FLORIANO MARTINS
21 MULHERES SURREALISTAS
Estudo introdutório
TRANSGRESSÕES DO INCONSCIENTE
I
Em seus estudos sobre o Erotismo, Georges Bataille adverte uma expressiva relação entre a transgressão e a repetição. Para ele, a transgressão é um ato irrepetível, a menos que se altere o objeto. Igual analogia é possível encontrar na relação com a linguagem, ou seja, transgressão e retórica atuam, uma como imolação da outra.
No cenário das transgressões, um imperativo a toda a criação artística, momento de reconhecer e desafiar todos os obstáculos do interdito, sempre coube às mulheres um item a mais na ceia de recusas e despertares, um ingrediente do qual os homens estão isentos: a emancipação. A ruptura com todos os artifícios da moral e da razão impostos pelos homens.
Antes de tratar da emancipação, no entanto, cabe remexer os escombros do passado. Pouco ou nada importa a ocasional simpatia que tenhamos por outras religiões. Nosso mundo é o católico. Vivemos sob o reinado de seus dogmas, aceitos ou não. Muito além da indiferença, os textos bíblicos condenam a mulher à condição de objeto, moeda de troca no desdobramento dos poderes, ocupando as funções de filha prometida, serviçal e amante. Este mandado de impotência só encontra sua primeira resistência na prostituição, porém logo o que nascera de um gesto de enfrentamento foi marginalizado. Transgressão mais eficaz teria sido a da vidente. O efeito mágico e inesperado de suas adivinhações traçou um percurso mais contundente e, de certa forma, transformador da condição que até então identificava a presença da mulher no mundo.
De todos os movimentos artísticos, o primeiro de quem se poderia esperar – em garantia de sua defesa central do amor, da poesia e da liberdade – por uma reviravolta no tema, a mulher permaneceu em segundo plano, sempre idealizada, inclusive como aparente protagonista de obras escritas por homens. Destaque maior para Nadja, personagem do romance homônimo de André Breton. Concebida como representação de um mito imaginário, são evidenciados através dela os tópicos elementares do Surrealismo, tais como o acaso objetivo e os encontros fortuitos, de modo que o verdadeiro e único protagonista de toda a narrativa de Breton é ele próprio. Na busca pelo estabelecimento de uma nova mitologia, no que diz respeito à atuação das mulheres destacam-se a mulher-esfinge, a mulher-amante (sem a realização carnal), a mulher-errante, ou seja, se repete o rótulo inalterado da mulher-objeto. Objeto do desejo de Breton.
A exigência natural de uma emancipação no Surrealismo surge quando a mulher se vê amada e enaltecida, sem que seja percebida como grande criadora, por vezes até mesmo com um espírito mais revolucionário e consequente realização estética mais renovadora.
Visito alguns livros sobre Surrealismo. A ética e a estética dos contrários parece não encontrar lugar para a mulher, sobretudo as poetas. Em 1953, vem a lume Introducción al Surrealismo, de Juan-Eduardo Cirlot. Há duas ou três menções a Leonora Carrington, Leonor Fini, Sage Kay e Toyen. Dentre as escritoras recordadas apenas duas: Nora Mitrani e Gisèle Prassinos. Da primeira, em um subcapítulo dedicado ao Surrealismo como sadismo, encontramos uma citação: Quando o amor não pode ser vivido, o desejo amoroso se exaspera e se converte em uma dor a ser suportada; então se exerce o erotismo. Então, quando toda ação é dura para seu objeto, para ele são abertos os caminhos da crueldade. Sem mais nenhum comentário a respeito. No caso de Gisèle há apenas uma referência nominal. Em 1969 surge L’art surrèaliste, de Sarane Alexandrian. Embora o estudo se destine unicamente às artes plásticas, as mulheres referidas o são em número inexpressivo: Dora Maar, Dorothea Tanning, Kay Sage, Leonor Fini, Leonora Carrington, Toyen e Valentine Hugo. Leonor é por ele considerada à margem do surrealismo, embora a situe como a mais notável, dentre todos. Acerca de Dorothea, Sarane recorda as heroínas perversas de sua pintura. As menções a Leonora, Dora, Kay e Valentina são apenas pontuais, brevíssimos parágrafos de tom biográfico. Curiosamente ele aborda a prosa de Leonora, ao invés de sua pintura. Por último, Toyen, a mais ampla referência, chegando inclusive a mencionar que ela contribuiu ativamente para a fundação do surrealismo checo, de que se tornou a maior pintora. Na biografia de Breton escrita por Sarane (André Breton par lui-même, 1971) constatamos que nenhuma das escritoras ocupou papel relevante em sua concepção da imagem poética. Mudemos de livro: La búsqueda del comienzo (1974), de Octavio Paz. Nenhum comentário expressivo sobre a presença da mulher no Surrealismo. É bem verdade que, até por acomodação às leis de mercado, se escreveu mais sobre a plástica surrealista. No entanto, mesmo aí é insuficiente a leitura crítica das pintoras – e escultoras e fotógrafas etc. – surrealistas. Último livro, para que o tema não se torne excessivo (embora lembrando que a tônica se repete quase sem exceções): Scrap book 1900-1981 (1981), de Roland Penrose. Volumoso relato de viagens – cabe igualmente destacar sua riqueza iconográfica –, ali encontramos boas referências a Dora Maar, Lee Miller, Leonora Carrington e sua esposa, Valentine Penrose. O fato é que, além das referências ínfimas, os nomes se repetem, marginalizando (para usar terminologia de Sarane Alexandrian) poetas e artistas fundamentais aos desdobramentos estéticos do Surrealismo. Dentre elas, enumero Alice Rahon, Claude Cahun, Emmy Birdgwater, Emmy Hennings, Gertrude Abercrombie, Joyce Mansour, Lise Deharme, Maria Martins, Marianne von Hirtun, Matsi Chatzilarazou, Maya Deren, Mina Loy, Olga Orozco, Thérèse Renaud e Unica Zürn, para referir-me tão-somente a grandes vozes surrealistas nascidas até 1930.
