TRIBUTO AO PROF. GALOPIM DE CARVALHO
Não será exagerado dizer que todo aquele que teve o privilégio de ouvir os homens em coro e, sobretudo, se o tiver feito numa das muitas tabernas onde os cheiros da cozinha invadem a zona de convívio, não poderá deixar de fazer esta associação. Quem já comeu numa qualquer aldeia do Alentejo e, a dada altura, os homens se levantam e se abrem em coral nos seus cantares, únicos na museografia nacional e mundial, não pode deixar de ligar os sons e os sabores que ali persistem, como que a fazerem frente à mundialização cultural, há muito iniciada pelas televisões, bem antes da globalização económica de que agora tanto se fala.
Sempre associei os aromas da comida alentejana aos seus cantares. E isso resulta de uma vivência começada em criança quando ia à taberna do Monginho buscar meio litro de vinagre e por lá me esquecia a ouvir os homens, à volta de uma grande mesa forrada de oleado, repleta de pratinhos com petiscos perfumados e de copos de vinho, uns cheios, uns meios, outros vazios. Foi numa destas idas ao Monginho que o «Meu lírio roxo» nunca mais se separou do grão cozido, a fumegar, temperado de azeite, vinagre, coentros e muita cebola, que os homens comiam à colher, para acompanhar sardinhas acabadas de fritar. Esta junção dos cantares, dos comeres e seus odores, tive-a por diversas vezes, na adolescência, de que recordo um fim de tarde, na venda do Ti’ Zé Calado, na Vendinha, em que se assavam linguiças e farinheiras e se ouvia, cadenciada, «A ribeira quando nasce, vai de pedrinha em pedrinha…». Uma outra vez foi na tasca do Rabino, em Valverde, com os rurais que ali trabalhavam nas escavações da Anta Grande do Zambujeiro e no Cromeleque dos Almendres com o arqueólogo Henrique Pina. E nesta era o coelho frito, temperado de alho e pimentão, e as perninhas de rã de tomatada, ao som do «Deitei o limão correndo…». O aroma e o sabor do toucinho assado na brasa, com pão à navalha e copinhos de aguardente perfumada, saída ainda quente do alambique, na grande adega das Cortiçadas, em São Sebastião da Giesteira, nunca mais se separou do «Ao romper da aurora, sai o pastor da cabana…»
Uns tempos mais tarde, ainda a «Grândola, Vila Morena», do Zeca Afonso, não tinha a conotação que passou a ter a partir “daquela Madrugada”, os seus belos acordes remataram uma monumental açorda de poejos com bacalhau e ovos cozidos, comida lá para as tantas, para “desenratar” de uma jornada de fartas comezainas e muitos copos, nas bodas de um parente.
A última situação vivida deste casamento de sabores e cantares teve lugar em finais de 1998, na Pousada dos Lóios, em Évora, durante um almoço oferecido aos participantes do «1º Simpósio Internacional para a Paleobiologia dos Dinossáurios». Uma vintena de cientistas de nomeada, oriundos das cinco partes do mundo, saborearam as belíssimas entradas de paio, presunto e queijos locais e deliciaram-se com o magnífico ensopado de borrego, olhando e sorrindo para nós como que a dizer «que coisa boa!». Começavam eles a regalar-se com a encharcada, bem perfumada de canela, quando um grupo coral de homens e mulheres, envergando os seus trajes regionais, irrompeu lá no fundo do grande claustro, cantando e marchando, grudados uns aos outros, numa mole humana que se aproximava, lenta e cadenciada, a passo certo, num crescendo de arrepiar os cabelos e trazer aos olhos uma lágrima rebelde: «Olha a noiva, se vai linda…».
Revista Triplov
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Portugal . Outubro . 2022