ADELTO GONÇALVES
Adelto Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015) e Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
I
Da vida do poeta seiscentista/setecentista Tomás Pinto Brandão (1664-1743), pouco se sabe, a não ser aquilo que ele mesmo deixou escrito em sua obra Vida socinta, e abreviada do autor – por hum dos Acadêmicos seu Contemporaneo, que consta da edição de 1753 do livro Pinto Renascido. Mas tomar como verdadeiro o que um poeta colocou em seus poemas nunca foi aceito como método de pesquisa pela historiografia porque, como se sabe, o vate não tem nenhum compromisso com a verdade e sempre deixa o seu alter ego fluir para além da imaginação.
Este pesquisador mesmo teve de enfrentar esse problema quando se decidiu por pesquisar a vida e a obra dos poetas Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810) e Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765-1805). E, muitas vezes, à falta de documentos, não encontrou outra alternativa que não fosse recorrer ao futuro do pretérito para alinhavar alguma informação que constava de algum poema, mas sempre deixando claro que a fonte não seria confiável.
Nos casos de Gonzaga e Bocage, não faltam documentos de arquivo que permitam recompor a tumultuada trajetória que ambos percorreram, mas, de Pinto Brandão, de geração anterior, já não se pode dizer o mesmo. Até porque, ao contrário de Gonzaga, não foi funcionário régio e tampouco uma figura tão notória e polêmica em Lisboa como seria Bocage.
Talvez por isso o jornalista e pesquisador brasileiro Jair Rattner, em seu trabalho de mestrado pela Universidade Nova de Lisboa, não se tenha deixado levar pela ideia de escrever uma biografia de Pinto Brandão, optando por uma edição crítica e um estudo do códice 50-I-11, Verdades Pobres ditas em Portugal, e nos Algarves daquem e dalem America, Africa, Etiopia etc. Primeira Parte. Offerecida à Magestade de elRey D. João V, nosso Senhor em o anno de 1717, que consta do arquivo da Biblioteca da Ajuda e reúne poemas do vate barroco. Não deixou, porém, de incluir uma “notícia biográfica”, além de explicações sobre o devido cotejo entre as edições originais e papéis dispersos que constam de diversos arquivos portugueses.
O resultado é um trabalho de arqueologia textual extremamente importante e inestimável que há de contribuir para preencher uma extensa lacuna nos estudos sobre o período barroco em Portugal, já que muitos dos escritos literários dessa época ainda dormem o sono solto dos arquivos, especialmente aqueles ligados ao joco-sério, poesia satírica, de caráter realista e burlesca, que era praticada nos séculos XVII e XVIII. Pois, afinal, os versos foram o que de mais precioso sobrou da biografia de um vate que esteve longe de ser um súdito bem comportado, pois nunca deixou passar a oportunidade de fazer uma pintura caricatural de seus desafetos, ora em tom de pilhéria, ora em tom obsceno, sem deixar de passar pela grosseria, pela chocarrice e até pela escatologia.
Enfim, este trabalho meticuloso, que procura fazer a edição diplomática do original setecentista, torna-se desde já, ao lado de Este é o bom governo de Portugal, antologia organizada por João Palma Ferreira (1931-1989), de 1976, e de Portuenses Ilustres, v. I, pp. 254-259, de Sampaio Bruno (1957-1915), de 1907, indispensável para quem quiser estudar a época e a obra do poeta.
II
Nascido no Porto, Pinto Brandão não seria de família humilde, pois o pai era formado em Direito, status à época reservado a poucos. O pai, no entanto, seria um “mau letrado” que “baixara a requerente”, segundo o próprio poeta disse num de seus chistes, o que o teria levado, em 1680, aos 17 anos de idade, a mudar-se sozinho para Lisboa. Na capital do Reino, teria conhecido o poeta baiano Gregório de Matos Guerra (1636-1696), advogado desbocado que ficaria mais conhecido como “Boca do Inferno”, cuja amizade seria decisiva para o rumo desencontrado que tomaria sua vida. Quatro meses depois, ambos seguiriam para a Bahia, onde Pinto Brandão assentaria praça na guarnição local.
Na Bahia, como consta da biografia apensa ao Pinto Renascido, edição de 1753, teria cometido “travessuras e excessos” que acabariam por levar o almotacé-mor Antônio Luiz Gonçalves da Câmara Coutinho, então alçado a governador e capitão-general, a mandar prendê-lo. A se levar em conta o que dizem seus versos, o motivo da prisão seria a disputa pelos favores sexuais de uma mulher casada. O rival seria um frade que teria disparado um tiro contra o poeta, mas sem acertá-lo. Como vingança, o religioso teria feito queixa ao governador, que, por fim, decidiu mandar o poeta para Angola. Eis um trecho do poema:
(…) Nisso o Fradinho impaciente
leigo em toda a sociedade
vestio-se de caridade,
e foi queixar-se ao Regente:
Disse que hum Mosso insolente
difamava a huma cazada,
e tinha a vida arriscada; (…)
Em sua autobiografia burlesca em versos, Vida e Morte de Tomás Pinto Brandão, Escrita por Ele Mesmo Semivivo, o poeta relata pormenores de suas aventuras pelo Brasil e por África, ao mesmo tempo que dá uma imagem satírica do Portugal da época. Condenado a degredo em Angola, Pinto Brandão teria sua pena comutada em degredo para o Rio de Janeiro. Mas, depois do pedido de um nobre, o governador Luís César de Meneses (1653-1720) mandaria o poeta mesmo para Angola. O motivo teria sido um poema em que Pinto Brandão colocava a ridículo aquele nobre denunciante. Por trás, haveria novamente uma disputa por amores.