Ao escrever o primeiro manifesto – por ele considerado um estudo consagrado ao surrealismo poético –, André Breton não inclui senão homens entre seus amigos ali mencionados, e mais, suas referências se limitam unicamente à lírica de língua francesa. Seis anos após, em 1930, surge o segundo manifesto – palco em que Breton condena a todos que discordem de suas ideias –, e ali vemos uma vez mais a ausência das mulheres. Por último, em 1942, é a vez do terceiro manifesto, em que igual cenário se repete, com uma única exceção e apenas de ordem nominal: Leonora Carrington. Evidente que os três manifestos merecem uma leitura à parte, consagrada a seus inúmeros acertos e umas tantas falhas. O presente estudo, no entanto, se limita a investigar a presença feminina no Surrealismo.
Em 1947, Meret Oppenheim sublinha que após o estabelecimento do patriarcado que institui a desvalorização de tudo aquilo que é de natureza feminina, os homens projetam sobre as mulheres a feminidade que levam consigo porque a creem de essência inferior à sua. O resultado é que as mulheres devem viver ao mesmo tempo sua própria feminidade e suportar a que os homens projetam sobre elas. E logo conclui que querer que a mulher se torne mulher multiplicada por dois, é querer desnaturalizá-la. E é, sobretudo, lhe impedir de criar e incorporar a si mesma o elemento espiritual masculino que forma parte de sua própria natureza. Nora Mitrani, por sua vez, em 1957, que assinou praticamente todas as declarações públicas surrealistas e seus folhetos coletivos, refere-se à mulher convertida em objeto, anuente até esse extremo porque é seu prazer, açoitada, porque isto representa uma forma de agressão com respeito aos homens que já não se reconhecem. E arremata: Que nesse estado a mulher não se esqueça de permanecer completamente insubmissa; ciente do que ainda não lhe foi dado: a liberdade do espírito.
II
Os verdadeiros retratos, a meu ver, só se justificam quando rompem com suas molduras. A biografia de qualquer personagem retratado não se encontra limitada ao factual. Nela também nos deparamos com a graça dos sonhos e dos mistérios. Ao estudar o Surrealismo, naturalmente que despido de qualquer modelo de devoção inquestionável, cedo observamos restrições à configuração de seus preceitos básicos: o amor, a poesia, a liberdade. Tais restrições são propiciadas pelas condicionantes impostas à realização de cada um desses tópicos, onde a mais arbitrária de todas diz respeito à configuração da mulher como um objeto do desejo em suas diversas modulações, que confluem para um centro desfigurador: a mulher idealizada. De tal forma que as mulheres surrealistas, sufocadas em vida e desconsideradas por seus pares após a morte, tinham que reescrever a si mesmas, destruindo o fardo dessa existência interdita. Para compreendê-las era também preciso rever nossas ideias acerca do Surrealismo, interpretando suas obras artísticas como uma essência de rupturas, como uma ressurreição de linguagens vitimadas, como a proposição de um mundo novo após sua inevitável destruição.
Mina Loy (1882-1966), inglesa de nascimento, viveu em países como Alemanha, Inglaterra, França, Itália e Estados Unidos. Poeta, romancista, ensaísta. Em sua obra encontramos uma abordagem bastante incomum em relação à mulher, o que acabou por gerar certa incompreensão por parte da crítica, que tinha uma dificuldade de perceber a voltagem lírica de sua poesia, preterindo o entendimento da criação como fonte de conhecimento em oposição à mera identificação dos parâmetros lógicos da realidade. Mina Loy procurava então dar sentido ao mundo com base na intuição, na força assimétrica dos instintos. A rigor, a mecânica da percepção dá mais densidade e diversidade às coisas que compõem a vida de cada ser. Singularidade extraída da multiplicidade, ambiguidade despida de preconceitos, por aí pautava seu entendimento a experiência humana. Em seu Manifesto feminista (1914) observava o erro estratégico das mulheres, afirmando que o empenho delas deveria ser na direção de uma demolição total de valores, incluindo aí a rejeição à legislação econômica. Considerava, portanto, o movimento feminista inadequado, incapaz de reverter o quadro de devastação psicológica porque passava a mulher. Inicialmente ligada ao Futurismo, logo se afastou do movimento considerando sua veia crescente de machismo e fascismo. Rápida também foi a passagem pelo Dadaísmo. As sedutoras perspectivas da fealdade e do sarcasmo que encontramos em sua obra descreve uma busca de dar ao poema uma dose tal de instabilidade emocional que intensifique as contradições da própria existência. O poema revelando a si mesmo ao propagar as proezas híbridas da linguagem e da vida. Uma máscara que identifica pela soma de outras incontáveis. Em seu caso, mais detidamente, tal representação encontra na abordagem sexual o melhor palco. Sua metáfora erótica não se restringe à relação amorosa romântica, mergulha nas entranhas da peleja entre corpos competitivos, na agudeza das dilacerações, a caminho do secreto pavilhão das crueldades. Não se trata, no entanto, de negação do corpo, mas antes de um desafio vertiginoso de melhor compreensão dos inúmeros mecanismos de repressão que desfiguravam a compreensão dos antagonismos masculinos e femininos da época em que viveu.
A vida tumultuada de Emmy Hennings (Alemanha, 1885-1948), conhecida como a Estrela do Cabaré Voltaire, de algum modo interferiu na compreensão e reconhecimento da grandeza de sua poesia. A começar pela defesa incondicional que fez da impossibilidade de haver espiritualidade sem mundanismo. Não há como encontrar Deus sem o entendimento da atuação do Diabo. Poeta, dançarina, pintora, cantora, prostituta, Hennings foi essencialmente uma mística que promovia a anarquia e o amor livre. Sua determinação à unificação dos opostos e a afirmação de que não há conhecimento do infinito sem a experiência-limite de todas as manifestações do finito, deu à sua poesia uma plenitude transgressora, não alcançada por seus pares – Hans Arp certamente seria uma isolada exceção –, embora pouco compreendida naquele momento. Grande inspiradora do Dadaísmo, sua participação no movimento foi relegada ao silêncio, raramente referida, seja pela exuberância de seu estilo de vida, seja pela misoginia imperante em Dadá.
