AMADEU BAPTISTA
Por Margarida Santos
Apresentação do livro «Último Outono» de Amadeu Baptista . 21-03-2023 – Biblioteca Pública Municipal de Gaia
Boa tarde.
Saúdo a Biblioteca Municipal de Gaia na pessoa da sua vereadora Paula Carvalhal e na do seu director Abel Barros, os meus companheiros de Mesa Amadeu Baptista, Maria Manuela Mendes Ribeiro e Eugénia Soares Lopes. Saúdo todos os que decidiram e puderam honrar-nos com a sua presença. Muito obrigada a todos.
É como leitora que me irei pronunciar sobre a viagem que fiz através das palavras do poeta Amadeu Baptista pois talvez assim possa levar-vos a comprá-lo e a lê-lo, porque vos digo que é uma leitura inspiradora!
Trata-se de um belo texto de versos, sobre como pode um grande poeta, entre nós, viver um dia do seu quotidiano. Através desta peregrinação, viajei pelos cenários mais profundos do coração de um romântico, pela redenção que a poesia pode oferecer ao sofrimento humano que atravessa um indivíduo, desde a infância até à idade madura, um tempo e uma cidade em que um solitário que, cito, «(…) sai de si para melhor se descobrir» (…), se depara e confronta com o outro, a paisagem, o caminho…
Começa logo assim, dando inicio ao trajecto, cito, «Final do dia, despertam luzes…(…)» e segue numa leitura para mim ininterrupta de uma hora e pouco mais, mantendo viva a chama com palavras chave no discurso: furor telúrico, mistério, universo, fábula e fascínio, infinito, veneno, amor, fôlego,… Diz ele: «a alba irá iluminar-me». E ilumina, na mutação do andamento, com, cito, o «verde do céu, as nuvens cor-de-rosa, o céu roxo com faixas brancas, com a «cor de amor», turquesa, índigo, violeta, azul eléctrico, azul profundo». Uma beleza!
O poema é vivido no pulsar rítmico de um dia de vinte e quatro horas, intensamente percorridas no deambular por dentro do sentir e do pensar do personagem que se exprime na primeira pessoa, expondo poeticamente a sua perene condição de humanidade, no sortilégio de sobreviver à falta de sorte, ao abandono, à fome, à miséria, à doença, à saudade, mas nunca à fartura de uma pulsação impressionante, que força quem lê a um apego à fusão pulsante das palavras, ao seu ritmo alucinante, da primeira à última, como se ao leitor não lhe fosse possível respirar com o seu próprio coração e estivesse também ele naquele corpo e naquela alma que vagueiam numa mágoa permanente nos contornos nevoentos de um premonitório «Último Outono».
As palavras daquele de quem somos companheiros de jornada, dão saltos entre estados interiores latentes emocionais, cheios de interrogações e de inquietação, e os sinais do concreto caminho que percorre. Alguns detalhes constituem a construção do todo, tendo como denominador comum os estados de um espírito sofredor e de um sentir magoado, que sobre tudo se interroga sem nunca obter as respostas que lhe possibilitem uma visão esclarecedora sobre memórias dos próprios infortúnios, desgostos, azares, negrumes e sombras que se cruzam e saltam pelo deambular desta incursão ao invisível mundo das mais fundas emoções, onde comungamos a certeza de que a fragilidade física do personagem é superada pela sua força psicológica e mental, resistindo aos desaires que foi colectando na vida. Leio um pequeno excerto: « (…) tenho uma pedra na boca e no coração
a derrocada que ocorreu na minha infância,
o tempo em que as coisas foram vistas
pela primeira vez para que jamais voltassem
a ser vistas, aquela escada, aquela jarra,
aquela lua cheia que inundava o jardim
e se punha a transbordar sobre os pátios,
as casas, as leiras, os quintais, a aveleira
que uma doença incurável comprometeu
e de que há muito deixou de haver notícia.
tenho sobre as mãos o invisível, a vela, a chama,
a lamparina, o que sobre o escuro se entoa
para que alguma coisa possa iluminar-se
e os corredores se abram às fantasmagorias.
com sal e com vinagre curo as minhas feridas
(o que é o mesmo que dizer que as descuro),
e reclamo a claridade ainda possível,
e a treva, e todas as energias que avultem
no peito dos que amam e a distância separa,
os que aspiram à ternura inesgotável
sem que saibam como rareiam os víveres
e o império de zuckerberg não tem limites. (…)»
Deparamos continuamente com uma estudada conexão em tudo o que aparenta estar descoordenado, a infância e a velhice, a saúde e a doença, a vida e a morte, o apaziguamento e o desespero, o terreno e o divino. Tudo vem à memória em andamento corrido até à exaustão, tantas são as reflexões aliadas às emoções. Como no gráfico de um electro cardiograma, tudo salta num ritmo coordenado para apontamentos narrativos da realidade da natureza ou da cidade, que, por sua vez saltam para o imaginário construtivo de quem lê (e vê, o texto é muito visual), é nesse registo que as lembranças doridas e melancólicas saltam para a crítica sitiada em cada esquina arborizada ou para um caminho de asfalto.
