VI ENCONTRO TRIPLOV NA QUINTA DO FRADE
Casa das Monjas Dominicanas . Lumiar . Lisboa . 14 de Julho de 2018
JÚLIO CONRADO
Ser ou não ser um poema, uma questão de género
1.
Não sei se será este o lugar e o tempo mais oportunos para levantar uma velha questão – a dos géneros literários, que de vez em quando, agitada por uma qualquer voz discrepante traz à superfície dúvidas e conceitos que dir-se-ia serem já casos arrumados. À pergunta: faz algum sentido continuar a existir um Prémio designado por Grande Prémio de Romance e Novela, da Associação Portuguesa de Escritores, que não obstante a pureza de intenções dos seus fundadores jamais recaíu, que me recorde, sobre novelas, e já lá vão 36 anos desde a sua atribuição pela primeira vez a José Cardoso Pires pelo romance A Balada da Praia dos Cães.
Uma das mais controversas decisões do júri que atribuiu o Grande Prémio de Romance e Novela a Gonçalo M. Tavares pelo seu livro Uma Viagem à Índia (2011) é tê-lo feito relativamente a uma obra, em verso, que à primeira vista se diria réplica paródica de Os Lusíadas. As primeiras reacções não podiam deixar de ser senão: Mas onde é que isto já chegou? Atribuir-se um prémio para ficção a um poema épico? Confesso que levei anos de pé atrás com a decisão do júri e sempre adiando a leitura do “tijolo” de quase 500 páginas olimpicamente ignorado em cima do tampo da secretária, sem sequer olhar lá para dentro com olhos de ver, não obstante poder tratar-se de um romance de personagem tipificado na pessoa de um tal Bloom, alguém com um apelido igual ao da luminária das “influências” que vinha mesmo a calhar por causa do dispositivo gráfico, da mitologia da viagem, do aparato oficinal, enfim, de uma rede de intertextualidades que faz também muitas vezes figura de gato escondido com o rabo de fora, isto é, o acidente mimético aqui ou ali deixado à vista, como quem não quer a coisa, e sempre disfarçado de “homenagem” ou “evocação”.
2.
O caso de Bloom pai que mandara matar Mary, a noiva de Bloom filho, sugere em vários aspectos o tratamento dado por D. Pedro I aos matadores da bela Inês (convergência que não escapou a Eduardo Lourenço) – menos àquele que não se deixou apanhar – mas sem levar a extensão da vindicta aos limites atingidos por Bloom filho, ao incluir o próprio pai no ajuste de contas, pai que pagou com a vida ter contratado três operacionais para privar o filho de integrar a bem-amada no clã familiar, uma rapariga cuja pobreza macularia a reputação de gente rica, traço identitário dos Bloom século atrás de século. Afonso, o Bravo, como é sabido, ficou-se de morte natural e segundo um poeta pouco conhecido mas que conheço bem, “com o coração no sítio, imerecidamente.”
3.
Provavelmente só eu descortinei na instrução de Bloom umas quantas ressonâncias de uma fala a lembrar Afirma Pereira, de António Tabucchi, quando a iteração aqui não era Afirma, mas Pensou. Só faltou (e disso não há pistas nem provas) pôr a correr a lenda de que o “pai” literário do senhor Bloom salvara a nado este volume-tijolo (protegido por um grosso impermeável à prova de naufrágios e embates contra rochedos ou talvez dentro de uma mochila favorável à natação com os dois braços de maneira a que o editor o fizesse chegar a tempo e horas à sede da APE a fim de ser apreciado pelos jurados, mais tarde reunidos a elucubrar como chegarem a uma decisão antes de inflectirem para a emissão do cheque, se o objecto em questão era menino (romance), menina (novela), ou qualquer ente de sexo intermédio ainda por explorar literariamente e por isso intrinsecamente misterioso, logo impossibilitado de ser levado a sério pelos intervenientes nos trabalhos. Em causa, pois, o dilema do género.
