Um dia na eternidade

 

AMADEU BAPTISTA


Por Rui Almeida

Um longo e denso poema a ocupar 54 páginas, intercaladas por fotografias a preto e branco. O poema do AMADEU BAPTISTA, as fotografias do JORGE VELHOTE, com edição da Afrontamento, a chegar agora às livrarias.

Um longuíssimo poema moldado a partir da memória, a memória usada como se fosse matéria táctil, dura, possível de desbastar. Não: não é “como se fosse”: a leitura deste poema envolve-nos de matéria, com volume, largura, comprimento, altura e peso; um peso desmedido que passa a ser o nosso próprio peso. É memória no seu estado mais puro, mais bruto. A memória pessoal de quem escreve, a sua infância, a sua adolescência, a sua vida adulta, e é a memória da cidade do Porto – sem que haja distinção entre as duas. Tudo o que ali está escrito foi vivido, está a ser vivido – pelo que escreve e pelo que lê. Sabemos que quem escreve se cruza mesmo com o Manuel António Pina, mas que também vê à sua frente Manuel Fernandes Tomás e tem uma tia louca e assiste aos desmandos do Rei Ramiro e está ali sentado junto à Sé a receber uns gomos de laranja das mãos da sua mãe e tem à sua frente João Grave a caminho do jornal para denunciar a pobreza e a miséria e está lá no momento em que as quatro mil almas caem da ponte das barcas ao Douro quando fogem dos franceses, é ele um desses que se afogam. Sou eu que leio que vivo isso tudo. Eu, leitor, que não sou do Porto, mas não tenho como não ser neste momento em que leio, que não tenho como não sentir os pés a pisarem estas ruas onde nunca estive, como não entrar nesta e naquela igreja, como não ouvir a mulher que passa e diz que vai ser operada aos intestinos a alguém com quem fala ao telemóvel. Eu, leitor, que não consigo desviar o olhar no terrível momento em que Soares dos Reis se mata, ali a menos de 500 metros do local onde o Poeta me passou para as mãos este livro de capa dura.

Um longuíssimo poema que é um abismo onde não podemos deixar de cair, uma memória que não pode deixar de ser nossa. Um poema de amor, de amor profundo, não pela cidade, mas pelas pessoas concretas que nela vivem, pelo seu sofrimento, pelas suas alegrias, pelo seu cansaço, pela sua raiva. Um amor profundo, profundíssimo. Cinquenta e quatro páginas de um texto denso, intercaladas de fotografias a preto e branco.

Acreditem que o digo descontando já todo o possível exagero trazido pela amizade: este é um poema de uma grandeza incomparável dentro da literatura portuguesa. Não é o Amadeu que merece que o leiamos – merece, certamente outras coisas, e desta obra já ele se livrou –, mas merecemos nós, os leitores que o saibamos ler, entrar nesta experiência.»

Rui Almeida


Revista Triplov . Dezembro de 2024

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