A francesa Claude Cahun (1894-1954) dinamitou todas as normas que se opunham à disciplina de seu ascetismo. Lucie Schwob de nascimento, ao assumir um personagem masculino, mais do que simples escolha de um pseudônimo, pôs em cheque tanto a desvalorização das mulheres quanto o conflito das identidades. Em nota a seu livro Les Paris sont ouvert (1934), destaca: Eu sonho ou imagino corpos em outros lugares, às vezes incluindo meu próprio corpo. Esses objetos sonhados ou imaginários estão sempre localizados no espaço em relação ao meu corpo vivo, que me serve como uma espécie de bússola. O modo subversivo como lidava com os disfarces despertou a atenção dos surrealistas, especialmente Breton, que a considerava um dos espíritos mais curiosos do nosso tempo. Cahun defendia que o poeta deve escrever contra ele próprio, a criação deve atuar no mais pleno território do desconforto existencial, exigindo o mais ferozmente possível a violação de todas as ilusões metafísicas. Esta forma peculiar de alteridade ela praticou em seus escritos – relatos oníricos, poemas, panfletos políticos, cenas teatrais – com exímio embaralhar de gêneros, rompendo com as restrições conhecidas à época, tanto em termo de linguagem artística quanto de padrões de comportamento. Não menos intensa outra zona de sua obra, a fotografia, através da qual ela expressou com acentuado humor – profundamente ético – conflito de gêneros e a urgência em criar novos cenários para acolher a multiplicidade de sexos em cada um de nós.
A mexicana Nahui Olin (1893-1978) levou ao limite sua percepção de que o tempo, em essência, deve ser medido pela intensidade de cada ato e não por sua extensão linear. Ao limite, a liberdade de ser, ao ponto de afastar-se da vida social, ainda muito jovem, quando esta se torna completamente sem atrativo, e pressentindo o risco de seu corpo e sua obra serem demarcados unicamente como objetos eróticos. Poeta e artista plástica, Nahui impôs à sua biografia um duplo recorte: após os 20 anos – até lá deixava seu corpo ser fotografado em alta voltagem erótica –, ela se converte em uma eremita, afastada de todos os rótulos impostos à mulher em sua época. Tal estado de rebeldia logo foi interpretado como loucura. Para aceitar viver, disse ela em um poema, teria que renovar-se constantemente. Sua escritura, composta por diários, cartas e poemas, confirma tanto a sinceridade da perene recriação de si mesma como a insubmissão irrevogável que lhe privou inclusive a aproximação de quaisquer manifestações artísticas coletivas. Já a obra plástica incluía óleos, desenhos, caricaturas, gravuras, aquarelas e seu esplendor como modelo fotográfico de nus e retratos. Seu isolamento, aliado à rejeição mexicana ao Surrealismo, foram suficientes para nublar suas afinidades com o movimento. Nahui manteve incondicional defesa da condição transgressora da criação, da volúpia incontornável do ser, da liberdade intensa de mesclar vida e obra.
Por força do exílio em Nova York de muitos artistas europeus, em face da 2ª Guerra Mundial, propiciou à brasileira Maria Martins (1894-1973), então ali residente, um rito de passagem no que diz respeito à definição estética de sua criação. Como resultante das novas amizades que foi colhendo destacam-se a exposição que realizou com Piet Mondrian em 1943 e a intensa relação amorosa com Marcel Duchamp. Este momento marcou uma aclimatação entre os mitos amazônicos e a perspectiva do maravilhoso defendida pelo Surrealismo, acentuando o erotismo que já se anunciava em sua escultura. Um erotismo que se revela na perene transformação de suas figuras, na sedução de seus significados, recordando o que dela dissera Benjamin Péret, ressaltando que sua escultura tende a provocar a natureza, a estimular nela novas metamorfoses, cruzando o cipó com o monstro lendário de onde ela provém, a pedra com o pássaro fóssil que dela se evade. Suas ramificações concentram em si uma transgressão latente do corpo feminino, desnudamento simbólico que avulta a libido inspirando novas formas orgânicas, leito infestado de analogias, simbiose constante do que vemos e imaginamos.
Kay Sage (Estados Unidos, 1898-1963) desempenhou relevante papel na recepção em Nova York de inúmeros surrealistas europeus, por ocasião da 2ª Guerra Mundial, e, por consequência, os desdobramentos do movimento em seu país. Tanto cuidou de fornecer documentos e recursos aos imigrantes – sem esquecer o pagamento de aluguel para o casal Elisa e André Breton, cuja viagem aos Estados Unidos foi diretamente influenciada por ela – como apresentou muitos deles às galerias onde se realizaram várias exposições. Houve, no entanto, seja da parte dos próprios surrealistas, bem como de seus biógrafos e historiadores – um inaceitável silêncio em relação à sua importância no estabelecimento do Surrealismo em terras estadunidenses. E o silêncio arrastou consigo até mesmo a percepção de sua própria obra pictórica, cujas paisagens insólitas, repletas de símbolos buscados em leituras totêmicas – de que é exemplo a reincidente presença de um ovo em várias telas – e fragmentos de uma decomposição arquitetônica, encontrou identificações – nenhuma ao ponto de ser considerada influência – com certos detalhes na obra de Giorgio De Chirico, Salvador Dali e Yves Tanguy. Muito mais do que paisagismo onírico, o que sua pintura parece evocar é uma leitura visionária de um mundo destruído, com a espantosa indicação de objetos que teriam ocasionado sua catástrofe ou que ainda poderiam vir a ser recuperados.
