Sobre a beleza

 

AMADEU BAPTISTA


Apresentação do livro «Sobre a Beleza»
Por Margarida Santos


Espaço Mira Fórum, Porto . 27 de Setembro de 2024


De novo me confronto com a envergadura do poeta AB, sem que o poder das palavras me socorra para o apresentar na sua devida dimensão. Pensei que não me atreveria a mais um texto escrito, que talvez pudesse discorrer livremente sobre esta sua obra, entendi que era possível pensar em voz alta. Dizer o quê, se já tudo escrevi antes? Se, logo no título, esbarro com o meu próprio conceito de beleza, que é harmónico e advém do que me toca profundamente no coração e nos olhos, e me remete para a impossibilidade de uma definição? Ao abrir o livro parei de novo: – o quê? e prossegui, sem interrupção. Onde estará a beleza nestas linhas, a não ser na alma inquieta, irreverente, mordaz e pacífica do poeta? Porque quererá ele enaltecer o pessoal que eficientemente o tratou na sua tão desconfortável estadia hospitalar? Porque foi ele sugar a beleza aos insondáveis prodígios da mente? Porque quererá ele alertar todos aqueles que se julgam imunes e imortais para, no texto se reverem na humanidade de cada estrofe ou verso, em cada adormecimento, em cada exame, em cada intervenção, em cada acto básico, em cada reflexão, em cada fúria aturdida, em cada demência assistida, em cada morte presenciada? Através dele todos sabemos que, ao ser atingido o corpo e não a mente, tudo vem à cabeça quando nos desprendemos da vida e a morte nos cerca. A cabeça do poeta revela-se uma máquina maravilhosa quando o seu corpo deixa de lhe obedecer. E é esta a beleza que o livro encerra.

 

I -Sobre a Beleza

O autor escolheu, para abertura, um aforismo do poeta William Carlos William, que assim remete para a escolha deste título… «é o rigor da beleza que se procura. mas como encontrar a beleza se ela está encerrada no espírito sem qualquer possibilidade de protesto?».

Perante este título interrogamo-nos sobre a beleza. Porque cânones se rege? Como saber o que é? Qual a métrica a usar numa palavra excessiva, comumente usada com diversos sentidos? A poderosa carga da palavra é inexplicável como tudo o que o espírito encerra (tal como está escrito na citação primeira), a beleza na sua perfeita particularidade estará algures no nosso ser singular.

Ao sugerir a entrada numa poética da beleza universalmente aceite, o título leva-nos ao engano. Logo no primeiríssimo instante, ao folheá-lo, descobrimos que a beleza se agrega a um estado de doença cardíaca, de sobrevivência aflitiva, a um ambiente de insuportável sofrimento físico. No livro, encontramos fortes indícios e referências da beleza, ícones conhecidos, como a Vénus de Milo em que o autor reflecte, (como seria se tivesse braços?) ou a Vitória de Samotrácia (seria bela se tivesse cabeça?). Alavancado pelo poder da palavra poética, a um só tempo realidade, mente e imaginação, A permite-nos penetrar no real objecto e subjectivo da vida, no sonho construído e no sonho sonhado, nos arquétipos da filosofia clássica e na linguagem popular e, de um modo aparentemente instintivo, vai partilhando tudo. O que ele realmente faz são posicionamentos concretos, regressões e progressões num tempo muito escasso. Faz sobretudo um enfoque exaustivo do real, com reflexões deveras genuínas sobre a espécie de beleza que vê nas coisas (…) «a beleza, o que é a beleza? um sonho que não se sonha», e as afirma, (…) a sensualidade é uma forma de beleza excepcional,» (…). Lembra a beleza de certas mulheres consagradas pela arte, pelo cinema, pela dança. Faz citações assertivas de escolhas criteriosas dos vultos que a cultura lhe inculcou: poetas, artistas, filósofos, pensadores, personagens marcantes de diferentes culturas, fontes em que foi bebendo para alimento da sua extraordinária sensibilidade e fermento possível para a vida dura que lhe calhou viver. Nunca deixa por referenciar os seus eleitos, os que o pensamento lhe devolve como os seus mais queridos conhecimentos sensitivos e intelectuais, uma galáxia de autores que surgem a propósito das descrições que faz numa poesia que nunca falta à verdade. Contextualizados no poema, são sempre citados em excertos que acrescentam valor à sua poesia. Um valor que tanto pode ser teatral, como literário, artístico, filosófico, social ou poético, num caudal de histórias entrançadas em alusões que nos enchem a alma com grande beleza. AB faz deste testemunho uma cápsula do seu entendimento sobre a toda a beleza que advém do ser, do existir, do estar, do criar, enfim, se quiserem, do viver.

