Três chopes

 

CUNHA DE LEIRADELLA
Tributo


Curta-metragem

Argumento – Paulo Augusto Gomes

Roteiro – Cunha de Leiradella


Personagens

Maria Elvira Vieira de Matos e Cunha – Nininha

Eduardo da Cunha Júnior

Figuração

Transeuntes, frequentadores e garçons do bar Casa dos Contos.


Perfil dos Personagens

MARIA ELVIRA VIEIRA DE MATOS E CUNHA – NININHA – Solteira, 30 anos, socióloga, sem problemas materiais. Após uma relação malsucedida com um ex-colega de faculdade, Nininha ligou-se a Eduardo da Cunha Júnior, esperando que a vivência do companheiro lhe desse a tranquilidade necessária para iniciar uma nova vida pessoal.

EDUARDO DA CUNHA JÚNIOR – Divorciado, 40 anos, jornalista, sem filhos. Também sem problemas materiais, Eduardo só tem um problema: ele próprio. Incapaz de assumir os seus desejos, e muito menos de compartilhar as suas dúvidas e as suas esperanças, Eduardo, vive num estado de fuga permanente.


ROTEIRO

FADE IN:

1 EXT. RUA 1 – NOITE

Rua típica de um bairro classe média alta. Passam alguns carros e um ou outro transeunte entra num edifício ou numa casa. Um casal caminha, devagar, pela calçada, aproximando-se da câmera. NININHA, do lado de fora, e EDUARDO do lado de dentro. Caminham lado a lado, calados, e sem os corpos, ou sequer as mãos, se tocarem. Ao passarem pela câmera, nota-se que o andar e os gestos de EDUARDO são tensos e ele tem o rosto contraído e olha, furtivamente, para NININHA. NININHA, ao contrário, não demonstra tensão, nem no andar, nem nos gestos, e o olhar vagueia no espaço à sua frente. Eles passam e a câmera segue-os, focando-os pelas costas. De repente, EDUARDO para e acende um cigarro. NININHA continua andando, como se não tivesse percebido a parada de EDUARDO. EDUARDO puxa uma tragada, e correndo junta-se a NININHA.

 

2 EXT. RUA 2 – NOITE

 

O casal aparece, dobrando uma esquina e aproximando-se da câmera. EDUARDO ainda fumando, o andar e os gestos sempre tensos, e o rosto contraído. NININHA caminha com a mesma tranquilidade.

 

CORTA PARA:

Panorâmica da rua. Carros estacionados junto dos meios-fios e passando, e do outro lado pessoas entrando e saindo de um bar com um letreiro iluminado: CASA DOS CONTOS.

 

CORTA PARA:

EDUARDO parando, jogando o cigarro no chão e olhando o letreiro. NININHA parando também e olhando EDUARDO. Olha-o durante alguns instantes, encolhe os ombros, e de repente, num gesto decidido, desce da calçada.

 

CORTA PARA:

NININHA atravessando a rua por entre os carros que passam. Alguns buzinam. NININHA continua andando sem dar importância aos carros e ao barulho das buzinas.

 

CORTA PARA:

EDUARDO olhando NININHA, como que satisfeito com o gesto. EDUARDO não sorri, mas nota-se que o rosto já está mais descontraído.

 

3 INT. BAR CASA DOS CONTOS – NOITE

 

Panorâmica do salão, com a maior parte das mesas ocupadas. Áudio do bar, com as conversas em voz alta, risos e algumas gargalhadas.

 

CORTA PARA:

NININHA e EDUARDO sentados, frente a frente, numa mesa junto de uma das paredes. EDUARDO tem os olhos fixos em NININHA. NININHA olha as mãos cruzadas em cima da toalha, a bolsa pendurada nas costas da cadeira.

 

CORTA PARA:

Um GARÇOM se aproximando, parando junto da mesa e fazendo o gesto de apresentar o cardápio. EDUARDO fala sem olhar o GARÇOM.

 

EDUARDO

Dois chopes.

 

O GARÇOM anota o pedido e afasta-se.

 

CORTA PARA:

EDUARDO, num gesto hesitante, estendendo a mão sobre a toalha. NININHA não olha EDUARDO, mas percebe o gesto. Apoia os cotovelos na mesa e cruza as mãos debaixo do queixo. Nota-se a decepção que o gesto de NININHA provoca em EDUARDO. Para disfarçar, EDUARDO acende um cigarro e puxa uma tragada profunda. NININHA continua imóvel, o olhar fixo na parede do outro lado do salão. EDUARDO puxa outra tragada, e procurando aparentar uma calma que não sente solta o fumo devagar, pelo nariz e pela boca, ao mesmo tempo que olha NININHA.

