Um dedo de prosa sobre Ricardo Daunt

RICARDO DAUNT
Tributo
Organização:  DERIVALDO DOS SANTOS


EDITORIAL

Por Derivaldo dos Santos (UFRN/PPGEL)


Derivaldo dos Santos é professor de literatura brasileira, lotado no Departamento de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Norte/Brasil. Possui mestrado em Estudos da Linguagem (PPGEL/UFRN) e doutorado em Teoria da Literatura (UFPE). Autor do livro Augusto dos Anjos: uma lâmina do tempo (Ideia, 2002).


Tive meu primeiro contato com Ricardo Daunt em situação de sala de aula. Era o ano de 1996, ele veio às terras potiguares (Brasil) como professor visitante para integrar o corpo docente do Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, com atuação na área de Literatura Comparada. Fui seu aluno num curso, cujo interesse incidiu sobre a modernidade na obra de Eliot e Pessoa, com foco no estudo das relações interativas entre os dois poetas críticos, salvaguardando as singularidades que lhes são próprias. No bojo das discussões sobre a modernidade literária nas obras dos poetas envolvidos, o curso abriu possibilidades diversas para se pensar a relação entre a tradição e o moderno, vendo principalmente como um poeta dialoga com a sua tradição constituída, a partir da qual também estabelece a peculiaridade de sua criação e a gênese de sua obra. Nas circunstâncias das aulas, sempre deixou entrever indissociáveis a voz do professor, a do crítico e a do ficcionista, numa comunhão de saberes capaz de lastrear o pensamento crítico dos envolvidos.

Um aspecto que se evidenciava a cada encontro incidia sobre a especificidade do objeto literário: um olhar acerca da literatura, abarcando a inteligência conjugada à sensibilidade; em outras palavras, o professor havia adotado um procedimento de discussão analítica do texto poético capaz de reunir, de uma só vez, o mundo sensível e a inteligência crítica. Não foi forçoso, então, reconhecermos que nessa atitude residia uma visão dos artistas arrolados nas discussões em sala de aula:  a arte como produto do cálculo e do sentimento, fruto de um esforço intelectual do artista somado ao seu modo singular de dizer de uma cultura e fazer ressignificar as dimensões da existência, alargando, assim, as possibilidades de sentido da vida.

Ainda em contexto de sala de aula, um dos ensaios analisados de Fernando Pessoa configurava uma noção cara ao curso e ao professor de literatura, e não menos ao ficcionista Ricardo Daunt: a necessidade, na arte, de se “intelectualizar a emoção”, sintetizando o processo de elaboração do texto poético como fruto de uma “razão sensível”. Ao mesmo tempo, esboçou-se um estudo à luz da perspectiva comparatista, de modo que, sob esse entendimento, foi possível discutir Fernando Pessoa com suas personagens-livros, Eliot, Poe, Baudelaire, vendo, nestes, um componente de força integrativo.  Não restou outra, tempo depois foi possível perceber, também, ecos desses poetas-críticos como rastros de uma tradição que permanece e se atualiza no presente, tomando assento na produção ensaística do antigo professor Ricardo Daunt e seus desdobramentos em sua prosa de ficção.

Ricardo Daunt surge em meio a escritores que muito dificilmente se pode apreender sob a égide da unidade, em razão da versatilidade de sua produção, uma vez que plasma a matéria múltipla no trato dado às suas questões literárias e ensaísticas. Escritor de larga experiência, tem produzido incansavelmente gêneros textuais variados, compreendendo a escrita ensaísta, o conto, a poesia, a novela, o romance, a literatura infanto-juvenil.  Formado em administração de empresas, doutorou-se em Letras com especialização em Literatura Portuguesa pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, com defesa realizada em maio de 1992.  Realizou dois estágios pós doutorais: O primeiro consistiu em atividades de pesquisa realizadas no âmbito da área de Literatura Comparada, tendo se ocupado de investigações sobre a produção artística do movimento de Orpheu, atividades desenvolvidas em bibliotecas públicas portuguesas entre os anos de 1992 e 1993. Como resultado desse estágio, entregou ao público leitor densos ensaios acerca do orfismo português. Na Yale University (New Haven, Connecticut, EUA), onde também foi professor visitante, realizou seu segundo estágio pós doutoral, tendo como desdobramento a produção do livro: T. S. Eliot e Fernando Pessoa: diálogos de New Haven, publicado em 2004.