Compreendo as perplexidades dos membros do júri, se acaso as tiveram: o livro, afinal, não sendo poema mas tão só o dispositivo dele, também não se parece com uma narrativa ficcional, convencional, lá porque está dividido em dez “cantos” ou porque conta, satisfatoriamente, movimentada sem dúvida, uma prosaica história de vida privada. Já depois de tudo resolvido a dúvida primordial subsistia: o júri premiou um romance ou uma novela? ou não reparou em que o dispositivo era o de um poema?
Foi para desfazer (ó, ambição insensata) este nó que me abalancei, finalmente, à leitura do livro; mas estaria eu habilitado a remexer, sem me salpicar, o caldo extemporâneo, quando Eduardo Lourenço definira no prefácio tratar-se de “um prosaico poema”, reconhecera como poesia “o dispositivo em “cantos” e “estâncias” admitira ser aquele um “poema provocantemente épico e anti-épico”, e “hiper-poema”, o que faz da minha interpretação de não descortinar sombra de prosa de ficção, gato sapato, constrangido a admitir como fórmulas inovadoras outras catalogações de género mesmo se na subcategoria “anti-poema” algumas oposições severas põem en causa o conceito canónico de versificação. Mas logo Eduardo Lourenço emenda a mão para criar uma zona de ambiguidade, usando para isso, a finura linguística e os lampejos encantatórios do seu incomparável estilo, – dirigindo-se ao autor – a propósito da personagem Bloom: “Por isso o seu romance-poema ou poema-romance” que era o mesmo que dar de mão beijada ao júri o trunfo de que co-existiam no livro romance e poesia, facilitando a superação do obstáculo principal, o tal “dispositivo” (poético) e o cariz fortemente trivial e elementar das “ideias” de Bloom, o “herói” da “hiper-realística aventura” (prosa). Eduardo Lourenço reforçará com palavras de claro sentido o seu ângulo de análise, dirigindo-se ao autor: “Bloom é o herói do que vê, o que vê e o vê a ele. Por isso o seu romance-poema ou poema-romance, pelo seu anacronismo paradoxal, é de um futurismo mais convincente que o de Houellebecq…”
6.
Parece, é verdade, que Eduardo Lourenço disse tudo. Se o prémio atribuído que não cabia exclusivamente no âmbito para que foi criado ao apresentar-se a concurso exibindo as coordenadas de dois figurinos estético-literários, sendo que cada um deles, ao cruzarem-se, colidiam provocando consideráveis danos no outro, é crível que a avaliação desse risco não tenha preocupado os jurados, bastando-lhes como guião o soberbo texto-prólogo do autor de O Labirinto da Saudade, transparente e conclusivo: Sim, trata-se de um poema, sim trata-se de um romance. E assim, com todo o direito e recompensando o mérito, mas não ficando resolvida a questão dos géneros, foi deliberada a emissão do cheque à ordem de Gonçalo M. Tavares.
Perante a prudente e honestíssima ponderação do Mestre no pórtico do livro de que este não era carne nem peixe teria sido igualmente sensato o júri, em consonância com o emérito prefaciador, não atribuir o Grande Prémio de romance e novela quando uma das componentes da obra enfermava do não despiciendo (por irregular) inconveniente de estar refém de um dispositivo versificatório hostil à natureza do Prémio, identificada, aliás, no próprio nome deste.
7.