São os passos dele que dão entrada na mercearia e compram pão, a boca que prova o suco das romãs, o cérebro causticado por agruras que se prepara para antever que a qualquer momento pode acontecer uma queda ou uma recaída, o coração com medo de que o sonho possa mais uma vez esboroar-se e tornar-se pesadelo, os olhos que se cruzam com o sem-abrigo na ronda dos caixotes do lixo e se desviam para a romaria dos carros prateados e dourados da Avenida, o ser culto que entra na igreja e se deleita com a beleza interior onde pressente a musicalidade dos prelúdios de Bach e das sonatas de Haydn e Chopin. Nesse discorrer, cita Morandi: «nada é mais abstrato que a realidade». Também abundam outras citações e referências, sempre a propósito, a poetas, músicos, cantores, que comprovam o grau de erudição de Amadeu Baptista: entre a sua palavra insere a palavra de outros que o tocaram, cita Keats, Natália Correia, Echevarria «a haver vento é só a fronteira entre quem vê e o que há», Emile Dickson «ensina-se o êxtase pela aflição».
A construção do texto permite ao leitor interromper o percurso lírico e dorido das memórias, entre as quais sobressaem as da mulher que o abandona e por quem pena intensamente, que no-la devolve ouvindo o murmúrio do cego que toca no acordeão «piensa en mi», e em muitos outros mistérios intuídos pelo mar, que atravessam toda a escrita, o mar… Cito (…) «devolve-me tudo o que lhe peço, o mar, mas não a tua suavidade de baía, o profundo calor da tua pele, a extensa claridade dos teus cabelos, a cor maciça dos teus olhos castanhos, o deleite dos teus dedos, do teu sexo, tu e o mar vão a par no meu desvelo, mas o mar não me devolve a tua boca, nem o suave veludo do teu toque (…)». E prossegue, no deambular por um extenuante caminho recheado de solidão, de melancolia e de amargura, quando exteriormente está presente uma indispensável, mordaz e contundente crítica pelas assimetrias sociais com que se vai cruzando.
Lírico, o poeta termina o texto convidando o leitor ao recomeço paciente desta viagem, cito, (…)«aqui estou, daqui serei também se estiveres comigo, por fim atravesso o areal, encho uma mão de grãos de areia e ponho-me a contá-los, um a um, assim farei até que a praia acabe.».
Este livro de Poesia de Amadeu Baptista constitui-se num poema único de cento e um fôlego, cada um com dez estrofes, que saltam entre si tal qual os fragmentos cósmicos que o definem, ao longo de noventa e duas páginas, onde estão incluídas vinte e duas fotos a preto e branco de Maria Manuela Mendes Ribeiro. A fotografia não ilustra, porém completa e acentua a pulsação melancólica e sóbria da escrita. As fotos que acompanham o texto são belíssimas, por vezes desfocadas e difusas para serem impressas nos nossos olhos, poucas vezes nítidas, de pormenor ou de conjunto paisagístico, diluem-se numa paleta de preto e branco com cinzas tratados com requintada harmonia. Separam e unem o percurso das folhas do texto, acompanham-nas, respiram com as palavras pelos caminhos e pela natureza, acentuando a nostalgia das passagens naturais e dos elementos que as palavras soltam ritmicamente, para cá e para lá, quais ondas do mar, sempre presente: o mar e igualmente a estrada, o caminho e a árvore, a folha e as castanhas, o rio e o reflexo, a nuvem e a neblina, a água e a areia, o castanheiro e o ouriço, a romã e o pão. As palavras comoventes do poema de Amadeu Baptista ressaltam para as imagens que o comungam, e assim completam a beleza estética do livro.
Parabéns ao poeta e à fotógrafa, a ambos, por nos darem tanto da sua sensibilidade artística e literária, numa luxuosa edição de Poesia.
Obrigada. Muito obrigada pela vossa atenção.
Margarida Santos
21 de Março de 2023
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