Quando entramos na casa de Gertrude Abercrombie (Estados Unidos, 1909-1977), nos sentimos em uma ampla festa dos sentidos, onde a liberdade recorta seus esvoaçantes símbolos e contagia a todos. Gertrude fez de seu espaço um abrigo onde reunia os amigos, artistas ou não. Um deles, o pianista Richie Powell, captou plenamente sua saltitante alegria de viver, na composição que lhe dedicou: Gertrude’s bounce, a efervescência do bebop, por ela antecedido, na pintura, sugerida como uma bop art, ambiente formado pela pulsação constante de pequenas notas, em seu caso, a projeção de incontáveis pinturas de pequena dimensão. Gertrude trazia em seu íntimo o ritmo intenso do jazz, e em sua obra plástica os deslocamentos de cena de suas figuras, assim como os inesperados destroncamentos ou fragmentação das mesmas, refletem igual fraseado. No entanto, encontra-se ali o cenário misterioso de um personagem central, ela própria, cujo íntimo revela uma atenção crítica ao mundo em que vive. Leveza rítmica e densidade temática celebram feliz conjunção. Gertrude entendia o surrealismo como um modo de alterar forma e sentido do que via. A aparência sobrenatural de algumas obras evidencia seu desejo de reconstrução permanente da realidade.
A Grécia nunca soube como tratar a poeta Matsi Chatzilazarou (1914-1987). Distanciamento em face do tempestuoso romance que ela viveu com seu psicanalista, o também poeta Andreas Embirikos, relação transgressora da ética profissional. Distanciamento em relação à intensidade erótica de sua poesia, considerando que a mesma tem por base a descoberta de um louco amor. Com o espírito ferido por duas baixas afetivas, a morte dos pais e dois casamentos fracassados, Matsi busca um mínimo de equilíbrio na psicanálise, passando a ser tratada justamente por Embirikos. O casal logo mergulha na fortuna de uma amorosa voragem espiritual que acaba resultando em notável experiência poética e erótica. A magia desse encontro descobriu em Matsi uma voz multifacetada, seja pela singularidade de sua poesia, seja pelas experiências com desenhos e fotografias. Sobre sua poesia, escreveu Liana A. Maragou: sua escrita vem como uma torrente, abraçando toda a tensão da paixão, do desejo, do amor carnal que se transforma em um estado sonhador e que se deixa incorporar pelos elementos da natureza e os animais selvagens, a fim de se manifestar com a aspereza de uma natureza impaciente que quer provar tudo. O exílio em Paris lhe permite conhecer lugares e artistas ligados ao Surrealismo, por indicação de Embirikos, de tal modo que as aflições do passado são visceralmente consumidas dando vazão a um acento poético vitalizador, destacando-se em uma tradição lírica, como a grega, das mais vigorosas na Europa. Entre seus livros, se encontram Cinq Fois (1949) e La France des mots (1954). A poesia completa foi reunida após sua morte em Poemas 1944-1985, publicado em 1989.
Um singularíssimo e maravilhoso bestiário salta da pluma de Unica Zürn (Alemanha, 1916-1970), não importa se desenhe ou escreva. Convulsivo e por vezes assombroso, cenário em que o próprio homem é visto como uma das feras de suas alucinações. Os delirantes anagramas alcançados na escrita equivalem à fusão de objetos e animais em seu desenho. Sua obsessão por esses dois truques anagramáticos revela uma tensão fecunda entre loucura e vigília, desejo e memória, de tal modo que em Unica a criação transmite forte impressão de vir à tona alheia ao criador. Como uma erupção de vislumbres e minúcias de uma vida tumultuada, que inclui a violação pelo irmão ainda na infância, aborto, suicídio e passagem por algumas clínicas psiquiátricas. Unica foi também a modelo desfigurada da série de bonecas de Hans Bellmer. A força poética de sua erupção criativa era tanto a fusão de muitas vidas em uma só como intensamente marcada pela fatalidade. E como ocorreu com muitas mulheres em sua época, Unica Zürn foi uma vítima sofrida da psiquiatria.
Rosaleen Norton (Austrália, 1917-1979) encarnou o espelho indesejado da cultura australiana. Ela foi a protagonista de sua criação, no sentido de uma perfeita unificação de vida e obra. Considerada bruxa, pelos rituais de transe e as relações que buscou entre psicanálise e ocultismo, seus escritos enveredaram pelo surrealismo e o horror gótico com uma incondicional recusa a toda forma de ortodoxia. Galopou com intransigente habilidade o relâmpago da contracultura. Ao adentrar meandros mais profundos e ocultos da arte, Rosaleen inova a narrativa tradicional ligada ao tema alterando sua percepção da realidade e as recorrentes consequências trágicas de suas tramas. Seja na escrita ou na prática, vemos nela um persistente envolvimento com o inconsciente e os mundos desconhecidos. Nas duas vertentes criativas há tanto de automatismo e transe, como de irreverente dissenso com os estigmatizantes dogmas da fé e do racionalismo. Sua cosmovisão, no entanto, apesar das intrínsecas afinidades com algumas técnicas surrealistas, sempre a manteve desligada de quaisquer rótulos. Em uma sociedade fechada como a australiana, enquanto Rosaleen Norton atuava em Sidney, ali não muito distante, em Adelaide, o Surrealismo se expandia graças aos empenhos de Ivor Francis e Max Harris, respectivamente artista plástico e poeta, sem que ambos a conhecessem. O grande impacto de sua obra surge em uma Austrália em que apenas recentemente as mulheres haviam conquistado o direito ao voto e tinham ainda pouco acesso ao ambiente profissional. Revolucionária em todos os aspectos, Rosaleen diria, em um de seus poemas: Eu moro no Infinito, eu vivo.
Na poesia de Olga Orozco (Argentina, 1920-1999) sonho e memória encarnam abissal perspectiva de infinitos mundos paralelos, que se fundem e mesmo desaparecem aos olhos da realidade, como um ninho de provocações. Um labirinto de dimensões que se abrem e fecham como o olhar de uma pintura que nos desafia a fazer parte dela ou a porta que nos seduz a compartilhar infinitas moradas. Mais do que uma metáfora do precário, o que lemos em Olga é a transmigração do tempo pelos mais acidentados rincões da experiência humana. Iniciática e peregrina, em sua poesia captamos a essência secreta do ser e da linguagem. Sua biografia a encontra intensamente dedicada à criação poética. Embora tenha mantido boas relações de amizade com alguns surrealistas argentinos, jamais aderiu ao movimento, no que pesem ainda as diversas analogias possíveis entre sua lírica e o Surrealismo. Ela mesma dirá: Ainda que eu não seja uma surrealista ortodoxa, creio que há elementos em comum: o predomínio do imaginário, buscas subconscientes, o fluir das imagens, a imersão no onírico e no fundo de si mesmo como canteiro de sabedoria, a crença em uma realidade sem limites, muito além de toda aparência e de toda superfície e a avidez de captar essa realidade por inteiro em todos os seus planos.