De modo que estabilizei o meu foco num Bloom imune ao ruído da maquinaria lírica, da sinalética simbólica, da iconografia cicatrizada na memória colectiva. De que maneira posso eu espremer este Bloom para que me convença tratar-se de alguém cuja história mereça ser lida? Uma personagem de ficção? Proeza do próprio romancista seu criador, posto deste extravasarem prevenções e ensinamentos de pura inspiração paternalista? Mas Bloom, tudo o indica, é mais credível como aluno empenhado (não aspira ele à sabedoria?) porque nenhum indício nos leva a aceitá-lo ainda enquanto pensador, tudo deixando supor só atingir esse estádio depois de cumprida maior parte do plano de aprendizagem a que GMT o sujeita. Numa primeira abordagem do que “pensa” o filósofo Bloom os resultados são meramente irrelevantes. Os pensamentos que deita cá para fora revelam-se de uma puerilidade chocante. Gonçalo, que já nos pretendera agregar a Uma Viagem à Índia como influência do nosso épico (o verdadeiro), quer-nos “vender” Bloom como um homem que pensa pela sua cabeça quando a cabeça pela qual ele se rege para botar figura é a do escritor conhecido na Europa, ou talvez no mundo (no universo é um tanto ou quanto excessivo), por Kafka português. E é assim que os “pensamentos” de Bloom podem ter uma remota influência kafkiana, mediada, de resto, pela versão lusíada (Gonçalo) do famoso empregado de seguros na sombria Praga onde subsistem vestígios do império austro-húngaro, e onde a presciência catastrofista, a doença e o lado esquizóide de um carácter instável seriam “confirmados” pelos acontecimentos terríveis ocorridos em épocas subsequentes. Tudo isto para se concluir que o filósofo Bloom está longe de produzir um “pensamento” capaz, precisando de ajuda para evitar as tempestades que no Mar Tenebroso se multiplicariam ao longo do arrazoado, sob a forma de cúmplices alianças autorais, se acaso a viagem se tivesse feito num protótipo de nau quinhentista, construído de propósito para o efeito. Só que Bloom viajou confortavelmente de avião dando-se ao luxo de fazer escalas (mais ou menos demoradas) em Londres e Paris. Logo: quem lhe desbrava a selva virgem das ideias e dos conceitos não é outro senão aquele que o trata por “meu caro”, “excelente amigo”, “herói”. Com tiradas como “O vento, meu caro Bloom, não é um elemento da natureza em que possas confiar.” Talvez porque palavras leva-as o vento, penso eu, admitindo que seria isto mesmo que o mentor quereria inculcar na mente do seu aprendiz de feiticeiro. Bloom, porém, era de poucas palavras pelo que o vento com ele não ganharia para o tabaco.
8.
Atente-se em como Gonçalo M. Tavares persiste em impor-nos o Bloom pensador através de alguns exemplos roubados à sua orientação pedagógica:
Não foi tarefa fácil a Gonçalo
construir algo de “pensante” com esta matéria-prima, diga-se
(se chamo algo e diga-se à colação é porque estes significantes despóticos
se espalham pelo livro, de lés-a-lés, como incómodos e teimosos parasitas)
Tropelia do autor? Ou já influência de um Bloom instruído, “repleto de uma alegria eficaz”? Goste-se ou não do homem que matou o pai, sempre fez interessantes progressos intelectuais às mãos do seu criador.
9.
Bloom lá chegou à Índia, onde arranjou um único amigo, depois de ter angariado inimigos em Londres e mais um amigo, Jean M., em Paris, que lhe tornou a escala num conto de fadas e foi talvez por causa dessa amizade tão exuberantemente exteriorizada em actos e palavras que mais tarde valeu a Gonçalo no Le Monde des Livres o alarde de a cinzenta viagem do nosso pobre, embora rico, Bloom, ser considerada nem mais nem menos do que “A grande epopeia dos nossos tempos”
10.
Que a ambiguidade que, anos depois, continua a rodear a atribuição do Grande Prémio de Romance e Novela a Uma Viagem à Índia sirva ao menos para espoletar a discussão das alterações regulamentares que façam regressar o referido Prémio ao prestígio de que já desfrutou, ou então que se acabe com ele de uma vez por todas e se promova a sua substituição por um “Prémio Epopeia” que era o que se ajustaria como uma luva ao romance-poema ou poema-romance de Gonçalo M. Tavares, culminando a odisseia de Bloom num bosque de Paris onde o “herói” se diverte com dois amigos e três prostitutas, matando uma delas como selo de garantia do seu novo estatuto antes do regressso a Lisboa: assassino. E assim aplicou a sabedoria recebida do autor-criador e também graças ao “seu definito tédio,” no bosque da cidade do seu encantamento. Valeu-lhe na emergência a solidariedade do amigo francês, que cheio de medo o foi levar ao comboio. “Ao lado de um assassino qualquer homem sente medo e orgulho”, pensou Jean M., rivalizando com o pensador Bloom.
Diga-se.
REVISTA TRIPLOV DE ARTES, RELIGIÕES E CIÊNCIAS
série gótica. Outono . 2018