Leitura de um excerto, pág. 32/33, por David Cardoso

(…) «a beleza

é o que transfigura o real em realidade, o que levou

 a que cézanne pintasse, com insistência frenética,

 a mesma montanha para que a mostrasse sempre diferente,

 ou a que monet fizesse da luz outra luz nas suas telas,

 para que na luminosidade se encontre o universo paralelo

a que todos pertencemos, ou munch tivesse mostrado

o grito inaudível em que tudo se redime e se consome,

se produzido como a arte que advém do sangue que consta

no coração, que numa coisa só se fundem o presente

e o eterno, a alma e o espírito, o visível e o invisível,

o mar, as nuvens e o sol – que o mel das sílabas repercuta

o exímio e o grandioso, as breves pancadas na porta

do paraíso, que se mostre lilith e que diga ao que vem,

e porque, por que se lhe emaranha a insubmissão

nos cabelos, por que pragueja, por que, mais do que vento,

é tempestade, a desafiar a divindade: como um espelho,

um livro aberto. (…)

 

II- Sobre o miolo 

Este longo poema autobiográfico de 89 páginas, numa composição de cinquenta estrofes, cada uma com quarenta versos, oferece ao leitor uma narrativa colossal.

Tal como acontece nos dois anteriores livros, «Um dia na Eternidade» e «Último Outono» que com este fazem uma trilogia, o fôlego intenso da escrita não permite ao leitor qualquer interrupção. Aqui somos colhidos por uma situação que nos interroga sobre sermos ou não sermos mortais. Em sofrimento, em precariedade física, em dependência, em solidão, o poeta é imaginariamente visitado por muitos, enquanto chama todas as coisas pelos seus nomes e escreve veementemente, duramente, numa linguagem directa verdadeira, visual, usando termos diversos desde os mais leves aos mais impróprios ou agressivos. Estamos perante uma poesia que nunca falta à verdade dos factos, à sua verdade pessoal e à verdade dos que o rodeiam e tratam. O poema começa após ter tido um acidente vascular cerebral e a sua entrada na urgência do hospital, narra o que vai acontecendo nas três semanas de internamento e termina com a sua saída para um centro de reabilitação.

O acontecido ocorre em diferentes vertentes da azáfama hospitalar em situações críticas ou decorrentes da anormalidade afim à estadia, retratando com crua nitidez as situações casuísticas do seu estado e o dos companheiros de enfermidade, de ocorrências inesperadas. O centro nevrálgico da narrativa é a unidade de AVC, a enfermaria, o quarto, a cama, as salas de exames. O mote narrativo desenha-se entre a vida e a morte, a perplexidade e o medo de morrer, a luta pela sobrevivência, a luta desesperada pela recuperação daquele que ele era antes da fulminante ocorrência e, face à possibilidade da morte que se insinua, resiste. Ele o diz, logo ao começarmos a leitura: «ontem estava bem hoje nem por isso».

Conjuntamente com o poeta, o leitor faz exames de diagnóstico, RX, tomografias axiais, intervenção cirúrgica, com ele galopa com a agilidade veloz do maqueiro pelos corredores, é prontamente assistido pelo pessoal clínico por médicos, enfermeiros e auxiliares. Através dos seus olhos vê os pacientes que vão entrando, saindo, morrendo, olha através do vidro da grande janela, ouve as notícias no plasma da enfermaria, é servido rotineiramente pelas copeiras. Neste cenário crítico de grande crueldade e desolação, o leitor comunga o sentido cerrado do espírito a acudi-lo nos mais ínfimos detalhes. Pasma face à recorrência da beleza em múltiplas divagações, alusões à vida vivida ou que desejaria ter vivido. «lamento não ter ido visitar malta, como tanto gostava que tivesse acontecido, não perderia em la valleta a ‘degolação´de s. joão baptista’ que Caravaggio pintou em homenagem a esse meu parente tão longínquo, esse que não sei se tinha a correr-lhe nas veias o sangue do meu sangue, mas sei que se perdeu, exactamente como eu me sinto perdido neste sacrifício involuntário, nesta perdição que não explico» (…). Ocorrem-lhe pensamentos, observações irónicas e sarcásticas, e… sorri. (…) «tudo está normal no reino da anormalidade, os pacientes irrepreensíveis nas suas camas, quer dizer, as crianças nos seus berços» (…).

