Tributo a Nicolau Saião e sua casa

 

NICOLAU SAIÃO
TRIBUTO


«Creio que sou um poeta surrealista pop», declara Nicolau Saião, na entrevista «Os encontros falhados», mantida com Augusto José & Manuel Caldeira. Ouçamo-lo:

Ao contrário do que às vezes se usa fazer (“os outros que me definam” e tal…) tenho muito gosto em me definir…  até para poder epigrafar o que me parece legítimo: creio que sou um poeta surrealista pop. Nos meus textos, se bem notar, o universo onírico entra e sai (como uma bomba de pistão?) pela sociedade de consumo adentro, são constantes nos meus textos as referências aos objectos e coisas característicos dos tempos que correm, comidas, lugares quotidianos, coisas vulgares em suma. Isso não é, evidentemente, premeditado, garanto-lhe que não tenho gosto pelo miserabilismo, não há tanto quanto me dou conta qualquer propósito preconcebido. Sinto a dada altura que os textos vivem vida própria, vivem por eles mesmos.

Uma vez posta a etiqueta “surrealista pop”,  que o aproxima, em meu entender, de artistas como Andy Warhol, olhemos, não tanto para a poesia, antes para a pintura, e logo assentimos em que o seu mundo de quadrinhos, da esfuziante alegria advinda da explosão de cores, de figuras esboçadas, e até as do espaço das religiões e por vezes mais restritamente bíblicas e católicas, caso dos anjos e dos santos, nos firmam os pés no que dizemos.

Porém a lista de figuras proposta não pertence ao universo das artes plásticas, sim da poesia, porque ela só é possível dando atenção aos títulos das obras. Então há um permanente casamento dos quadros com a poesia e, de outra parte, independentemente da escrita, os poemas quase sempre são ilustrados com imagens. Se virarmos os olhos para o lado, o ensaio é frequentemente permeado de poesia, tal como a poesia apresenta traços de ensaio. Estes últimos elementos dos vasos comunicantes do autor merecem algum exemplo que firme o assunto na memória. Seja este, muito simples: o ensaio permeia a poesia com informações bibliográficas tão completas que as diríamos pertença da parte final de uma tese bem académica. N’A flauta de Pan, livro qm que encontramos um poema intitulado “Bibliografia”, escreve Nicolau Saião, a meio de um poema:

a cozinha descrita por

Pinget a páginas setenta do seu “Quelq’un”, Les Éditions

de Minuit, 1965;

Outro exemplo, mais complexo, é o de muitos poemas se intitularem «Poema» e um ou outro «Sem título». Caso haja dúvidas, o ensaísta ensina o leitor da poesia: sim, pode não parecer, mas o texto que lê é um poema. No caso do «Sem título» o ensinamento aponta a relação entre quadro e poema: nas exposições de pintura e escultura é que muitas vezes acontece os objetos se identificarem pela falta de título.

O fundo desta questão é outro, entretanto, diz respeito ao facto de o autor sentir necessidade de refletir a sua arte poética, e de pensar nela, para a compreender, daí resultando que as entrevistas de Nicolau Saião são muito ricas, as suas respostas implicam uma grande maturidade e conhecimento da sua própria obra, obra que é a sua casa.

Casa – eis um tópico central de Nicolau Saião. Os poemas, as pinturas, os textos são a casa, mas o lugar da criação, a casa propriamente dita, edifício, importa mais. Importa porque a criação depende da criação, das criaturas que habitam a casa, em suma, falamos de casa no sentido aristocrático do termo, a família. Daí, alargando o campo semântico, chegamos inevitavelmente à terra natal, ao país de nascimento, à Terra, quando a abandonamos num golpe lírico mais tempestuoso. Assim ele diz, na entrevista a Joaquim Simões:

Estive em muitos lugares – muitos deles belíssimos – de várias partes do vasto mundo (e gostaria que tivessem sido mais). Mas regressar a Casa, à minha casa e à minha região, foi sempre uma alegria que sem quebras tem permanecido em mim.

A casa ocupa sempre o coração do livro, com os anjos e santos do quotidiano familiar, como se lê em Escrita e seu contrário:

Deuses que entram e saem

com o pão

a fruta

uma bilha de água

um gesto de mãos

um de barriga ao léu

dois três anos […]

A casa poética, como a de família, está povoada também por inúmeros amigos, conferindo-lhe um tom por vezes muito culto e intelectual, pois Nicolau Saião tem facilidade em grangear amigos, especialmente nesta nossa hodierna casa sem fronteiras físicas como é a Internet. Resumindo, a sua poesia, além das dedicatórias e epígrafes, aparece recamada de referências a escritores, músicos, pintores e outros.

Voltemos entretanto à etiqueta: Nicolau Saião é um artista surrealista pop?

A sua poesia está isenta de estereótipos e dir-se-ia o mais colada à realidade que é possível. Em “Voz do amor”, o que retemos é o quotidiano, na sua singeleza referencial: Não te direi poemas e sim vulgares palavras / – como café, cadeira, naco de pão, um copo . Na pintura, ainda mais se faz sentir a ausência de marcas, o seu visual é absolutamente moderno, claro, mas não evoca em nada o surrealismo. O artista plástico detém um estilo original, cuja aparência mais imediata  evoca, isso sim, a pop art, arte popular urbana, com a banda desenhada, aquilo que se conta no interior de casinhas, enfim, numa sequência de pequenos quadrados. Como ele mesmo diz, na sua obra entram e saem as circunstâncias, produtos e coisas do nosso tempo, desde que se lhes abra a porta, seja a do automóvel, do frigorífico ou do sótão com o tesouro da biblioteca. Tomemos o caso da colagem, uma das grandes manifestações do movimento surrealista: raras aparecem na obra de Nicolau Saião e, quando tal acontece, é sob a forma de recortes com matéria escrita, o que assinala mais uma vez a estreita conexão entre as várias modalidades da arte e não-arte, a exemplo do ensaio. Ilustremos com a imagem abaixo este e outros pontos da conversa.

 

 

NS tem um glossário próprio, presente nas imagens, quase sempre identificadas com títulos que nos encaminham para o mundo referencial a que a palavra diz respeito, e naturalmente não coincide com o mundo real, embora parta dele, das coisas do concreto.

Se deixarmos a visualização, a aparência formal de versos e pintura, e entrarmos no cerne da questão surrealista, o seu desejo de liberdade, os temas principais, a ruptura com o convencional, etc., sim, Nicolau Saião é um poeta surrealista e surrealista pop, como ele quer. Na verdade, ele é demasiado original para lhe assentar bem uma roupagem específica, mas de um lado o surrealismo não tem margens e de outro as etiquetas são portas que nos convidam a entrar na casa do conhecimento. Precisamos delas ou não passamos do limiar.


Nicolau Saião \ Biobibliografia sucinta


revista triplov

série viridae nr 02

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