Rosas caninas

 

 

 

 

 


JOSÉ EMÍLIO-NELSON


 José Emílio-Nelson é escritor e editor do CEJMS. Nasceu em  Espinho, 1948. Licenciado em Economia pela Faculdade de Economia da Universidade do Porto. Publicou poemas e ensaios em revistas literárias portuguesas e estrangeiras. Prepara a reunião da sua colaboração crítica em jornais e revistas literárias e ensaios sob o título: MAIS DO QUE LER.


EDITORIAL

Por Maria Estela Guedes
Nas badanas de Rosa canina, de José Emílio-Nelson.

 

Livro fulgurante, em todas as facetas do prisma em torno do qual as palavras rodam, seja a propriamente poética, com as suas figuras de linguagem, seja a faceta gnómica, pois trata-se de um livro refletido e de reflexões, em especial sobre a Natureza, aquela natura que cada vez mais depende da cultura, como a Rosa canina, apesar de ser considerada silvestre, e decerto as deslumbrantes rosas roxas – tudo o que é jardinagem sai mais das mãos do Homem do que da Natureza – haverá rosas roxas em estado bravio, nos confins de alguma floresta?

O poeta reflete-se no espelho da natura e a imagem que se revela é sobretudo a da idade, manifesta nas mutações orgânicas. O corpo com tudo aquilo que em geral José Emílio-Nelson canta, e neste ponto ele é uma voz muito singular na literatura portuguesa, voz atenta ao que há de mais disfórico, desagradável e mesmo repugnante. O poeta não canta amenidades e júbilos, sim o que fere a vista, o ouvido, os sentidos todos, sem esquecer o olfacto, sem esquecer o que pesa sobre a transgressão sexual – que o diga o insecto polinizador ao chamar “vulgívaga” à canina rosa – sem esquecer o que fere o pensamento, pela violência ou imoralidade: assim a cabeça cortada de João Baptista pode ser ansiada pelos seres necrófilos.

Do outro lado desta temática do horrendo, temos o permanente experimentalismo do poeta, quer em exercícios internos à sua própria obra, que cita e submete a versões, quer ao tomar desde o Alfabeto ao verso o pulso à capacidade poética da linguagem, pois necessário é transcender o naturalismo dos temas mais rudes, de modo a que possamos fruí-los como beleza literária. E assim deparamos com um léxico invulgarmente rico e quase exótico, tão distinto se mostra do discurso mais comum da poesia, ou tão esquecido hoje, se nos lembrarmos de que o vocabulário escatológico e suas manifestações factuais foram cantados e pintados pelos artistas clássicos: “As fezes são a beleza injustiçada”, escreve o poeta, temendo o choque que  pode  sofrer ao olhar para a sanita.

O corpo é o centro do que muda no tempo, o corpo velho tem o esplendor do declínio, tal como a escatologia brilha como obra de arte nos portais das sés, em entrelinhados de esculturazinhas libidinosas.

O escaravelho-sagrado é um dos amuletos mais comuns no Egipto, símbolo do movimento solar. Ele empurra à sua frente bolinhas de excrementos maiores do que ele, com isso limpando a terra e alimentando a família, nas luras subterrâneas. O poeta é esse “besouro impuro e indomável” que trabalha com o profundamente orgânico, o que morre, como a mãe, o que se putrafaz, e por isso é tão repulsivo quanto humano.

O poeta escolheu o caminho da poesia mais árduo, aquele que em muito supera o choque dos poemas de Cesário Verde no seu tempo. Rosa canina é um livro fulgurante, repito. Sim, como bom alquimista, José Emílio-Nelson pegou na matéria mais plúmbea e transmutou-a num vaso de ouro.

 

JOSÉ EMÍLIO-NELSON
Rosa canina

Imagens de Emerenciano
Texto de Maria Estela Guedes
Porto, Edições Esgotadas, 2024

 


Revista Triplov

Setembro de 2024

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