Condenado ao degredo africano, dedicou-se ao comércio de escravos, tendo reunido cerca de 70 “peças” como de sua propriedade. Apaixonou-se por Nana Ambundo, que seria sobrinha da rainha Ginga (c.1583-1663) e neta de Caconda, soberano de uma nação angolana. Mais tarde, casou, mas foi vítima de um processo movido pela sogra, situação que utilizou de forma satírica para escrever um soneto no mais puro estilo barroco:
(…) Todo o solteiro que este Mundo logra
e por cazar-se asezoado berra
considere que peste, fome, e guerra
o Diabo lhe dá, em darlhe sogra (…)
III
Pinto Brandão teria corrompido o governador, dando-lhe alguns escravos de presente em troca da permissão para retornar ao Rio de Janeiro, onde vendeu seus demais escravos e casou-se com Josefa de Melo. Depois, retornou a Lisboa, onde perdeu a fortuna que acumulara desde Angola. Desentendeu-se com a nova sogra, que fez uma denúncia que lhe valeu outra prisão, mas conseguiu livrar-se dessa situação graças ao apoio de alguns fidalgos que apreciavam suas sátiras. No final da vida, pobre, passou a viver de favores de alguns nobres. Tanto que, em 1735, mudou-se para a casa da Junqueira do nobre Vasco Fernandes César de Meneses (1673-1741), o primeiro conde de Sabugosa, onde viveu seus últimos dias.
Anticlerical, Pinto Brandão acumulou muitos desafetos com religiosos, que estavam longe de constituírem exemplo de caridade e sobriedade cristãs. Pelo contrário. Um desses desafetos foi frei Simão de Santa Catarina, com quem o poeta disputou os favores da freira Antônia Teodora, do convento de Santa Clara. A frei Simão, o poeta acusou, inclusive, de lhe ter roubado versos, desferindo-lhe uma resposta desaforada e escatológica, como bem se vê no trecho abaixo:
Mandarão ao Autor este mote de Belem
Se me beijares no cú,
Não no digas a ninguém
que não quero que se saiba
o gosto que meu cú tem.
Gloza
Á Torto, á Frade, á Ladrão,
já sey que este mote he teu,
e queres, glozando-o eu,
ter comigo introdução:
falemos claro, Simão,
eu sou pobre como tu;
e pois que me apanhas nú,
e eu a ti descalço, digo
que só serey teu amigo
se me beijares no cú. (…)
IV
Formado em Jornalismo pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), com mestrado em Literatura e Cultura Portuguesas pela Universidade Nova de Lisboa, Jair Rattner vive em Portugal desde 1986, tendo trabalhado como correspondente de jornais e agências de notícias. Fez colaborações para os serviços da BBC Brasil e para a Deutsche Welle, da Alemanha, para a Folha de S. Paulo, para O Estado de S. Paulo e para a Revista Pessoa, de São Paulo. Foi também subeditor de Internacional da revista portuguesa Época e trabalhou no jornal Correio do Brasil, voltado para a comunidade brasileira em Portugal. Antes, foi locutor na Rádio Coréia, em Seul.
Dedica-se atualmente à atividade acadêmica e à pesquisa nas suas várias áreas de interesse, que passam pela Literatura, pelas Ciências da Comunicação e pela História. Atualmente, faz doutoramento na área de Ciências da Comunicação na Universidade Nova e escreve tese sobre a atuação na iniciativa privada daqueles jornalistas que trabalharam como assessores de imprensa para o governo português, após deixarem de trabalhar com os ministros.
Faz intervenções em Esplendor de Portugal, programa de rádio que discute notícias da atualidade e é transmitido pela estação Antena 1 da Rádio e Televisão Portuguesa (RTP), apresentado e moderado por Rui Pêgo. Frequentemente, é convidado a participar como analista de temas brasileiros do telejornal SIC Notícias. Foi presidente da Associação de Imprensa Estrangeira em Portugal.
Verdades Pobres de Tomás Pinto Brandão – edição crítica e estudo,
de Jair Rattner.
Beau Bassin, Mauritius: Novas Edições Acadêmicas/International Book Service Ltd., 536 páginas, 61,9 euros, 2018.
E-mail: jair.rattner@gmail.com
♣revista triplov . série gótica . inverno 2018