é. O Das Infantas é apenas um restaurante de bom gosto, e eu gosto de sítios onde uma pessoa como eu possa sentir-se bem e à vontade.
Só não adormeci no concerto porque ia parecer mal, mas gostei do pianista. Era um homem bonito, elegante, e para além de ser um homem bonito e elegante, também parecia desamparado, e eu gosto de homens desamparados. Quando digo às minhas amigas que gosto de homens desamparados, elas riem-se do meu romantismo e dizem-me que ser romântica, hoje em dia é ser pindérica. Mas eu pergunto, não é melhor uma pessoa ser romântica do que estar sempre a falar de coisas tristes? Eu sou uma mulher romântica. Sempre o fui. Sempre acreditei no amor à primeira vista e tenho orgulho em o dizer. Tenho a certeza que as minhas amigas só não são românticas porque nenhumas delas é igual a mim.
Vi-o logo que chegamos, sentado, sozinho, a olhar o prato da comida, três mesas além da nossa. Era louro, de olhos azuis, e a pele, amorenada pelo sol, parecia que ele tinha chegado da praia naquele instante. Usava uma camisa lilás, sem gola, de seda pura, aberta no peito. Um modelo francês, um daqueles modelos que uma pessoa olha e vê logo que têm classe. Era um homem lindíssimo, e parecia desamparadíssimo.
Olhei-o, mas para que ninguém da nossa mesa notasse o meu olhar, acendi um cigarro e dei uma passa. Discreta, como convinha a uma mulher como eu.
Todas as minhas amigas me invejam. E algumas, quando algum homem me corteja, chegam até a dizer-me, deixa-te de peneiras, ó Mila. Aproveita enquanto podes, ele é riquíssimo e discretíssimo. Quando as minhas amigas me dizem isto, eu sorrio-me e mudo de assunto. Eu sei que elas se riem do que chamam os meus escrúpulos e aproveitam todas as oportunidades. E quando voltam contam-me tudo. Tu nem sabes o que perdeste, ó Mila. Além de rico, discretíssimo, o homem é dotadíssimo. Um verdadeiro tsunami. Eu rio-me. Tenho a certeza que as minhas amigas só me dizem isto porque nenhumas delas é igual a mim.
Peguei a bolsa e afastei a cadeira. O meu marido, quando me viu a levantar, perguntou-me, já queres ir? Vou à casa de banho. O meu marido balançou a cabeça e disse-me, tem cuidado, essas sanitas devem ser imundas. A minha amiga pegou a bolsa e perguntou-me, queres que vá contigo? Antes que ela se levantasse, eu disse-lhe, a rir-me, não, o que eu vou fazer, tu não podes fazer por mim. A minha amiga riu-se e disse-me, se é isso, vai sozinha. Afastei-me, chamei um empregado de mesa e perguntei-lhe onde ficava a casa de banho. Ele apontou um arco sem porta e disse-me, a primeira porta à esquerda, minha senhora. Agradeci-lhe e passei ao pé da mesa dele. Um perfume fresh envolvia-o, como se fosse a própria pele. Outro empregado de mesa passou por mim, eu fiz de conta que me desviei e esmaguei a coxa no ombro dele. Não me virei, mas tinha a certeza que era o olhar dele que fazia arder as minhas costas. Ao abrir a porta da casa de banho, virei-me e reparei que ele me olhava, já debaixo do arco da saída para o estacionamento.
Encostou-se ao carro, à minha espera, e foi maravilhoso encontrar um homem lindíssimo e desamparadíssimo num sítio como aquele, tão sem graça e sem classe.
Sentei-me à nossa mesa, peguei um copo qualquer, bebi-o todo, e a minha amiga disse-me, ó Mila, de onde é que tiraste tanta sede, hã? Acendi um cigarro, dei uma passa e disse-lhe, olha que não sei. O meu marido pegou a minha mão, piscou-me, e disse-me, eu também estou com uma sede imensa, mas é de outra coisa. O marido da minha amiga riu-se, pegou a mão dela e disse-lhe, eu também estou cá com uma sede… A minha amiga riu-se, e disse-lhe, ó Pitu, se estás assim com tanta sede, olha, pega o copo e bebe. Riram-se, o meu marido riu-se também, e eu fiz de conta que também me ria. Nenhum deles podia imaginar que num sítio como aquele, tão sem graça e sem classe, eu encontraria um homem lindíssimo e desamparadíssimo, e o pudesse amparar e confortar.
revista triplov
INDICE / SÉRIE VIRIDAE / 01 / CUNHA DE LEIRADELLA
Portugal / junho 2021