 

EDUARDO

Foi bom a gente vir aqui.

 

NININHA continua imóvel, olhando a parede do outro lado da varanda.

 

EDUARDO

A gente sempre gostou de vir aqui. Lembra quando viemos aqui a primeira vez e você me…

 

NININHA (CORTANDO)

Eduardo…

 

EDUARDO (CORTANDO)

Não lembra não? Foi até você que me chamou pra sua mesa.

 

NININHA tira as mãos debaixo do queixo, cruza-as em cima da mesa e olha EDUARDO. EDUARDO sorri, mas nota-se que é um sorriso forçado.

 

EDUARDO

Não lembra não?

 

CORTA PARA:

GARÇOM aproximando-se e colocando os chopes em cima da mesa.

 

CORTA PARA:

EDUARDO pegando um copo e oferecendo-o a NININHA. NININHA pega o copo, mas não bebe. EDUARDO pega o outro copo, bebe metade e fica com ele na mão. NININHA coloca o copo dela em cima da mesa e fixa os olhos na toalha. EDUARDO puxa uma tragada profunda e olha NININHA.

 

EDUARDO

Nininha…

 

NININHA olha EDUARDO, mas não responde. EDUARDO bebe um gole, coloca o copo em cima da mesa e fixa os olhos em NININHA. Há uma pausa tensa, ambos imóveis, olhando um para o outro. EDUARDO baixa os olhos, puxa uma tragada profunda, fecha os olhos, sopra o fumo com força, abre os olhos e olha NININHA.

 

EDUARDO

Nininha…

 

NININHA (CORTANDO)

Não adianta, Eduardo.

 

EDUARDO

Nininha, a gente veio aqui…

 

NININHA (CORTANDO)

Eu só vim porque você pediu.

 

EDUARDO puxa uma tragada profunda e esmaga o cigarro no cinzeiro.

 

EDUARDO

Mas Nininha…

 

NININHA (CORTANDO)

Não insiste, Eduardo. Não adianta.

 

NININHA faz uma pausa e olha EDUARDO.

 

NININHA

Eduardo, me diz, mas fala com franqueza. Alguma vez adiantou?

 

EDUARDO não responde. Bebe o resto da cerveja e levanta um braço. Um GARÇOM chega junto da mesa e EDUARDO aponta o copo vazio.

 

EDUARDO

Outro.

 

O GARÇOM pega o copo e afasta-se.

 

CORTA PARA:

EDUARDO debruçando-se na mesa e olhando NININHA fixamente.

 

EDUARDO

Você sabe que eu gosto de você, Nininha.

 

NININHA

Eu sei. Você já me disse isso mil vezes.

 

EDUARDO pega na mão de NININHA.

 

EDUARDO

Então?

 

NININHA (RETIRANDO A MÃO)

Mas só disse, Eduardo.

 

EDUARDO passa as mãos no rosto, olha NININHA durante alguns instantes, e pega, outra vez, na mão dela.

 

EDUARDO

Mas teve horas que…

 

EDUARDO faz uma pausa. NININHA retira a mão.

 

EDUARDO

Você não quer nem repensar não?

 

NININHA não responde. EDUARDO baixa a cabeça, olha a toalha da mesa durante algum tempo e, de repente, num gesto brusco, recosta-se na cadeira.

 

EDUARDO

Pelo menos, me diz qual é o problema.

 

NININHA olha EDUARDO e abana a cabeça, devagar.

 

NININHA

Você sabe qual é o problema, Eduardo.

 

EDUARDO

Se eu soubesse, você acha que…

 

NININHA (CORTANDO)

Qual é, Eduardo?

 

EDUARDO olha NININHA, mas não responde.

 

NININHA (CONTINUANDO)

Faz um tempão que a gente tá assim e agora você vem e me diz que não sabe qual é o problema? Ah, Eduardo, tem dó.

 

EDUARDO acende um cigarro e puxa uma tragada profunda.

 

EDUARDO

Eu sei que a gente tem problemas. Se não tivesse, não taria aqui assim, eu sei. Agora, eu saber qual…

 

NININHA (CORTANDO)

Ah, Eduardo, qual é?

 

EDUARDO (COM DUREZA)

Nininha, se eu disse que não sei, é por que não sei, pô!

 

NININHA olha EDUARDO, fixamente, durante alguns instantes.

 

CORTA PARA:

GARÇOM aproximando-se e colocando o chope que EDUARDO tinha pedido em cima da mesa ao lado do copo de NININHA.

 

CORTA PARA:

NININHA olhando fixamente EDUARDO.