Gisèle Prassinos (França, 1920-2015) considerava utópica a escritura automática nos moldes em que a preconizara André Breton. Segundo ela, há um primeiro estalo em que o subconsciente é acionado pela escrita, porém no momento seguinte a consciência volta a intervir juntamente com as forças da imaginação. Não havia aí nenhuma rejeição ao Surrealismo, cuja importância ela sempre reconheceu, mas antes o imperativo que colocar o assunto com clareza. Apresentada a Breton por Henri Parisot, tradutor e amigo comum, aos 14 anos de idade, Gisèle logo teria um primeiro livro prefaciado por Paul Éluard, sendo enquadrada pelos surrealistas como a poeta-menina, ou mulher-criança. No entanto, jamais foi percebida como mulher ou mesmo como poeta – em entrevista ela recorda um dia em que Breton cruza com ela na rua e finge não a reconhecer –, e raramente foi convidada para as reuniões do grupo. É plena sua consciência de que foi tratada apenas como objeto. Interessada na simbiose de uma escrita coletiva, que chegou a realizar com o poeta luxemburguês José Ensch, era fascinada pelo modo como tais experiências excediam o território da consciência individual. Poeta, desenhista e narradora, Gisèle foi além da caricatura que inicialmente lhe foi imposta pelos surrealistas, criou uma obra singular, absolutamente transgressiva ao embaralhar os gêneros, fusão de erotismo e humor negro, repleta de personagens-limite. Certamente Sade a teria entre os seus.
Em seus textos, sobretudo na prosa crítica, Nora Mitrani (Bulgária, 1921-1961), evocava as forças do pensamento analógico ao escrever sobre poesia e erotismo, filosofia e ficção científica. Acerca deste último, quando chegou a mencionar uma máquina para inspirar o amor, seus artigos hoje constituem uma raridade, uma vez que não era zona de interesse dos surrealistas. Sua paixão pelos anagramas lhe levou a confessar que eles nascem de um conflito violento e paradoxal. Pressupõe uma tensão máxima da vontade imaginativa e, ao mesmo tempo, a exclusão de qualquer situação preconcebida, porque seria estéril. Criticou duramente a beleza cosmética imposta às mulheres e a completa ausência de ambição da parte daqueles que alcançaram alguma posição de prestígio. Nora foi musa de surrealistas como Hans Bellmer e Julien Gracq, incluindo o amor impossível que despertou em Alexandre O’Neill, e, apesar da morte prematura, aos 39 anos de idade, deixou alguns relevantes estudos sobre Bellmer, Fernando Pessoa e o Marquês de Sade. Em vida não chegou a publicar nenhum livro e somente em 1988 seus escritos foram parcialmente recuperados em um volume chamado: Rose au cœur violet.
A poesia da peruana Blanca Varela (1926-2009) se encontra marcada por um peculiar ascetismo, a busca disciplinada de elementos verdadeiros em seu íntimo que lhe permitam expressar uma magia poética tão intensa quanto a sua. Escavação constante de mistérios que lhe permitiram definir uma estética ao mesmo tempo plural e única – a pluralidade de seus recursos navega as mesmas águas de um discurso que lhe identifica. Uma de suas ousadias radica na presença em dado momento de sua lírica de um falante masculino, procura vertiginosa de outros modos de sentir e dizer o poema. Outro risco: o de haver suprimido, já ao organizar a primeira compilação de sua poesia reunida, em 1986, todo um conjunto de poemas que, de acordo com Américo Ferrari, representam a maior aproximação de um lirismo expresso em uma linguagem que recolhe fórmulas e tópicos da escritura surrealista: o poema se esgota em uma sucessão de imagens e visões oníricas geralmente apresentadas em séries de cláusulas coordenadas ou simplesmente justapostas. Não vejo, no entanto, nenhum modo de rejeição ao Surrealismo, mas antes um positivo sinal de precisão por ela obsessivamente buscada, a renúncia, aí sim, das muitas máscaras que usava, até a completa definição de seu próprio eu. Nela permaneceu sempre a afirmação de um sentido interior, que a vincula ao que há de mais denso no Surrealismo, não um truque de linguagem, mas antes a essência do ser.
Ao eclodir em 1948 o manifesto Refus Global, em Quebec, um dos mais intensos desdobramentos do Surrealismo no continente americano, a poeta Thérèse Renaud (Canadá, 1927-2005), foi uma das signatárias, ao lado de seis outras mulheres. O grupo, identificado como Automatistas, representou um alto momento revolucionário da cultura canadense, embora ainda se ressinta de uma mais primorosa leitura crítica. Uma presença feminina tão intensa no manifesto, no entanto, não teve correlato nas mostras coletivas do grupo, capitaneado pelo artista Paul-Émile Borduas. Thérèse foi a única mulher poeta, em meio às demais que atuavam em ambiente plástico. Nenhuma delas jamais foi convidada a participar das exposições. Entre as confluências com inúmeros tópicos do Surrealismo a misoginia repetia no Canadá a mesma máscara francesa. Declaradamente surrealismo desde os primeiros momentos, Thérèse foi consolidando uma poética marcada pela expansão do imaginário e o mergulho no inconsciente. Tal afinidade com o Surrealismo revelou igualmente uma transgressão de linguagem em relação à lírica canadense. A ida a Paris, que lhe permitiu encontrar Artaud e Breton, não obteve os frutos esperados. Ao acompanhar o marido – o artista Fernand Leduc, também ele integrante dos Automatistas –, Thérèse não foi vista senão como esposa e mãe. Aviltante recepção lhe deixou bem claro que não encontraria melhor destino senão no exílio interior, perspectiva que propiciou uma mais ampla voltagem de sua poética.
