Sempre no outro lado

 

 

 

 

 


JOSÉ EMÍLIO-NELSON


 José Emílio-Nelson é escritor e editor do CEJMS. Nasceu em  Espinho, 1948. Licenciado em Economia pela Faculdade de Economia da Universidade do Porto. Publicou poemas e ensaios em revistas literárias portuguesas e estrangeiras. Prepara a reunião da sua colaboração crítica em jornais e revistas literárias e ensaios sob o título: MAIS DO QUE LER.


EDITORIAL

Sempre no outro lado 
Por Maria Estela Guedes

Em cada livro, sempre diverso do anterior, como se espera de um bom artista, José Emílio-Nelson tem mantido desde há cerca de 45 anos um rumo imperturbável, por muito que o caminho surja semeado de obstáculos, e muito em especial o da moral burguesa.

Umas palavras sobre a diversidade, fundamento da vida: desde o poema clássico ao de toada medieval, até ao experimentalismo próprio da vanguarda, o autor tem publicado obras muitíssimo diferentes umas das outras, mas adverte-se que na maior parte dos casos não existe fronteira entre estas vertentes no exercício da vocação poética: a hibridação reina, como é próprio da modernidade. Próprio dele será tocar a beleza, isto é, atentar no  que é impuro, ou no que vai murchando, como uma bela rosa, tal como exprime o título da sua obra poética Beleza Tocada. O poeta não aceita o conceito de perfeição nem de pureza, sabendo que nada é absolutamente isto ou aquilo, e preferindo francamente falar da flor murcha do que da flor impante no seu pico de beleza. Desde o objecto mais simples ao mais complexo, só podemos lidar com misturas, logo com a impureza. Desnecessário dizer que a pureza exprime um valor moral muito burguês contra o qual urge a rebelião. No nosso tempo, então, ferido pela volta dos conceitos de pureza racial que causaram mortes demenciais à sombra da suástica, vale a pena reagir com as naturais misturas, híbridos e miscigenação, base afinal da vida, na sua biodiversidade.

Poderíamos talvez falar de barroco, pois José Emílio-Nelson chama para ele a atenção, em Antão ou a prótese de Nazareno, um livro profundamente marcado pela matéria crística, numa perspectiva diria que irregular. “Barroco”, no seu sentido etimológico, oriundo do português, segundo uns, do italiano ou do espanhol, segundo outros, provém do léxico da joalharia, que usa o termo para classificar as pérolas irregulares.

Irregular, feio, digamos mesmo escatológico, para nos aproximarmos do sagrado. O escaravelho-sagrado é um dos amuletos mais comuns no Egipto, símbolo do movimento solar. Ele empurra à sua frente bolinhas de excrementos maiores do que ele, com isso limpando a terra e alimentando a família, nas luras subterrâneas. O poeta é esse “besouro impuro e indomável”, como ele escreve, que trabalha com o profundamente orgânico, o que morre, como a mãe, o que se putrafaz, e por isso é tão repulsivo quanto humano.

O poeta escolheu o caminho da poesia mais árduo, aquele que em muito supera o choque dos poemas de Cesário Verde no seu tempo. Rosa canina, por exemplo, é um livro fulgurante. Sim, como bom alquimista, José Emílio-Nelson pegou na matéria mais plúmbea e transmutou-a num vaso de ouro.

Voltando ao assunto castrante contra o qual o poeta é instado a revoltar-se, não era Roland Barthes quem declarava só conhecer uma moral, a burguesa? Pois a moral burguesa quer-se acomodada a um discurso limitado, regrado, seguidor principalmente da sua própria autoridade, de modo a que possa proteger-se e ao mesmo tempo sentir-se na posição hierárquica de supremo juiz dos bons costumes. Durante quarenta e cinco anos o poeta tem resistido, e a quê, exatamente? Pois, tem resistido a essa hierarquização que o tornaria vassalo de quem, em matéria de artes, pode nem ter o domínio nem a prática de leitura.