 

NININHA

Quer dizer que você não sabe mesmo?

 

EDUARDO

Não.

 

NININHA recosta-se na cadeira e olha EDUARDO durante alguns instantes.

 

NININHA

O problema é você, Eduardo.

 

EDUARDO balança a cabeça, debruça-se na mesa, olha NININHA durante alguns instantes, e procura dar à voz um tom irônico.

 

EDUARDO

Eu sou o problema? OK. Tudo bem.

 

EDUARDO faz uma pausa e olha NININHA fixamente.

 

EDUARDO

Mas você já pensou que você também pode ser o problema?

 

NININHA acena com a cabeça, debruça-se na mesa e sorri, irônica.

 

NININHA

Claro que pensei.

 

EDUARDO recosta-se na cadeira e procura dar à voz o mesmo tom irônico.

 

EDUARDO

E aí?

 

NININHA

E aí? Eu sei que não sou o problema, Eduardo.

 

EDUARDO

Sabe mesmo? Tem certeza?

 

NININHA

E precisa ter? Mas eu te digo por quê que tenho certeza. Eu não sou o problema porque eu sempre fui pra você o que eu sempre quis que você fosse pra mim. E você nunca foi.

 

NININHA faz uma pausa e fala num tom de voz quase agressivo.

 

NININHA

E sabe porquê? Porque eu sempre fui obrigada a ter 50 anos e você nunca passou dos 30, entendeu? Entendeu, ou…

 

EDUARDO (CORTANDO)

Quê que é isso, Nininha?

 

NININHA

É isso mesmo, Eduardo. Você nunca se assumiu.

 

NININHA faz uma pausa. EDUARDO esmaga o cigarro no cinzeiro e olha NININHA, mais assustado do que espantado.

 

NININHA

Você sempre teve medo, Eduardo. Medo de viver, de morrer, de ficar sozinho, de ficar comigo, de tudo. Até de ter medo você sempre teve medo, Eduardo. E isso, pra mim, não é viver não. É vegetar.

 

As palavras de NININHA abalam EDUARDO. EDUARDO pega o copo, leva-o à boca, mas coloca-o em cima da mesa, sem beber. Estes gestos de EDUARDO são lentos, como se ele estivesse procurando ganhar tempo para pensar.

 

EDUARDO

Nininha…

 

EDUARDO faz uma pausa.

 

EDUARDO

Nininha, faz quase dois anos que a gente tá junto. E de um jeito ou de outro sempre levamos o barco. Eu errei muitas vezes. Sei que errei. Mas se eu prometer a você que agora…

 

NININHA (CORTANDO)

Vai mudar? Vai se assumir? Vai…

 

EDUARDO (CORTANDO, COM RAIVA E DESESPERO)

Vou tudo, Nininha Você pra mim…

 

NININHA (CORTANDO)

Quando a gente quer, a gente não promete, Eduardo. A gente faz. E você nunca fez.

 

EDUARDO acende um cigarro e puxa uma tragada profunda.

 

EDUARDO

Se eu nunca fiz, por quê que só agora…

 

NININHA (CORTANDO)

Eu falei? É isso?

 

NININHA faz uma pausa. EDUARDO não responde, os olhos fixos em NININHA.

 

NININHA

Eu só falei agora porque tava esperando você se decidir. Será que dá pra você entender, ou precisa fazer um desenho, hem?

 

EDUARDO baixa os olhos, abana a cabeça devagar e não responde.

 

NININHA

Tá vendo? Nem agora você consegue se decidir. Me dar uma resposta. Tomar uma atitude. Fazer ao menos…

 

NININHA faz uma pausa, como se esperasse que EDUARDO dissesse alguma coisa, mas EDUARDO não diz nada. Apenas continua na mesma posição.

 

NININHA

Eduardo, você não vai mudar nunca. E eu enchi. Enchi e decidi. Por mim e por você, entendeu? Mas vou te dizer uma coisa. Esta foi a última vez que você me obrigou a decidir por nós ambos, viu? Tchau.

 

NININHA pega a bolsa, levanta-se e afasta-se sem se voltar.

 

CORTA PARA:

EDUARDO, completamente imóvel, olhando as costas de NININHA, afastando-se.

 

CORTA PARA:

CLOSE-UP – COPOS EM CIMA DA MESA.

Ambos cheios, um ao lado do outro.

 

FADE OUT:

ENTRAM OS LETREIROS E OS CRÉDITOS DA FICHA TÉCNICA.


revista triplov

INDICE / SÉRIE VIRIDAE / 01 / CUNHA DE LEIRADELLA

Portugal / junho 2021