Durante as primeiras décadas de eclosão do Surrealismo, no centro radiante que era Paris, as mulheres foram idealizadas de todas as formas possíveis, porém jamais foram vistas ou aceitas como artistas. Sequer participaram das reuniões e enquetes – a eloquente enquete sobre sexualidade comete o ato inadmissível de não incluir a opinião de nenhuma mulher. Em geral quando se fala de Joyce Mansour (Egito, 1928-1986), ela é mencionada como uma exceção. Embora admirasse o Surrealismo à distância, em seu Egito natal, somente em 1953 a poeta se muda para Paris, e seu primeiro encontro com Breton, com quem já se correspondia, data de três anos depois, quando o Surrealismo começa a enfrentar desgastes e necessita beber novos horizontes que o revitalizem. A poesia de Joyce, que enfatizava a violência sofrida pela mulher, suas imagens dilacerantes, o ímpeto revolucionário da linguagem, causou um impacto eficaz e decisivo à sua recepção no movimento. Sua natureza sempre independente a leva, ao passo de poucos anos, a compreender que a escritura automática trazia em si como elemento essencial o impulso vital de implodir eventuais travas da criação. Sua poética passou então a lidar mais intensamente com outras técnicas surrealistas, de um modo bastante peculiar, como o recurso onírico, presente em muitos cenários e personagens de sua prosa, de seus densos relatos que se mantinham direcionados a tratar da violência contra a mulher, assim como o humor negro, que põe em cheque as instituições e dá à sua obra uma alta expressividade que a situa como uma das mais importantes poetas de seu tempo.
A poeta e escultora Isabel Meyrelles (Portugal, 1929) disse certa vez que considerava a grandeza do Surrealismo como a um imenso país libertador. Inicialmente presente nos cafés, reuniões e mostras coletivas em Portugal, por ocasião do estabelecimento de um novo grupo surrealista neste país, sem que o tenha integrado, em 1950 Isabel se muda para a França e ali faz a opção de manter-se o mais independente possível. O que não a impede de sentir-se e afirmar-se surrealista. Seu poema, bem como a escultura, em muito coincidem, tanto na proporção quanto na evocação de um bestiário muito peculiar e repleto de humor e encantamento. Residente em Paris até hoje, Isabel confessa que a fobia das mulheres e dos homossexuais de Breton fez com que ela não tivesse maior interesse em uma aproximação. Sua conexão deu-se então, em primeiro plano, com Tristan Tzara, e logo mais tarde com Sarane Alexandrian. Neste lhe atraiu, sobretudo, a profunda aversão por toda forma de ortodoxia. Ao publicar no Brasil um volume com sua poesia completa e uma pequena mostra de esculturas, observei a presença do humor como componente decisivo de sua obra, um humor engenhoso, finíssimo, com imagens que evocam “uma máscara que tem um ar tão verdadeiro / que toda a gente se engana” ou “prisioneiros de uma gaiola aberta”. Humor que se alimenta de uma mesma fonte de paradoxos, porém sem se resumir a simples pilhéria ou tirada jocosa. Nota-se aí uma imensa afinidade o riso, no entendimento de Georges Bataille, como uma forma de êxtase que liberta, salto do possível no impossível.
A argentina Alejandra Pizarnik (1936-1972) é uma dessas poetas com quem a crítica se envolve na discussão – a meu ver improdutiva – de sua aproximação ou distanciamento do Surrealismo. Isto em face de que sua poética encarna o ambíguo e mesmo o contraditório para aqueles que defendem com rigor cego uma ortodoxia surrealista. Sua obsessão pela imagem certa, pela palavra certa, apenas tangencialmente a afastam do Surrealismo, pois acaso não era assim que pintava René Magritte ou escrevia René Char? E seu poema, pelo recurso da síntese e do aforisma, acaba por se converter em pintura, dada a eficácia transbordante de suas imagens. E que beleza quando ela mesma nos diz que escrever é buscar no tumulto dos queimados o osso do braço que corresponda ao osso da perna. Também cabe não esquecer o postulado emblemático de sua poesia de que a realidade também está composta por imagens opostas entre si. Está certo que o Surrealismo propõe uma violação do sentido racional da realidade, porém para atingi-lo se faz imperativo romper também com o sentido retórico da irrealidade. A poesia de Alejandra funde ambas as premissas ao revelar uma conjunção incondicional entre percepção e reflexão. Essencialmente ritualística, sua poesia esplende na oferenda de uma cosmovisão singular. Não é outra a grandeza de suas imagens. Longe de distanciar-se do Surrealismo, ela o renova e amplia.
Refletir sobre a obra de Susana Wald (Hungria, 1937) – o que fiz no livro La vastedad simbólica (2018) – nos leva a entender melhor sua intrínseca relação com os opostos criativos cobiçados pelo Surrealismo. Como relato no livro, eis a impressão que me passou, ao conviver com ela por alguns dias em sua casa, o cenário de seu atelier: O que poderíamos entender como um lugar sagrado, uma espécie de mola de contato com a transcendência, no seu caso, é a morada da revelação física de seu ponto de equilíbrio entre a memória e o sonho, o testemunho e a visão. O suor da construção de uma obra de arte é parte de seu mistério e, como tudo nela, é essencialmente real. O ateliê de Susana está cheio de obsessões. Há a presença sombria do símbolo. Os nós, as pedras, as ondas, a lembrança de que tudo em sua paisagem é trópico, que assim o quer, o mundo como um lar de sombras queimadas. E tê-la ali, ouvindo suas concordâncias e discordâncias, com a voz sempre comprometida com a recuperação de um mundo – o mundo da arte, da criação, da poesia, da existência comum entre todos os seres… Susana é alguém que ainda acredita que o mundo pode reduzir suas tensões graças à compaixão. O ovo filosófico da compaixão é a compreensão mútua da existência de todos em qualquer lugar. Desde a Hungria de nascimento até sua residência mexicana atual, em Oaxaca, ela viveu em países como Argentina, Chile e Canadá. Com uma vida inteira de mergulho na vastidão surrealista, parte essencial de sua jornada lembra o Tao, com uma leitura única da cognição, a aprendizagem incessante de um sonho que começa a todo instante.
