AMADEU BAPTISTA
Por Fernando Cabrita
O meu primeiro contacto com a poesia de Amadeu Baptista data de finais de 2007, se não estou em erro. Apesar de já ter ouvido falar dele, foi nesse ano que encontrei numa livraria — já nem sei em qual — a sua antologia Antecedentes Criminais, que reunia poemas até essa data, 2007; antologia que li com o espanto de quem encontra, no panorama literário desse início de século, uma voz nova, poderosa e diferente, que já vinha das décadas anteriores.
Logo no ano seguinte, 2008, por ocasião dos 200 anos da elevação de Olhão a vila e da expulsão dos invasores franceses da então pequena comunidade piscatória do Sul, foi anunciada a instituição por Olhão do Prémio Literário João Lúcio; e o júri constituído para avaliação das obras a concurso foi integrado por mim, por Nuno Júdice e pelo Prof. Pedro Ferré.
Das dezenas de publicações concorrentes, a escolha da obra vencedora não ofereceu hesitação. De modo unânime, os três membros do júri decidiram ser “Poemas de Caravaggio” o livro que reunia os requisitos essenciais de qualidade literária – no caso altíssima – para que a atribuição do Prémio João Lúcio fosse a mais justa e a mais verdadeira.
Relembro-me: vínhamos nós três, antecipadamente à reunião do júri, pessoalmente já com uma decisão individual, que cada um para si próprio tinha tomado, mesmo sem conhecer a opinião dos demais: este livro, Poemas de Caravaggio, era aquele a quem a distinção do Prémio deveria caber por inteiro. Pelo que ao anunciarmos aos outros o nome que, na opinião de cada de nós, deveria ser o do premiado, sentimo-nos contentes da coincidência; e a unanimidade foi natural, espontânea e assim decidida sem qualquer oposição: todos havíamos chegado, individual e conjuntamente, e pelas mesmas razões de apreço estético e literário, ao mesmo nome: Amadeu Baptista.
De então para cá, com a regularidade que me foi possível, tentei ir acompanhando a obra de Amadeu, e recordo desses anos Os Selos da Lituânia, conjunto de poemas que me confirmaram que os Poemas de Caravaggio não eram afinal, um livro isolado onde um alto grau poético se atingira, mas sim um passo de uma caminhada literária profundamente estruturada e encantatória.
Agora mesmo, em Fevereiro de 2017, estava eu escrevendo uma recensão sobre os dois livros de Amadeu Baptista de 2016, ambos publicados pela Lua de Marfim: Fragmentos de Veneza e O Arco Sírio; eis que recebo a notícia da publicação de nova antologia, desta feita uma recolha pessoal em que o autor reúne poesia de 1982 a 2017. Como ambas as obras de 2016 estão contempladas na antologia recente, amplio o que sobre elas escreveria; e aprecio a poesia de Amadeu no seu conjunto assim mais vasto de uma obra em progresso, neste continuum poético que vem, de há mais de 30 anos, marcando tão positivamente as letras portuguesas.
Diga-se desde logo do carácter eminentemente ético desta poesia. A lira de Amadeu Baptista, e digo lira porque ali está, sempre, todo o lirismo em flor ainda quando dilacerante ou revoltado, vinca-se sobre uma linha de permanente insubmissão, quer aos ditames da poesia “oficial” amaneirada e que nada põe já em causa – portanto, aos ditames de uma estética conformista, politicamente asseada e inócua –; quer às regras insensatas e insensíveis de um mundo esvaziado de valores, onde cada cidadão se reduz à qualidade de contribuinte, de leitor vago, de espectador, de produtor, de ser dispensado de pensar ou de agir fora dos quadros mentais e físicos preestabelecidos, forçado ao silêncio insolidário, à solidão acompanhada, convertido numa criatura em que se lhe inscreve na pele esta doença de ser mero objecto nas mãos de outros (de que é paradigma esse pungente poema de largo alento, “As Danações”: uma doença irreconhecível./um relatório condensa, em poucas linhas,/ uma história comum, sublinhando/ que pela solidão perdeste tudo).
Diga-se depois da fortíssima elevação estética desta poesia, sem artifícios ou jogos, e sem recurso a fórmulas de moda ou de fácil aceitação. Seria fácil, a quem como Amadeu dispõe de tão largos recursos linguísticos e tal domínio da História e da emotividade, fazer-se benquisto dos papas do mundo literário artificial que, em jornais e palcos noticiosos, impõem — a descargas de amiguismo — cânones de ocasião e génios de encomenda. Bastaria servir-lhes, aos papas, a dose certa de politicamente correcto, o pataco de conveniência social e de moderação e morigeração de temas e desassombros. Mas não. Amadeu fornece, pelo contrário, uma íntima e feroz linguagem poética carnal, sóbria quão longa, quase inconsútil no seu devir de anos, sempre recusando esconder as feridas, as chagas, as torpezas de um mundo que nos querem fazer crer perfeito mas que a voz do poeta denuncia cada vez mais vazio de justiça, de liberdade e de pulsão criadora. Amadeu elaborou assim, nesse registo de crua frontalidade e ao longo dos anos, uma discursividade onde fulguram as melhores imagens da criatividade e da beleza. A sua imagem de marca são os poemas de largo hausto, onde porém a largueza da exposição não escurece a delicadeza da filigrana imagética, nem o fulgor de cada palavra exacta por si e pelo espaço que ocupa na frase.