Absolutamente essencial para a beleza ocorrer é o cenário/palco onde, com um poder visual incrível, são teatralizadas as cenas, uma após outra, sem interrupção ou pausa, e através delas o que a cabeça lhe devolve e acrescenta ao seu estado físico vulnerável e frágil, lembranças ciclópicas de vivências múltiplas, da infância e da mulher amada, lamentos do amor perdido, retratos da velha octogenária alucinada na enfermaria e da morte de quem morre na cama ao lado da sua. Percorremos a clara oralidade das cenas aos solavancos, sabemos tudo porque o poeta canta e a sua voz conta-nos tudo. Tudo vê, tudo observa, tudo agradece, tudo sente, tudo evoca, tudo lembra, tudo memoriza, para escrever na tela da sua enormíssima sensibilidade. Tudo é assim porque acredita que no fim a poesia o irá redimir de todos os tormentos por que passa. Determina-se a resistir afirmando, (…) «eu hei – de entrar na morte com os olhos abertos, não vim aqui para morrer, quero voltar para casa,» (…).

 

Leitura de um excerto de 24 versos da pág.45, por David Cardoso

(…) perante a vulnerabilidade

a escolha é como um elefante na sala, todos somos passageiros

involuntários da barca de caronte, e os deuses, sempre tardios,

confundem a barca com as estrelas. Entretanto, a noite caiu,

o que é uma coisa boa para tanta ansiedade, com a noite

chegam as estrelas e eu quero apoiar nela a minha cabeça

e pensar em ti como se não existisses, as sombras passam

no ar, amontoam-se nos quatro cantos da enfermaria.

como o mundo é pequeno e vulgar, nem concedeste

que nos despedíssemos, a memória que o diga, as minhas células

ardiam só de sussurrar o teu nome, e os teus interditos, chegavas

ligeira para partir mais tarde, enchias-me as pupilas, a boca,

eras a sagração da primavera nos piores dias do inverno,

arredondava as mãos pela tua paixão, conhecia as estações

do amor e os seus apeadeiros, alcançava o refúgio clandestino

numa acrópole de pedras e de mar, esse lugar onde o desespero,

mais do que um destroço, é um despojo, património imaterial

de pequenos quotidianos dos que não desistem e dos noctívagos.

`não é ofício do poeta narrar o que aconteceu e, sim, o de representar

o que poderia acontecer`, diz aristótoles, na poética. assim será,

 

mas o que fazer à palingenesea, aos dados do real, aos fetos

que ornamentam o vaso e as suas descolorações? o que escrever

sobre o que tosse, o que chora, o que pragueja? não basta

roubar as beterrabas é preciso também ir cozinhá-las? (…)

 

III- Do Testamento 

A dimensão autobiográfica desta poesia surpreende pela pujança e rigor tanto descritivo como plural, em diversas situações de conflito com o seu próprio corpo. O AVC como pretexto da passagem do testemunho da sua poesia já é, per si, um sinal de intemporalidade, a façanha consiste aqui na apropriação de palavras temporais de uso restrito como soro, cateter, tubos, drageias, aparadeira, maca, copeira, enfermeira, auxiliar, médico, desmaio, pacemaker, e usá-las descaradamente como objectos com imanente força poética.

Perante a contínua possibilidade da morte vai sendo urdida uma teia envolvente com desvios físicos, abaixamento de tensões e aumento dos açúcares, incapacidades várias que o levam a construir imagens marcantes. O gesto recorrente de, em momentos cruciais, meter a mão no bolso do pijama, procurar o telemóvel, digitar um número e ouvir uma voz que diz «o número para o qual ligou não se encontra atribuído», um gesto que se repete a compassos intermitentes, se vai repetindo pelos meandros da sua aparente invisibilidade (é um paciente entre muitos e todos requerem cuidados) e o leva a agarrar-se com força às palavras para se sentir vivo. No forro de uma solidão povoada de cismas e pensamentos cruzados, vai construindo mentalmente a ideia de que deve a vida a quem o trata com seriedade e desvelo, recusando-se a entregar o corpo à morte, na mesma medida em que se refugia num constante enigma espiritual (…) «não é a morte que nos mata, mas o tempo que nos destrói, para que a vida continue, displicente e atroz» (…).

O poeta é um homem perplexo no seu todo físico-espiritual que, tendo sido saudável, vai sendo confrontado com aquele outro doente que tenta, para sobreviver, desvendar o sentido do que lhe aconteceu. De vítima passa a testemunha de algo muito perturbador, que o incentiva a escrever um poema pleno de humanidade e o conduz a deixar um testamento, no seu próprio dizer: (…) «tenho um longo poema para escrever, que há-de ser uma espécie de testamento, e se nada tenho para lhes deixar, deixam-me eles o júbilo de terem tratado de mim». (…). Sem dúvida que, em «Sobre a Beleza», estamos perante um livro-legado do viver aflitivo de um homem só entre pares de infortúnio, do sofrimento uno e partilhado, do seu drama que, só não acaba em tragédia porque além da sua força de vontade em resistir foi bem tratado pelo SNS e por isso coloca a sua vida numa taça que, em ofertório, levanta com prodigalidade e gratidão.