A brasileira Leila Ferraz (1944) ainda bem jovem descobre o Surrealismo e abraça a ousadia de, ao lado de alguns amigos, montar uma exposição internacional do movimento em São Paulo, com pouco mais de 20 anos. Foi também coeditora da revista-catálogo da exposição, A Phala. Em suas páginas um ensaio de Leila – Introdução ao pensamento mágico surrealista – imprime a força de sua identificação com os postulados do Surrealismo, ao mesmo tempo em que começa a despertar para a misoginia que contaminava as ações do grupo. Há pouco conversamos sobre a relatividade da liberdade, sobretudo em relação à mulher, quando raspamos o verniz canônico do Surrealismo. Ela então me disse: A mulher é, em si, uma força transgressiva a todo instante. Como um astro na mecânica celeste. Sua transgressão é sua própria condição feminina e tudo o que assim a caracteriza. Veja, hoje divulgaram pela primeira vez, a foto de um buraco negro no universo. Ao vê-lo imediatamente o associei, mais ainda, enxerguei o colo do útero feminino. São ambos transgressores em seus mistérios e transcendências. Uma transgressão infinitamente mutável e paradoxalmente única. A essência de um cenário indiscutível. Algo tão sagrado e violento. Algo que é côncavo e no limite desse entendimento, convexo. Jamais objeto. E sim um mutatis mutandis entre a dor e o prazer. A conversa nos permitiu tocar nos modos de reação da mulher, em especial a interdição ulterior. A mulher não está vedada, mas ela veda a si mesma, como se guardasse, ao menos em parte, a celebração de seus ofícios, para si mesma. Como se mantivesse sempre algo oculto, jamais revelado, que é a parte revitalizante que traz em si. Em face disto é que a mulher não cede aos truques da repetição, porque ela guarda em si um minério que resplende luz perenemente a cada ato, que o faz parecer (e ser mesmo) outro, sempre renovado, nela. E Leila alcançou a profundidade do minério dessa relação justamente com o Surrealismo e seu revelador poço de contradições.
Na fotografia de Francesca Woodman (Estados Unidos, 1958-1981), a cabeça manchada, decepada, invisível ou mesmo aparentemente perdida, impõe uma revisão da plenitude, das forças alusivas do instinto e da obsessão. Rebeldia contra o mundo estável das formas. Teatro das desordenações elegíacas, sua fotografia se move constantemente, desafiando as perspectivas de um olho racional. Seus personagens irrequietos, na busca incansável de outros modos alterados do ser, desenquadram os vícios de causa e efeito, implodem as relações entre os moldes concretos e abstratos, imprimem novas funções à estática moldura. Transgressão das formas, mas também da sexualidade, do dualismo que distingue os símbolos do masculino e do feminino. A decapitação de seus personagens não é senão uma recusa a deixar-se invadir pelo reino sombrio da artificialidade. Francesca evoca o interdito como uma força secreta de elucidação da mulher. Recorto a bela leitura que dela faz a crítica Monika Kedziova, ao dizer que ela facilita o corpo a escrever com significados que emanam do próprio corpo, não da mente, distinguindo com clareza os dois métodos de eliminação do ser: no masculino, a castração; no feminino, a decapitação. Atenta à obra de Georges Bataille e André Masson, a fotografia de Francesca doa ao Surrealismo uma riquíssima fonte de liberdade transgressora, reforçando o ímpeto expressivo da criação.
III
Com o surgimento do Primeiro Manifesto do Surrealismo vem à tona uma confusão que, embora parcialmente, perdura até os dias de hoje. Em uma passagem já célebre – a que todos recorrem, para o bem ou para o mal –, Breton se refere à criação como isenta de qualquer preocupação estética ou moral. A confusão: tais preocupações devem se impor no instante da criação, de modo a frear quaisquer submissões a um receituário. No entanto, quando de criação artística se está falando, evidente que, uma vez criada, ela se move por trilhas da estética e da moral. Tanto melhor se tal dinâmica não é determinada por balizas já existentes e, ao contrário, trata de fundar seus próprios princípios. A inevitável ortodoxia estabelecida pelo Surrealismo acabou por trazer consigo uma rejeição a esses elementos. Décadas depois, em 1953, em seu ensaio “Do Surrealismo em suas Obras Vivas”, ao afirmar que o Surrealismo nasceu em uma operação de grande envergadura que tinha por objeto a linguagem, observa que esta vinha se convertendo em algo meramente utilitário, e atribui essa perda à estética.
Indago como é possível ler a poesia de Breton desprovido de percepção. E mais: como ele próprio poderia tê-la escrito em iguais circunstâncias. Pois aí está o domínio filosófico da estética, que não trata da beleza em seu território cosmético, mas sim dos fundamentos da criação. Como viajar pelo convulsivo labirinto de analogias proposto por Lautréamont, por exemplo, sem perceber que a sua linguagem, no dizer do próprio Breton, é, por igual, um dissolvente e um plasma germinador? Ao dizer que a poesia de Lautréamont é bela como um decreto de expropriação, as palavras de Breton elucidam o caráter estético dessa poesia, ou seja, seu fundamento. Evidente que há que se considerar a liberdade, tanto de criação como de compreensão das obras, concordando com Paul Éluard, para quem a liberdade é um nascimento perpétuo do espírito. Na verdade o que Breton condenava era o caráter reiterativo das fórmulas, algo imensamente danoso quando aplicado à criação artística. A devoção carismática pela beleza ou a fealdade – cujo princípio é o mesmo – se rivalizam ao correr de cada época, e curiosamente se aplica a muitos artistas, surrealistas ou não, seja no sentido de copiar uma poética alheia ou de criar um replicador estético de sua própria poética. Inconsciente ou não, é fato que muitos artistas, lidem com a imagem plástica ou poética, se consagram à destilação enfadonha de um déjà vu retórico.