O poeta dispõe de técnicas variadas para contornar as situações delicadas, quando a necessidade se apresenta, ou, melhor dizendo, para expressar a sua ironia sobre elas, às vezes nos próprios títulos das obras. Seja exemplo Penis penis, fórmula da declinação em Latim, na sucessão de nominativo e genitivo. Nada de parecido com o meu Clitóris clítoris[1], com que alguns tentam comparar, num movimento de análise antiquado, já superado pelo muito mais profícuo estudo das referências ou da literatura comparada. Trata-se de dois títulos diferentes, não obstante alguns os considerarem semelhantes. No meu caso, a repetição visa evitar hesitações na ortografia e na prosódia, uma vez que há sempre tendência para perguntar qual é a forma correta da palavra, e um grito de alarme, contra a mutilação genital feminina, que saltou dos seus nichos étnicos não europeus para alastrar à Europa com a imigração. No caso de José Emílio-Nelson, a repetição é falsa, as palavras são homógrafas mas, sendo distintos os casos, se o nominativo apresenta o sujeito, já o genitivo declara que é do proprietário ou possuidor do penis que se trata.

Nas fotografias, como veremos, é muito clara a técnica de mostrar mais as costas do que o rosto de quem a câmara capta, e isso nos mostra a nós que existe essa recusa de partilhar um mundo possivelmente reduzido a uma bolha, forma bem característica de hoje os mais jovens referirem o pequeno mundo que é habitat deste ou daquele grupo social. O nosso mundo ocidental, como bolas de sabão, aéreo e leve, maioritariamente dominado por formas de cultura ligeiras, e apetece citar de Milan Kundera A insustentável leveza do ser, ainda que de forma errada. Somos leves, superficiais, nos tempos que vão correndo, cada vez menos formados pelo mestre da profundidade, o livro, e mais pelas modalidades que a imagem em fluxo electrónico dirige, mais ou menos frívolas na sua aspiração ao permanente entretenimento, a partir daquilo que o luxo oferece aos que o podem adquirir, e um dos maiores é o ócio, o cruzeiro, a correria turística em volta do mundo, o mundo poluindo e sem nada de grave absorver.

O que de mais grave dá a ver a obra de José Emílio-Nelson é a morte. Eis um documento, coligido numa obra cujo título é tão informativo como um portulano, Bibliotheca escatologica:

 

Morte de Um Poeta

A um deus deposto

 

A morte oferece mais um cadáver que descai;

O que resta das mãos que escreveram,

Nessa mesma escuridão de nada que agora as encerra,

Com inspiração, constrição,

A Gramática Grega duns versos

Que não se decifra facilmente.

(E nada mais.)

 Trazer a morte para o poema é uma forma de a esconjurar, e sobretudo de tentar conhecê-la, visto que é ela a nossa companheira, e nada, na cultura que nos é berço, avança sobre ela nada de escatológico, nada de iluminante como um apocalipse. Avançar na gramática da morte é também uma provocação, algo susceptível de escandalizar ou de maçar os jovens, para quem ela nem existe, à força de a suporem infinitamente distante.

O poeta da escatologia, nas duas faces do espelho, oferece na morte um dos seus temas mais profundos e mais indecifráveis. Acode ao pensamento uma frase lida a seu propósito, no Seminário 17 de Lacan, em que este quase se lamenta por o sujeito que se supõe ser sabedor escandalizar, quando simplesmente se aproxima da verdade.

Trago Lacan à mesa de trabalho por num dos últimos livros de José Emílio-Nelson, Antão ou a prótese de Nazareno, o poeta transcrever, em epígrafes das páginas separadoras das partes do poema, diversos enunciados do psicanalista acerca do barroco. O barroco é, à partida, uma arte sacra, criada deliberadamente para servir a Contra-Reforma. Os altares-mores pertencem às igrejas e não ao espaço profano. Associa-se em geral à morte por a superabundância dos elementos que lhe dão forma, a exemplo de um altar-mor, ser interpretada como reacção contrária à morte. A inexistência de espaços vazios a iludir o grande vazio, o imenso deserto que o ser que pensa imagina retratar o lado oposto da vida. E é bem provável que razão haja em tal consideração se pensarmos que a vida se alicerça na diversidade, sendo por conseguinte a progressiva limitação dela, mais em concreto expressa na biodiversidade, um caminhar passo a passo para a extinção da vida na Terra.

Para terminar, cabe repetir uma consideração ouvida a quem detém credenciais para a proferir: “José Emílio-Nelson é o mais importante poeta português vivo”.

Espero que assim permaneça durante muitos anos.

 

 

[1] Maria Estela Guedes, Clitóris Clítoris, Urutau Edit., Portugal/Espanha/Brasil, 2019.


Revista Triplov

Setembro de 2024

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