O pensamento crítico do ensaísta sobre literatura, arte e cultura ocuparam páginas de distintos periódicos brasileiros, dentre os quais se destacam:  Folha de S. Paulo, Jornal do Brasil, O Globo, e as revistas Isto é. Deu, também, significativas contribuições à cultura lusitana com publicações na Colóquio Letras, na Vértice, e mais frequentemente nas revistas eletrônicas Sibila e Triplov, nas quais o ensaísta permanece como colaborador.  De sua produção intelectual merece também destaque: Orpheu: prosa, poesia e arte, digitalmente publicado em Portugal, tornando-se leitura obrigatória para os candidatos ao curso de Estudos Lusófonos e Linguística da Cambridge University (U. K.) até 2014.  No ano de 2017, o autor retomou seus ensaios sobre o movimento modernista europeu, particularmente o português, atividade intelectual que resultou em dois livros de crítica literária, a saber: A audácia do tédio. Panorama estético do Orpheu em Portugal e Orpheu: prosa, poesia e arte.

O autor trouxe à discussão da crítica literária relevantes contribuições acerca do modernismo português, na defesa do pensamento crítico, segundo o qual Orpheu foi um movimento que, advindo da Europa, transmigrou para Portugal, e não um movimento estritamente surgido nas terras lusitanas. Destacam-se, ainda, de sua produção intelectual: Obra poética integral de Cesário Verde, organização, apresentação, tábua  cronológica e cartas reunidas por Ricardo Daunt, 2013; Sobre o Orpheu. Ensaios, publicação eletrônica no Triplov, Lisboa, em março de 2012; consta também da Revista Triplov, dentre outras publicações do autor, edição de parte de sua obra fictícia: Poesia sem pátria e sem verdade (15 poemas escolhidos). Triplov. Lisboa, 2005; Corpo: poemas e apontamentos plásticos de Ricardo Daunt, em 2006; De homens, bichos e coisas (contos e novelas), de 2013. Antologia retrospectiva elaborada pelo autor, abarcando o período entre 1977 e 2005.

A primeira aparição de Ricardo Daunt como contista se deu com Juan, vindo a lume em 1975, pela José Olympio, a que se seguem as obras de Ciclo urbano, tetralogia composta por: Homem na prateleira (contos), Ática, 1979; Grito empalhado (novelas), Civilização Brasileira, 1979; Endereços úteis (contos), Codecri, 1984, e Poses (contos), Via Lettera, 2005.   O autor produziu duas trilogias, a saber:  a Trilogia romanesca, constituída pelas obras: Manuário de Vidal, Codecri, 1981; Anacrusa, Nankin, 2004, e O romance de Isabel, Novo Século, 2013; e a Trilogia poética do desterro (1975-2015), da qual faz parte: Poesia sem pátria e sem verdade (poesia), 2015; Corpo (poesia), 2016, e o terceiro volume Poemas de extradição e exílio (poesia), 2015. Nesse último volume o autor incluiu o longo poema “Paris”, seguido de um roteiro de leitura e de uma breve teoria acerca do poema longo.

A prosa romanesca do autor compreende ainda: Migração dos cisnes, ambientado na Europa (Portugal/França/Irlanda), romance que representou o Brasil nas edições da Feira do Livro de Frankfurt de 2011 a 2014. Sua ficção é reputada como uma das mais importantes e revolucionárias das últimas décadas no Brasil; Adamastor Finkel: um artista entre a sombra e a luz (inédito); Lauro/Laura (teatro), em parceria com Julieta de Godoy Ladeira, de 1982; A muralha da China (romance), em parceria com Álvaro Cardoso Gomes, T. A. Queiroz, 1982.

No afã de trazer contributos à compreensão crítica do modernismo em Portugal ou do orfismo, o exame minucioso de Ricardo Daunt sobre tais questões deixa entrever não apenas a presença ativa do movimento modernista lusitano e da cultura herdada da qual seus principais expoentes se nutriram. Ganha relevo, no seu ensaísmo, uma visão crítica acerca do objeto literário e cara às suas reflexões: a arte literária resultando da conjugação do pensar e do sentir. Nesse entendimento, quem acompanha a sua produção intelectual e fictícia, sabe que suas reflexões, no plano ensaístico, trazem como ideia cardeal de seus escritos o texto poético como produto de uma elaboração lúcida do artista com a palavra, ao gosto de poetas como Baudelaire, Valery, Eliot, Pessoa, Sá-Carneiro, Joyce, de onde se irradia, talvez, sua formulação acerca da literatura e da poesia.