E não se trata de uma fórmula mecânica desenvolvida com artifício, como se percebe ser em tantos outros poetas que procuram traçar caminhos similares. O que nos outros rapidamente se constata ser defeito, em Amadeu é virtude. É essência. É a respiração inata de um poeta em que as palavras cobram sempre sentido e presença; em que as palavras vivem por si, irrepetíveis, exactas como esses alexandrinos que Cesário deitava ao papel. Em Amadeu, a narratividade é a consequência lógica de um discurso que diz e se diz, ao passo em que se enuncia. Um discurso absolutamente natural e necessário.
Como assim, natural e da mais viva essência poética, não cansa: desperta. Não esgota: anuncia. Não repete: acentua. Não vive de eufemismos, que pudesse dar por imagens compostas. Ao revés, transporta a dura realidade para as páginas; mas fá-lo sempre com a mais alta cintilação das luzes em que a poesia brilha. Essa é a alma desta poesia que reelabora o conceito do Homem no Mundo e o papel da palavra na literatura. Um poema vivo, urdido em palavras vivas. Uma poesia que não esconde a vida atrás do poema. Dá-a, a quem a queira assim perceber, vestida pela tessitura mágica da palavra poética; pois sabe que “a vida é mais terrível que um poema/ e muito mais atroz a crueldade “(O Arco Sírio)
Há depois que realçar o carácter autobiográfico que se depreende da obra tomada na sua globalidade. O poeta canta-se, no discorrer do canto. O que alguma boçalidade crítica entende por exacerbamento do ego (desconhecendo ou querendo fazer esquecer que toda a grande poesia é a experiência pessoal dos seus autores, trazida ao papel numa dimensão pessoal que ali se torna universal – Vi os melhores cérebros da minha geração…; Canto as armas e os barões…; Não sou nada…., assim começam os seus grandes poemas Uivo, Lusíadas ou Tabacaria três dos enormes poetas do mundo…), isso que a boçalidade despreza, é porém a marca de água de uma poesia que parte de si e do seu autor para fazer a comunhão com a humanidade; e que se narra a si, pessoa e indivíduo, e às suas vivências, para delas extrair uma visão colectiva. Ensinou-o T.S. Elliot: The great poet, in writing himself, writes his time.
Amadeu Baptista expõe esse seu pendor autobiográfico sem rebuço, porque, como diz e assim o leio e interpreto num dos poemas de O Bosque Cintilante, “um homem/ uma sombra,/ não poderiam respirar sem essa marca/ luminescente a incendiar os passos.”
Estamos ante uma poesia que percorre a vasta paleta dos sentimentos e das emoções. E que o faz sem esforço, abrangendo no mesmo amplexo literário a complexidade das relações interpessoais, os enigmas, a contínua polaridade da vida e da morte,o mistério do amor, as múltiplas cambiantes da existência humana na sua poliédrica absurdidade: a morte da avó, a recordação do outono de 89 para toda a vida, as adolescentes que passam aos gritinhos, todas essas experiências que se insculpem na alma e na imaginação do poeta, ora gráficas, ora etéreas, uma cidade sem mar em que procura uma praia, um labirinto de pântanos, o fascínio pelos seios recortados das revistas de cinema, a figueira de Barbaria seca por sua expressa ordem, a cinza de corpos a subir ao céu de Auschwitz, pequenas estrelas traçadas a carvão, todo esse mundo explanado e a espraiar-se por quase meio século de escrita.
Um mundo que interroga o tempo (de novo volto o rosto para o início/ uma palavra instiga a que a memória / retroceda na mágoa e à mágoa volte/ o que em memória de ti por mim foi feito). E sempre essa certeza tão subliminarmente pessoana “de não haver qualquer certeza, de djerba a padron”.
Eis pois uma poesia que “sonda o terrível”, que se faz cortante – a voz é um punhal, dirá o poeta em Salmo –, que reordena o caos onde parece haver cosmos e revela o cosmos onde parece haver caos. E de todo este caudal de relâmpagos – designação tão especial que foi escolhida para esta nova antologia – extravasa uma luz que percorre as artes várias: a música, a pintura, a literatura, efabulando-se de pessoas, de autores, de telas, de histórias de séculos, para que “possa haver um sentido em tudo à minha volta, não mais do que o sentido de estar perante Deus / a ouvir sortilégios e a entregá-los.”
Um grande livro. Uma grande recolha, na qual se confirma a grandeza e a magnitude de um dos poetas cimeiros de Portugal nesta dobrar dos séculos XX e XXI.
Fernando Cabrita, Olhão, Maio de 2017
Revista Triplov . Dezembro de 2024