Sobre «Danos patrimoniais»

 

AMADEU BAPTISTA


Por Luís Aguiar

«DANOS PATRIMONIAIS» – UMA ANTOLOGIA PESSOAL – 1982-2022)

 

Amadeu Baptista (nasceu no Porto no dia 06 de Maio de 1953), nome incontornável da poesia portuguesa, apresenta-nos esta «Antologia Pessoal» que é, na realidade, a tradução de 40 anos de produção poética sem que se verifique, durante este período, qualquer hiato desmesurado, descuramento da qualidade poética ou até, quiçá, um esmorecimento na linguagem, a mesma que o Amadeu nos habitou desde «As Passagens Secretas», (Fenda Edições, 1982), ou «Maçã», (Editora Limiar, 1986).

Estes «Danos Patrimoniais» são a continuidade de um ofício que o poeta esculpiu na asa do tempo, (in)conscientemente, talvez, para que a verdade se tornasse mito e o mito vangloriasse a verdade que o poeta tornado homem demasiado cedo, desenvencilhou de forma solitária para enfrentar as vicissitudes da vida, mas também os cornos da morte – nunca chifres –, com a esperança de encontrar nesse confronto o encontro de si mesmo, seja enquanto criança que tentava discernir a noite do dia entre duas famílias, (aos 17 meses de vida, a família biológica do poeta, por questões financeiras, «entrega» o seu primogénito a uma segunda família para que o adoptem), seja no limiar da relação da poesia com a morte e por consequência, com a vida. Nesta virtude que é a do homem perceber que é apenas um pormenor, uma mera eventualidade do tempo, é sempre pertinente relembrar o pensamento de Séneca: «Para não temeres a morte, não cesses de pensar nela», e o Amadeu nunca lhe foi indiferente, aliás, chegou a cumprimentá-la com a elegância que os poetas gregos demonstravam, quando esta o quis abraçar.

Não é por acaso que o Amadeu Baptista, no livro «Um Dia na Eternidade», pág. 681, cita Talmude: «Mais vale um dia nesta vida que uma eternidade/ no mundo que se segue», e de seguida expõe os primeiros versos desta «Eternidade» que são, indubitavelmente, muitíssimo esclarecedores: «primeiro sol do outono a abrir-se nos guindais/ sobre as pontes do douro. é isto o que me resta/ quando reinvento o ofício e nada mais/ suporto na dor quotidiana em que me encontro».

Não me é possível falar de «Danos Patrimoniais» sem falar de «Antecedentes Criminais», primeira antologia do poeta, publicada pela extinta «Quasi Edicões», em Abril de 2007, e que reúne a obra poética do autor entre 1982 e 2007. Nesta primeira antologia, o sugestivo título justifica o labor poético, como se este fosse uma sanção penal, por ter cometido um delito, um crime, ou melhor, o crime primordial que é o de contemplar o mundo, a vida e o quotidiano com a beleza do pensamento crítico, porque a maior parte das vezes, atrás das coisas simples escondem-se coisas complexas, singulares, únicas e belíssimas, como escreveu Yannis Ritsos: «Escondo-me atrás de coisas simples, para que me encontres./ Se não me encontrares, encontrarás as coisas,/ tocarás o que a minha mão já tocou,/ os traços juntar-se-ão de nossas mãos, uma na outra».

Perante este «crime» o poeta prosseguiu com a sua pena, a pena figurada, seja como escritor com a pena na mão, seja como transgressor que terá que cumprir a dita pena na vida por ter transgredido questões éticas e morais que é a de ter escrito, a título de exemplo, os sublimes livros «Paixão», (Afrontamento, 2003); «Salmo», (Asa, 2004) e «Negrume», (& etc., 2006).

Depois de ter cumprido a pena, (há sanções que nunca são cumpridas na totalidade, seja por infortúnio ou porque o amor, decididamente, nunca deixou de ser um sentimento que, por excesso, deveria metamorfosear-se em conhecimento, uma ciência palpável para que a humanidade nunca mais precisasse de Deus ou do Diabo para viver o pouco tempo que a vida ainda permite), Amadeu Baptista no seu longo e velho caminho que é o da infância, reencontra, volvidos 40 anos de produção poética, o seu prejuízo patrimonial. Reencontra na poesia, como só os grandes poetas são capazes de reconhecer, a herança que a própria poesia desferiu na carne e no sangue. Ao fim de 40 anos o poeta reforma-se do silêncio, reforma-se da dureza da pedra (leia-se perda), reforma-se da natureza imaterial das coisas, mas a sua reforma não é mais do que um conjunto de bens inúteis, crenças que a sociedade vai perdendo, transmitidos por herança, e que são apenas papéis brancos em que o poeta continua a sua saga, como se o poema fosse agora um só, demasiado longo, com vida própria, demasiado acelerado, com movimento sôfrego e que instiga à memória. É aqui que se verifica o paradoxo, enquanto o poeta padeceu, recentemente, de um acidente vascular cerebral (AVC) que o debilitou, o poema ganhou corpo, carne, solidez e virtude, atrevo-me a dizer que foi o óvulo que fecundou o sémen, e agora, esse mesmo poema, unificado, vive em toda a sua glória danificando todo o património do poeta que é o seu corpo, a sua memória, a sua finitude.

