RICARDO DAUNT
Tributo
Organização: DERIVALDO DOS SANTOS
DAUNT, Ricardo. T.S. Eliot e Fernando Pessoa: Diálogos de New Haven. São Paulo: Landy, 2004
Por PEDRO GONZAGA
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFRGS- área Literatura Brasileira
Ricardo Daunt propõe diálogo com as visões de T. S. Eliot e Fernando Pessoa sobre o fazer poético dentro da modernidade.
O primeiro desafio do ensaísta que se dispõem hodiernamente a analisar os fenômenos literários é encontrar o ponto de equilíbrio de seu discurso, visto que, nas últimas décadas, faz-se cada vez mais presente uma linguagem tida como acadêmica, de uso quase compulsório se o autor pretende ter seu estudo considerado dentro das universidades. No entanto, o que teoricamente poderia ser uma busca louvável pela precisão e organização lógica do texto (acrescente-se a isso o esforço pelo rigor na observação científica do objeto), acaba, no mais das vezes, na prática, transformando-se em bizantinismo, sisudez disfarçada de seriedade, quando não labirintos tautológicos, cujas saídas (se é que existem) dão-se no vazio. Por outro lado, a adoção de um tom coloquial — aliado à busca por uma gama mais ampla de leitores, evitando sempre que possível concentrar o foco sobre questões concernentes apenas ao universo dos especialistas — tende a descambar para a falta de profundidade, consubstanciando-se na leveza superficial que caracteriza boa parte dos textos de divulgação.
Ao escolher o diálogo como forma, ainda que longe do modelo platônico, Ricardo Daunt tenta equilibrar essas duas correntes de modo a produzir um texto eqüidistante. Em T.S. Eliot e Fernando Pessoa: Diálogos de New Haven pode-se perceber o esforço de construir uma ponte, um elo de ligação entre dois continentes que parecem cada vez mais afastados: o do leitor comum e o do leitor acadêmico. Nos três ensaios que compõem o presente livro, acrescidos de uma série de prefácios nada ortodoxos (num dos quais é abordada com maior extensão e, por suposto, com maior brilho a problemática dos parágrafos acima), Daunt mostra um pleno domínio e uma plena capacidade para cumprir seu ambicioso projeto. Sua escrita é precisa e fluída, o tom sóbrio nunca deixa de ser irônico e auto-irônico. As informações mais específicas, que afastar os leigos, são remetidas a notas de rodapé, o que não obstrui a leitura nem desmerece as necessidades dos leitores qualificados. E ainda que tudo isso diga respeito apenas ao plano formal, seria muito pouco razoável esperar que essas virtudes não se refletissem sobre o conteúdo e sobre o modo como este é desenvolvido. E novamente Ricardo Daunt não impõe grilhões à sua ambição, debruçando-se sobre dois dos maiores nomes da poesia ocidental do século XX: T. S. Eliot e Fernando Pessoa.
Os grandes temas de discussão ao longo dos ensaios — ou dos diálogos — são o papel da tradição na construção do novo e do moderno, os limites da autonomia individual do criador e do que vem a ser a originalidade artística. Para isso, Daunt foca sua análise não sobre a obra poética dos dois autores, mas sim sobre o que ambos produziram na esfera da crítica, o que pensavam a respeito do fazer poético, do lugar do poeta no mundo e do intercâmbio do mesmo com a tradição que o antecedeu. Essas discussões ocuparão os dois ensaios principais de T.S. Eliot e Fernando Pessoa: Diálogos de New Haven.
No primeiro, Tradição, originalidade e individualidade artística, o debate centrarse-á sobre o pensavam Eliot e Pessoa, por meio de artigos, críticas e ensaios a respeito do lugar e da função da poesia dentro da modernidade. Enquanto Eliot reivindica, desde seus primeiros escritos, a vinculação obrigatória do “novo” à tradição, partindo dos pressupostos de que o artista não atinge seu completo significado sem ser secundado pelos que o antecederam e de que a tradição — que não é uma entidade estanque — estaria morta sem um processo de constante renovação, Pessoa, como no resto de sua obra, apresentará uma visão dividida, dissociada, uma visão que passará por três fases na pena de diversos heterônimos (e não se fala aqui dos heterônimos poéticos). Para Pessoa, ainda o jovem crítico sul-africano, nas suas múltiplas vozes, o original, ao contrário do que pensava Eliot, devia surgir de maneira autônoma, completamente contraposto à tradição.
Na fase seguinte de seu pensamento, negando ainda que haja uma herança ocidental comum, Pessoa propõe a nacionalidade, que a “alma da raça” seria responsável por dar luz ao novo. Registrou na oportunidade o poeta: “A poesia absolutamente original e a poesia absolutamente nacional são expressões interconvertíveis”. À medida, porém, que o autor português amadurece, sua posição se aproximará cada vez mais da de Eliot, qual seja: o indivíduo exerce o papel de renovador, inserido em uma tradição viva (uma tradição supranacional), bebendo de todas as fontes perenes da arte, afastando-se definitivamente daquela sua ideia primeva do artista autóctone, independente, criador a partir do vazio.
No segundo ensaio, Daunt, tendo já estabelecido a importância para os dois poetas da tradição na gênese e na revolução artística, avançará para a proposição mais ousada de seu livro: Eliot e Pessoa estariam diretamente conectados à tradição da poesia metafísica.
Se Eliot expressa claramente esse desejo ao longo de sua obra crítica, não há em Pessoa qualquer menção a esse respeito. Destarte, resta a Daunt, para salvar as aparências, estabelecer a linha condutora que une os dois poetas modernos aos seus antecessores, possibilitando, por meio de análise comparativa, que sua proposição se sustente. Assim, Daunt procura definir o que é a poesia metafísica e que autores estariam filiados a essa corrente que, ao contrário de uma escola ou período literário, atravessa vários séculos, na obra de artistas de diferentes países. Segundo Daunt, “a principal característica da poesia metafísica é a de buscar sempre, ou na maioria das vezes, elevar o sentimento a regiões comumente visitadas apenas por intermédio do pensamento abstrato (p.122)”.
Os principais autores, ao longo do tempo, seriam Dante, Donne e os demais metaphisical poets, Laforgue (poeta sobre o qual Daunt se detém mais longamente, pois acredita ser este o elo perdido na cadeia da poesia metafísica até a modernidade), Whitman (influência confessa de Pessoa) e, por fim, os próprios Eliot e Pessoa. Neste segundo ensaio, mais do que em qualquer outro momento do livro, se faz sentir a força do diálogo proposto por Daunt, o desgastado mas vital conceito da participação do leitor. Graças a essa escolha, a voz do professor, isolado em sua sala de New Haven, vai em busca das reverberações de seu próprio eco, estabelecendo, por conseguinte, um mérito inconteste e cada vez mais raro nos dias atuais: um autor que afirma sua presença, que não nega sua autoridade, que não foge à responsabilidade de abordar os grandes nomes com ineditismo. T.S. Eliot e Fernando Pessoa: Diálogos de New Haven, Landy Editora, por sua franqueza e correção de argumentos, é um desses livros que permanecerá vital enquanto o debate sobre a poesia moderna seguir ocupando os departamentos de literatura das academias e o gosto invulgar dos leitores qualificados.
RICARDO DAUNT . TRIBUTO