Sobre as máscaras de Floriano Martins

 

FLORIANO MARTINS
Tributo


Sobre as máscaras de Floriano Martins
Por NICOLAU SAIÃO


Quando se trata com máscaras, procura-se ir para além do lugar comum: máscara como disfarce, como alegoria, como simulação teatral? Bem te conheço, ó máscara! é aliás locução conhecida, inscrita num cenário ou de festa ou de período carnavalesco mas que contudo não esgota o significado que a máscara pode ser ou inevitavelmente é em circunstâncias específicas. E muitas vezes tal asserção transtorna os imaginários por esta razão muito simples: a máscara é uma projeção de nós nos outros, havendo todo um backgroundhistórico que nos impele numa determinada direção, pois de acordo com especialistas a máscara começou por ser encenação ritual no encalço da imitação do rosto dos deuses ou do que como tal se tomava. E depois, com o correr do tempo, esvaziado que fôra esse sentido primevo, passou a ser uma simulação de cariz sacerdotal, dentro dum sagrado já perdido enquanto visão imanente ou dependente dum real que se contemplara.

Ultimamente, neste nosso tempo dessacralizado e filho dum inconsciente coletivo ou dum subconsciente forjado pelas publi-imagens, ou imagens de substituição, multiplicaram-se as fantasias como por exemplo as provenientes da cultura de massas ou cultura popular assim chamada. Por exemplo as fantasias à Batman que, nesse caso, são a face normalizada e em versão cinéfila dum dos mais antigos mitos do Homem revisitado pelo marketing hollywoodesco: o vingador que sai das sombras mas é portador da luz, o anti-minotauro que, por razões diversas e muito próprias (megalomania positiva, adesão a monomanias justiceiras animais, fervor pelo insólito) resolve colocar os seus poderes de máscara poderosa ao serviço da comunidade ferida pelas prepotências diversas. Que é como quem diz: uma espécie de ativista imerso em penumbra planejada que, em vez de transportar consigo soluções sociais permitidas, políticas, de cidadania legitimada, traz para o mundo da razão a força dos seus músculos e o engenho da sua perspicácia num universo societário e conceitual paralelo mas que se torna benéfico e reconfortado (reconfortante?). E a quem a comunidade cotidiana, sem máscara ou com a máscara transparente dos direitos frente aos díscolos, aplaude com ardor, enlevada pelas façanhas desse transformado cuja missão é transformar/modificar sem se dar a conhecer no seu contexto de personalidade civil.

Nesta perspectiva particular a máscara propõe pois o indizível, o impossível aos que não dispõem desse artefato que pressupõe poderes mais vastos e eficientes. Sem a sua máscara, no caso vertente, o homem-morcego não passa dum argentário vulgar, algo excêntrico e snob mas apenas dono de um lirismo um pouco ingênuo que o aproxima do diletantismo de filho-família. Mas assim que assume a máscara o personagem muda literalmente de figura…

Sendo uma clara face de substituição, mesmo de transfiguração como ficou sugerido, a máscara é igualmente uma projecção dos nossos continentes submersos, das partes demasiado sugestivas e reveladoras do duplo que se acoita nos nossos compartimentos mais recônditos e que através dela é acordado para as actuações que doutra forma não teriam ensejo de se manifestar. Através da máscara que nos vela e nos esconde, paradoxalmente mostramos então a parte oculta da nossa Lua pessoal. Ao mesmo tempo que nos disfarça, a máscara revela/desvela: o que somos intimamente ou, dizendo doutro modo, o que sem máscara nunca patentearíamos à realidade circundante e coletiva.

E sendo o teatro (ou o theatrum mundi), como é, a assunção plena da máscara, natural se torna que todos sejamos um pouco actores, ora num plano de recusa ora no da aceitação de uma certa estratégia de saber viver numa sociedade em que as mais graves encenações se apresentam contemporaneamente de forma aberta mas num universo em que o grosso da população praticamente perdeu a privacidade na polis em que os donos da realidade fingem que tudo continua a existir normalmente. (Quem não sabe que, hoje por hoje, o reino dos que mandam no cotidiano é uma completa mascarada?).

Nesta conformidade, o grande e real perigo que nos espreita é que a máscara se nos cole à cara, fazendo com que o imaginário encenado, para uma hipótese mínima de defesa, passe para o lado de lá do palco.

Que é como quem diz: para o lado de cá da existência em sociedade…


Floriano Martins (Brasil, 1957). Poeta, ensaísta, editor, tradutor. Dirige a Agulha Revista de Cultura e o selo ARC Edições. Colaborador das revistas Altazor (Chile), Matérika (Costa Rica), La Otra (México), Blanco Móvil (México), Triplov (Portugal) e Acrobata (Brasil). Estudioso da tradição lírica na América Hispânica e do Surrealismo.
Contato: floriano.agulha@gmail.com.
Visite:
Agulha Revista de Cultura:
http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com

Escritura conquistada:
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2021/01/escritura-conquistada-poesia.html
Atlas Lírico da América Hispânica:
https://revistaacrobata.com.br/atlas-lirico-da-america-hispanica/


revista triplov . série gótica . primavera 2021 . índice