O ambiente estético tanto comporta transgressão como escavação do inconsciente. Transgredir o inconsciente implica em desafiar o inaceitável. E não se chega a ele sem um sentido profanador de todos os valores identificados e aceitos. A transgressão do inconsciente é uma ousadia que almeja a revelação do que há de mais profundo no ser. Como a entendo ela se manifesta na vida e na obra de muitas mulheres surrealistas e paira sobre sua ocultação – a percepção e aceitação dessa manifestação – uma das falhas inadmissíveis do Surrealismo. Ou pelo menos de suas formações grupais sob a pena de Breton. A limitação do entendimento da mulher como um objeto de idealização reduziu em muito a grandeza do movimento. É preciso dar ênfase ao que observo, daí que tenha realizado a presente edição. O período que define a minha escolha é bastante abrangente – desde mulheres nascidos em 1882 até 1958 –, assim como as suas áreas de atuação, que incluem tanto a linguagem plástica como poética. Aqui estão pintoras, narradoras, fotógrafas, poetas, pintoras, mulheres que alcançaram uma indiscutível renovação estética, de acordo com o que relato em seus retratos na sessão anterior deste ensaio. Claro está que não são as únicas, porém são, isto sim, paradigmáticas da percepção e realização das forças fundamentais postuladas pelo Surrealismo no que diz respeito à liberdade, à poesia e ao amor.
Registro meu mais sincero agradecimento a todos os ensaístas que participam da edição, e faço questão de nominá-los: Alexandra Bourse, António Cándido Franco, Christophe Dauplhin, Claudine Potvin, Constantina Spiliotopoulou, Crystal Hoffman, Ellen Mcwhorter, Graciela Mayet, Inés Ferrero Cándenas, Josefa Fuentes Gómez, Lilian Ribeiro, Lyndon Blue, Marylaura Papalas, Molly Curtis, Monika Kedziora, Noemí Martínez Diez, Rocío Luque, Rosey Selig-Addiss e Stéphanie Caron. Bem como à Maria Estela Guedes, por sua acolhida incondicional deste dossiê em sua revista: TriploV.
[Maio de 2019]
21 MULHERES SURREALISTAS
Organização, tradução e estudo introdutório | FLORIANO MARTINS
Poemas de Mina Loy em tradução de IkaRo MaxX
Especial para TRIPLOV
Estudo introdutório | Transgressões do inconsciente
1 | 1882-1966 MINA LOY (Inglaterra)
ELLEN MCWHORTER | Body Matters: Mina Loy and the Art of Intuition
Poemas em tradução de IkaRo MaxX
2 | 1885-1948 EMMY HENNINGS (Alemanha)
CRYSTAL HOFFMAN | “Emmy Hennings: ‘Star of the Cabaret Voltaire’ and Dada’s Mystic Mother”
Poemas em tradução de Floriano Martins
3 | 1893 – 1978 NAHUI OLIN (México)
ROCÍO LUQUE | Nahui Olin: una mirada lúcida
Poemas em tradução de Floriano Martins
4 | 1894-1954 CLAUDE CAHUN (França)
ALEXANDRA BOURSE | Claude Cahun: la subversion des genres comme arme politique
5 | 1894-1973 MARIA MARTINS (Brasil)
LILIAN RIBEIRO | Maria Martins, la única surrealista de Brasil
Poemas
6 | 1898-1963 KAY SAGE (Estados Unidos)
MOLLY CURTIS | A Combination in Context: Kay Sage and Surrealism
Poemas em tradução de Floriano Martins
7 | 1909-1977 GERTRUDE ABERCROMBIE (Estados Unidos)
ROSEY SELIG-ADDISS | A Surrealist Painter Who Collaborated with the Chicago Jazz Scene
8 | 1914-1987 MATSI CHATZILAZAROU (Grécia)
CONSTANTINA SPILIOTOPOULOU | Résistance et devoir dans la poésie féminine après guerre
Poemas em tradução de Floriano Martins
9 | 1916-1970 UNICA ZÜRN (Alemanha)
NOEMÍ MARTÍNEZ DIEZ | Fragmentos de la vida y obra de Unica Zürn
Poemas em tradução de Floriano Martins
10 | 1917-1979 ROSALEEN NORTON (Austrália)
LYNDON BLUE | Magical Adversary: Rosaleen Norton’s Art of Resistance
11 | 1920-1999 OLGA OROZCO (Argentina)
GRACIELA MAYET | El sueño en la poesía de Olga Orozco
Poemas em tradução de Floriano Martins
12 | 1920-2015 GISÈLE PRASSINOS (França)
CHRISTOPHE DAUPHIN | Gisèle Prassinos
Poemas em tradução de Floriano Martins
13 | 1921-1961 NORA MITRANI (Bulgária)
STÉPHANIE CARON | Nora Mitrani, surréaliste au si secret visage
14 | 1926-2009 BLANCA VARELA (Peru)
INÉS FERRERO CÁNDENAS | Blanca Varela y el gran aire de las palabras
Poemas em tradução de Floriano Martins
15 | 1927-2005 THÉRÈSE RENAUD (Canadá)
CLAUDINE POTVIN | Thérèse Renaud: écrire le Refus global
Poemas em tradução de Floriano Martins
16 | 1928-1986 JOYCE MANSOUR (Inglaterra)
MARYLAURA PAPALAS | Female Violence as Social Power: Joyce Mansour’s Surrealist Anti-Muse
Poemas em tradução de Floriano Martins
17 | 1929 ISABEL MEYRELLES (Portugal)
ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO | Isabel Meyrelles e o Surrealismo em Portugal
Poemas
18 | 1936-1972 ALEJANDRA PIZARNIK (Argentina)
JOSEFA FUENTES GÓMEZ | El Surrealismo en Alejandra Pizarnik
19 | 1937 SUSANA WALD (Canadá, México)
FLORIANO MARTINS | Picnic virtual, diálogo con Susana Wald
20 | 1944 LEILA FERRAZ (Brasil)
FLORIANO MARTINS | Leila Ferraz e a marca indelével do maravilhoso
21 | 1958-1981 FRANCESCA WOODMAN (Estados Unidos)
MONIKA KĘDZIORA | Acephala, Acephala! Headless figure in Francesca Woodman’s work
revista triplov . série gótica . outono 2019
parceria tripLOVAGUlha
EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/