As inúmeras revisitações do autor ao Modernismo órfico parecem decisivas para o entendimento de sua produção ensaística e de sua reverberação no plano de sua ficção, quer considerando a presença da poesia metafísica nos poetas órficos, quer reconhecendo as especificidades do movimento no contexto português de início do século XX, seja ainda no apontamento de uma visão crítica sobre a complexidade do simultaneísmo e do interseccionismo, via pela qual se “empenha a estética do fingimento pessoano” e se “afiguram atitudes mentais que espelham uma adesão à despersonalização” (DAUNT, 2012, p. 100).

No ensaio “Sobre algumas raízes profundas do movimento do Orpheu”, discutindo os programas relacionado à arte, tece considerações acerca das malhas literárias e culturais enredadas nos horizontes históricos dos poetas órficos com outras vozes da cultura literária europeia. Disso se constitui uma “grande malha que vai sendo entretecida ao longo do tempo, e a despeito dele, feita de influências assumidas, descompassos e vazios, e que se chama tradição”. Para o ensaísta de plantão, o entroncamento gestado na relação entre os poetas do movimento órfico e a estética simbolista não pressupõe uma submissão do presente à força determinação do passado, porque Orpheu não se contentou com “os subsídios primordiais” de herança simbolista. Antes, estabeleceu-se para além dele, alargando “o solo vivo da experiência humana” e emplacando, com isso, a sua “ambição de gênese”. Se o trabalho de inteligência crítica de Ricardo Daunt se realiza com vigor de quem pretende extrair de si o melhor possível, o universo de sua ficção é uma experiência singular aberta a novas possibilidades de sentido da vida, um modo particular de percepção do humano, encaminhando o leitor para uma concepção do objeto artístico feito de “leveza e equilíbrio”, diz o narrador do conto “Na oficina do Sr. Mancuso”, que integra Poses, do autor.

Entre o trabalho de reflexão e o de criação de Ricardo Daunt há zonas difusas e complementares. Em entrevista concedida a Álvaro Alves de Faria, o ensaísta registra o que pensa acerca de seu duplo ofício com a palavra: “[…] sinto que a atividade crítica complementa a atividade criativa, ambas entreolham-se em constante vigilância”. Por esse viés, se o leitor pode perceber, por exemplo, na sua ensaística, uma consciência do sentido histórico da tradição, conforme se vê em: “A poesia de hoje, como a de sempre, nasce do embate com a tradição.  Busca superá-la, busca, como dizia Octavio Paz, criar uma nova tradição, a tradição da modernidade, mas tudo, ainda, é tradição. O fio não se partiu.” (Entrevista do autor à Editora Landy), ele (o leitor) também saberá identificar, numa visada atenta, pontos de contato com a escrita criativa do autor: “[…] aprendemos que a mais alta palavra do mais forte ainda assim é escrava de uma outra voz, subterrânea e pobre, que ousou transgredir a igualdade”, diz o narrador em “Paixão”, conto que integra o livro Poses (2005, p. 18).

Ainda de acordo com esse ponto de vista, pode-se dizer que, ao tomar a tradição literária como um “repositório vivo de formas, conceitos e práticas ligadas ao fazer literário”, o ensaísta parece mesmo evidenciar seu pensamento crítico em torno do que se move de modo indissociável entre a tradição  literária constituída e o fazer literário dos que a herdam. Sabe que essa relação consiste, também, em perceber valores enraizados na nossa cultura como “[…] uma hipótese concreta de desobediência; uma possibilidade desde onde transgredir; um chão, em suma, desde onde partir, mais talvez do que um plácido ponto de referência, para onde deve o artista mirar para aplacar a sua ambição de gênese.” (DAUNT, T. S. Eliot e Fernando Pessoa: diálogos de New Haven, 2004, p. 49).

A esse respeito, lendo Migração dos Cisnes, o leitor poderá perceber como essa dinâmica, tensa e cambiável, se traduz no processo criativo do autor: “A imaginação era um sólido ponto de contato entre Joyce e Tomás, como era o princípio da claridade, sítio de encontro entre o mágico e o divino, entre o feiticeiro da luz, que é o artista, e Deus, que fons et origo da inspiração propiciatória. […] Ulysses derivava naturalmente de Aquinas, que renascia em Ulisses, num movimento circular que ia da luz à treva, do pessimismo ao otimismo, da redenção ao aniquilamento, e deste à redenção novamente, num processo de crescente aperfeiçoamento…” (Migração dos Cisnes, 2010, p. 359-360). Com isso, formariam o pensamento crítico do autor e seu trabalho de criação um todo integralizado? É preciso conferir!

 


RICARDO DAUNT . TRIBUTO

revista triplov . série gótica . primavera 2020