Digo eu que, sem sofrimento e sem grande provação, a arte dificilmente acontece e este contexto propiciou que AB criasse uma obra ímpar, de onde extravasa toda a beleza da poesia, sendo que é com estes ingredientes que se escrevem obras-primas.

 

Leitura de um excerto de 12 versos da pág. 81 por David Cardoso

(…) . sonhei o que bastasse sobre a beleza,

vi uma seleccção de telas de vermeer, assisti a um bailado

no bolshoi, fui a um concerto de stravinsky, degustei um bolo

de aniversário magnífico – ah, a beleza é o inexprimível

que se pode nomear. de excessivo só vi os mortos que me acompanham,

o último que passou numa cadeira de rodas embrulhado

num lençol com as insígnias do hospital, ia claro, incerto

e concludente, como se esperasse voltar à vida assim que fosse

entregue aos que teve por seus, gente que o há-de chorar

 

ao arrepio da beleza e das areias que se acumularam na estrada

por que passámos e no sentido que o sem sentido de tudo

nos destina, esta voz, este murmúrio, este rasto de fonte. (…)

 A vida é isto e não há como fugir-lhe: um corredor para a morte, sempre à espreita. A postura revelada, face a esta inexorabilidade vital, é a de tirar uma ilação positiva de todo os malefícios de que a vida é recheada. Ao criar metáforas que vêm a cena a espaços, acabamos por ser solidários com elas. Nem o porto-riquenho mafioso que, anunciando o fim da linha ao apontar-lhe a arma à têmpora aperta o gatilho, nem o número por ele digitado estava atribuído, nenhum deles dá hipótese à morte, porque o poeta soube agarrar a dádiva da vida tendo realizado que a morte só nos chama quando chega a nossa hora.

 

IV- Da fotografia 

Compõe, acompanha e completa o poema, um conjunto de fotografias a preto e branco de AC, fotos de inegável qualidade artística e cénica que, no conjunto do texto, provocam calafrios sucessivos.

Não pretendendo ser, nem sejam ilustrativas, as imagens escolhidas pelo autor conjugam bem a densidade polivalente, luminosa e sombria da escrita. Adensam a pluralidade da beleza, também ela captada com maestria, pelo olhar atento por detrás da câmara.

O olho agudo, acutilante e sensível de AC capta diversos tipos de arrojo, de vitalidade e de movimento, sendo em simultâneo documentais e de resistência, o que prova a harmonia e a sintonia que existem entre elas e as palavras do poeta.

Com diferentes cliques e de modos diversos, apresenta uma leitura multifacetada da natureza, do tempo e do humano, suas latências e feridas. Folheamos e vemos fortes movimentos e pujante energia nos corpos, nos rostos transfigurados, nos detalhes ou em conjuntos estéticos de ballet e outros. Penetramos em brechas nos muros e nos rasgos nas pedras, nas aberturas em jogos sugestivos de luz e sombra, nas tempestades e texturas coadas pela névoa, na luxúria sensual do corpo feminino.

São muitos os sinais da beleza que aqui encontro. Um tempo distorcido nos ponteiros do relógio, uma encenação balética, uma mulher abandonada, um rosto ferido, um torso macerado Seguem a par de impressionantes alegorias à intemporalidade, transmitidas em simultâneo, por exemplo, com os reflexos na janela de uma carruagem em movimento, onde segue uma figura sentada que, ao passar na estação regista a espera de alguém apeada na plataforma, ou da cenografia balética de vários corpos que, no espaço, se justapõem a um painel de fundo que os representa, formando um único quadro. Algumas fotos são verdadeiramente assombrosas pelas tensões que encerram na leitura dos seus detalhes, tanto as vemos no nadador preparado para o salto, como nas gotas da chuva, lágrimas caídas sobre as folhas.

Um grande poeta alia a sua escrita a um grande fotógrafo e fazem uma parceria desconcertante sobre a beleza. A arte da Fotografia encaixa com naturalidade na arte da Poesia, juntando dois grandes vultos da cultura portuguesa, Alfredo Cunha e Amadeu Baptista.

Margarida Santos 


Revista Triplov . Dezembro de 2024

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