«Danos Patrimoniais» não é uma antologia de poemas, é um só poema, um poema-vida, com sangue para tingir a rosa, já que «a rosa nasce para se dividir», como escreveu Fernando Guimarães, e as pétalas dessa rosa, ora azuis, ora brancas, são as páginas desta vida desaguada (o vocábulo correcto é «ensanguentada») em papel – 900 páginas precisas, brancas, branquíssimas, exangues, para que nelas o suor transformado em tinta fosse como a neve, como registou o Amadeu no singular poema «Boris Pasternak escreve os poemas de Jivago», (pág. 772): «Escolho a neve. E, no entanto, poderia optar/ Pela transcendência, ou pelo caminho que vai dar/ À floresta, ou até mesmo pelo alvoroço que agita/ O coração quando, ao longe, se vê alguém que olha/ Para trás, que olha insistentemente para trás».

Saber olhar para trás é, de certa forma, compreender a natureza da fonte e perceber o percurso que o rio tomou e em qual foz irá desaguar os detritos da linguagem, do diálogo em que o poeta estabeleceu com o homem que o alimenta. Há, de facto, uma intimidade entre ambos, homem e poeta, mas que a poesia separa – não é por acaso que Rimbaud questionou-se: «Qui suis-je?» e concluiu afirmando «Je est un autre», nunca «Je suis un autre», é nesta convergência em que o homem pensa ser o poeta e o poeta pensa ser o homem, é aí que a pergunta ganha uma certa relevância, o poeta que escreveu «As Passagens Secretas», em 1982, é o mesmo poeta que escreveu o último poema desta antologia intitulado «Eterno Retorno»? Não sabemos, e, creio, nem o próprio poeta terá uma resposta definitiva para esta questão. O poeta escreve poesia, mas a poesia também (d)escreve o poeta, nesta redundância podemos sempre encontrar lugares olvidados que o Amadeu Baptista aprendeu a iluminar, tais como a «Poeira Escura», a «Luz Possível», ou até o «Último Outono», todos eles com títulos que nos remetem para o espectro da luz visível, mas a poesia também o ensinou a admitir que a luz pode ser extinta em escassos segundos, e que o silêncio, em última instância, terá sempre como finalidade expor a violência do discurso.

Os primeiros versos desta antologia têm uma perfeita simbiose com os últimos versos da mesma, aqui se confunde a fonte com a foz e a foz com a fonte, há uma certeza, a água é a mesma, só o tempo se metamorfoseou no seu «Caudal de Relâmpagos»: «Corremos pela praia com a nossa nudez porque deixamos/ algures os mantimentos escassos/ de que a nossa tristeza se mantém». (As Passagens Secretas, 1982, pág. 11); «Longínquo no eterno retorno, um eco em que a ternura é redonda/ E a solidão não existe, em que se corrige a fortuna, um eco de luz,/ Um eco de sombra, um eco de cavalos que se aproximam sobre o céu nacarado,/ Fluindo e refluindo, fluindo e refluindo no eco de cada passo». (Eterno Retorno, 2022, pág. 900). Entre os primeiros versos desta antologia e os últimos, Amadeu Baptista envelheceu «Um Pouco Acima da Miséria», qualquer poeta pode enfrentar a miséria – muitas vezes, demasiadas vezes, a pátria esconde as mãos aos filhos –, mas em nenhuma circunstância este poeta será um miserável, «a poesia é coisa demasiado séria, quem a escreve paga-a muitas vezes com a vida», como me confidenciou, certa vez, o Amadeu, num dos seus ímpetos de genialidade.

Uma antologia nunca está terminada, é perene, enquanto houver leitores – «termo de cumplicidade almejado» –, como escreveu Amadeu Baptista, a antologia não se cumprirá como definitiva, um poeta poderá estar condenado ao olvido, de facto, mas nunca à morte. A poesia de Amadeu Baptista, como referiu Henrique Manuel Bento Fialho no posfácio desta antologia (pág. 904) «desconcerta-nos e desarruma-nos», compete-nos, enquanto leitores, continuarmos desconcertados e desarrumados perante a poesia de Amadeu Baptista, porque a sua força é a linguagem do mito, é a construção de uma linguagem com Deus, um Deus que só ele conhece, e que nos dá a conhecer, um Deus que lhe permitiu arquitectar o poema enquanto igreja, santuário, devoção, e esse Deus reside, ainda, nas suas mãos frias.

Confirmada a consagração do poeta, recorro a um outro, tão grande, mas tão pequeno na sua pátria, para descrever de forma sucinta estes «Danos Patrimoniais»: Jorge de Sena, no livro «Metamorfoses», escreve sobre a «Nave de Alcobaça», os últimos versos poderiam ser a descrição exacta desta antologia e mais nada acrescentaria: «Rosa e tempo./ Escada horizontal. Cilindro curvo./ Exemplo e manifesto. Paz e forma/ do abstracto e do concreto./ Hierarquia/ de uma outra vida sobre a terra. Gesto/ de pedra branca e fria, sem limites/ por dentro dos limites./ Esperança/ vazia e vertical. Humanidade».

Luís Aguiar |


O autor salvaguarda o direito de redigir esta resenha crítica ao abrigo do anterior acordo ortográfico.


Revista Triplov . Dezembro de 2024

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